Nota Técnica sobre a desmobilização da Assessoria Técnica Independente em Mariana/MG

O Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) juntamente com o Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) vêm manifestar sua profunda preocupação com a eminente desmobilização da Assessoria Técnica Independente (ATI), representada pela Cáritas Brasileira, no município de Mariana/MG. O encerramento das atividades de assessoria constitui grave violação aos direitos das comunidades atingidas, e representa o descumprimento do Acordo de Repactuação conduzido pela União e estados, colocando em risco a reparação do desastre no Rio Doce.

A assessoria técnica independente é fruto de um longo e árduo processo de mobilização e reivindicações dos atingidos pelo desastre da Samarco. O objetivo de sua atuação é prestar a assistência técnica e jurídica necessária às famílias atingidas, reduzindo as assimetrias na interlocução com as instituições responsáveis pela reparação. No território de Mariana, as atividades da Cáritas foram iniciadas em 2016 e, desde então, a ATI enfrenta regularmente desafios para o planejamento e a continuidade das ações (Oliveira, 2024[1]). Embora o assessoramento técnico independente constitua um direito reconhecido através da Lei Federal nº 14.755/2023 e da Lei Estadual nº 23.795/2021, desde 2024 a Cáritas enfrenta sistemática precarização das suas condições de trabalho com a redução drástica das equipes e o encerramento de projetos.

O acordo de Repactuação, celebrado em 25 de outubro de 2024 e homologado pelo Supremo Tribunal Federal, prevê a continuidade das assessorias técnicas nos territórios atingidos, mediante as disposições contidas no Anexo 6, relativo à Participação Social das comunidades atingidas. No referido anexo, as Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) são concebidas como “ferramentas de promoção da participação da população no acompanhamento das ações de reparação e compensação dos danos causados pelo rompimento”. Com efeito, são reconhecidas em seu papel fundamental para acompanhar, orientar, esclarecer e dirimir as dúvidas das famílias vitimadas no âmbito dos procedimentos e atos relacionados à reparação dos danos. Contudo, atualmente, sem a garantia de repasse dos recursos financeiros provenientes do acordo, a Cáritas iniciou, em 30 de abril de 2025, uma desmobilização forçada da sua estrutura em Mariana.

Diversas investigações conduzidas por pesquisadores deste Comitê e do GESTA/UFMG apontam que os atrasos na execução das ações e a centralização do processo decisório, cuja condução se torna pouco permeável às demandas das vítimas, contribuem para a intensificação do sofrimento social dos atingidos e a perpetuação da injustiça socioambiental (Zhouri et. al, 2018[2]; Zucarelli, 2021[3]; Teixeira e Lima, 2022[4]). No novo acordo, a gestão das obrigações quanto à execução de medidas de reparação é de responsabilidade do Poder Público. No caso das ATIs, o gerenciamento dos recursos ficou a cargo da União, em particular do Ministério de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA). Todavia, após cinco meses da homologação do acordo, mesmo com o aumento exponencial das demandas das vítimas em virtude do redirecionamento das ações de reparação, nenhuma medida foi tomada para a garantia da continuidade da ATI. Nesse contexto, o Ministério Público Federal (MPF) junto à Defensoria Pública da União (DPU) expediram, no dia 14/04/2025, a Recomendação nº 11/2025 ao MDA para a contratação imediata das assessorias técnicas independentes, fato que ainda não ocorreu.

Diante disso, vale lembrar que a atual fase do processo introduziu, com a repactuação, novos prazos e dinâmicas, ressaltando novamente o caráter imprescindível da orientação e do acompanhamento técnico dos assessores junto às famílias neste novo contexto. Aos problemas e indefinições que se arrastam há quase 10 anos, somam-se novas inseguranças e demandas por esclarecimentos por parte das pessoas atingidas no que diz respeito aos seus direitos. Dentre as mudanças críticas em curso prevista no acordo, destacamos:

  • a extinção dos programas voltados aos cuidados dos animais cujos tutores estão em situação de deslocamento compulsório, portanto, desprovidos de condições mínimas para a guarda e tratamento dos animais;
  • a transferência das famílias para os reassentamentos coletivos e sua adaptação às novas localidades de destino;
  • a demora na condução das demais formas de restituição do direito à moradia;
  • incertezas na implementação e no acompanhamento das medidas de recomposição econômica;
  • a desapropriação dos territórios atingidos, considerando as implicações sobre vínculos e modos de uso existentes.

É preciso salientar que o desastre permanece em curso como crise crônica, engendrando dimensões críticas que se prolongam ao longo do tempo (Zhouri, 2023[5]). Ainda hoje, famílias que tinham o trabalho com a terra como eixo de suas práticas socioeconômicas continuam privadas dos meios necessários à reprodução do seu modo de vida. Moradias não finalizadas nos reassentamentos, expropriação dos antigos espaços de plantio tomados pela lama, impossibilidade de retomada das práticas agrícolas e do manejo dos animais, não recebimento ou atraso nas indenizações previstas, entre outros aspectos, contribuem para a contínua vulnerabilização dos atingidos.

Tendo em vista o contexto mencionado, este Comitê da Associação Brasileira de Antropologia e o GESTA/UFMG acentuam sua apreensão com a indiferença das instâncias responsáveis e a inércia no cumprimento das medidas de reparação previstas no acordo. Reclamamos a tomada de providências imediatas de forma a evitar a suspensão das atividades de assessoria técnica aos atingidos em Mariana e salientamos a centralidade da ATI para a defesa dos direitos das vítimas do desastre da Samarco. Como um desastre que perdura há quase uma década, espera-se que a repactuação possa de fato trazer celeridade e representar caminhos de justiça para as pessoas atingidas.

Brasília, 07 de maio de 2025.

Associação Brasileira de Antropologia (ABA); seu Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos; e Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Leia aqui a nota em PDF.

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[1] OLIVEIRA, N. G. C. Qualificação e Disciplinamento: a institucionalização da assessoria técnica no contexto do desastre da Samarco no Rio Doce. In. ZUCARELLI, M. OLIVERA, R. e ZHOURI, A. (Orgs.) O Desastre no Rio Doce e a Política das Afetações. Montes Claros: Editora Unimontes, 2024, pp. 103-128. Disponível em: https://www.editora.unimontes.br/o-desastre-no-rio-doce/. Acesso em: 02/05/2025.
[2] ZHOURI, A. et al. O desastre no rio Doce: entre as políticas de reparação e a gestão das afetações. In: ZHOURI (Org.). Mineração: violências e resistências [livro eletrônico]: um campo aberto à produção de conhecimento no Brasil. 1.ed. Marabá, PA: Editorial iGuana; ABA, 2018. Disponível em: https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/wp-content/uploads/2018/03/EBOOK_MineracaoViolenciaResistencia1.pdf. Acesso em: 01 mai. 2025.
[3] ZUCARELLI, M. C. A Matemática da Gestão e a Alma Lameada: crítica à mediação em licenciamentos e desastres na mineração. Campina Grande: EDUEPB, 2021, [ebook]. Disponível em: https://books.scielo.org/id/y6wg2. Acesso em: 02/05/2025.
[4] TEIXEIRA, R. O. S., & LIMA, M. M. de. (2022). A política do tempo no desastre: disputas pela reparação no reassentamento da comunidade de Paracatu de Baixo. Revista Brasileira De Estudos Urbanos E Regionais, 24(1). https://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur.202201pt. Acesso em 02/05/2025.
[5] ZHOURI, A. Crise como Criticidade e Cronicidade: a recorrência dos desastre da mineração em Minas Gerais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, Ano 29, n. 66, maio/ago 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/vbTZ7tBRGJBwCPYxfpJkw9d/?lang=pt. Acesso em 02/05/2025.

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