Em face do contexto de negacionismo científico e avanço de um projeto político anti-negro e anti-democrático em nosso país, objeto de desmonte de políticas públicas de promoção da igualdade racial, bem como de atos explícitos de violência racial, esta nota pública da ABA (Associação Brasileira de Antropologia), seus comitês e comissões encabeçados pelo Comitê de Antropólogas/os Negras/os, e da ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as)) pode ser lida como resistência ao pacto de mediocridade celebrado entre opositores(as) da luta antirracista e organizações representativas do que há de mais nocivo e perpetuador de desigualdades raciais na sociedade brasileira.
Referimo-nos aqui ao falso debate instaurado sobre a ideia de “racismo reverso” protagonizado por aqueles que deveriam se pautar pelos compromissos éticos gerados em diferentes âmbitos da sociedade, particularmente gerados pelas associações científicas fundadas na “construção e à ampliação do conhecimento humano e, igualmente, ao desenvolvimento sócio político e cultural da sociedade e atuação no combate ao racismo, ao preconceito e à discriminação racial, com vistas à formulação, à implementação, ao monitoramento e à avaliação das políticas públicas para uma sociedade justa e equânime”, bem como à “condução de questões relacionadas às políticas públicas referentes à educação, à ação social e à defesa dos direitos humanos (..) e voz atuante em defesa das minorias étnicas, dos discriminados e posicionando-se consistentemente contra a injustiça social” como o são a ABPN – Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) e ABA – Associação Brasileira de Antropologia.
A veiculação deste falso debate tem se dado via apoio de setores midiáticos hegemônicos que não expressam compromisso com nenhum dos temas por nós valorados. Ao contrário, muitos são corresponsáveis pela disseminação de discursos de ódio e fake news que alimentam toda sorte de retrocessos e ampliam o quadro já grave de uma crise sanitária e política que atinge a população negra e as demais minorias de forma violenta e genocida. Estamos em um período em que está em jogo no cenário político mais amplo a revisão das ações afirmativas e a destruição de muitos outros direitos anteriormente conquistados. Neste ano, os rumos do país poderão ser redefinidos e é importante nesse período eleitoral combater as investidas racistas.
Perguntamos a quem e a quais interesses se serve ao negar e distorcer o quadro de uma sociedade estruturalmente racista, como já foi demonstrado pelos inúmeros e sérios estudos realizados por décadas e agora, especialmente trazidos à tona por intelectuais negros e negras? A quem interessa um “novo manifesto anti-cotas”, dezesseis anos depois, e que agora ressurge disfarçado de “Carta de apoio” a um defensor do racismo reverso? Serão organizações e setores sociais que historicamente se beneficiam dos privilégios de uma branquitude hegemônica em todos os campos da vida social, nesse país? Nas entrelinhas pode ser detectada a tentativa de deslegitimar a retomada de conquistas históricas como a inserção de uma pauta antirracista em setores da sociedade que até então não a tinham no horizonte de suas ações.
Não somos apenas resistência, limitada a um discurso entre pares, mas nos colocamos de forma propositiva e atuante contra quem já tem como destino o ostracismo da história. Não rejeitamos o diálogo. Mas queremos igualdade de direito a nos manifestar. Integramos comitês, grupos de trabalho, instituições acadêmicas e movimentos de defesa de direitos humanos e sociais. Há, em todos esses espaços, não somente sujeitos que são “pele-alvo” da violência racista, mas muitos indivíduos e grupos que estão dispostos a lutar por justiça social em todas suas manifestações. E que defendem a democracia e o diálogo. Para os que prezam e respeitam a diversidade desse país e a luta por justiça, que se valorize o Machado de Xangô, símbolo potente do combate religioso afro-brasileiro às injustiças do mundo.
E que se valorize o debate de ideias, a liberdade de expressão como parte da democracia hoje tão perseguida e ameaçada em nosso país. Não são poucos os negros que morrem a cada dia, acusados de tudo e sem condições de defenderem suas vidas e seus ideais. Não há liberdade de opinião, verdadeiro debate e participação política diante de tantas mortes e ameaças sobre pessoas negras na atualidade.
Neste ano de 2022 deixaremos mais visíveis as ações dos que não se dobram às injustiças, como, inclusive, aquelas travestidas de discurso sobre racismo reverso. Posicionamo-nos no campo onde se encontram pessoas e setores institucionais e associativos que defendem a universidade pública, a vacina e a democracia em sua forma mais integral, inseparável de uma intensa luta antirracista.
Brasília, 20 de janeiro de 2022
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e Associação Brasileira de Pesquisadores(as) negros(as) – ABPN
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