Contra o desmanche ambiental e a violência decorrente

NOTA DO COMITÊ POVOS TRADICIONAIS, MEIO AMBIENTE E GRANDES PROJETOS DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA (ABA)

O Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos da Associação Brasileira de Antropologia vem a público manifestar repúdio às ações e declarações de representantes do governo brasileiro que conduzem ao assombroso desmanche do sistema de regulação ambiental do país.

Instrumentos de proteção dos direitos dos povos tradicionais, do patrimônio ambiental e da diversidade cultural brasileira encontram-se sob acintoso e recrudescente ataque. A designada flexibilização ambiental configura um verdadeiro desmonte das instituições, normas e dispositivos de governança que representam conquistas resultantes de décadas de organização e mobilização da sociedade brasileira. As ofensivas contra os princípios constitucionais nos alça a uma condição de “crise do Estado Democrático de Direito”, vis-à-vis à defesa do meio ambiente como um direito coletivo dos cidadãos brasileiros.

As mudanças, feitas sem alarde, são acompanhadas por um discurso ideológico que criminaliza as práticas de proteção ambiental e as formas de ocupação tradicional de territórios, sob a alegação de que empatam o aproveitamento das riquezas nacionais. Tal ideologia condena o Brasil à condição de mero produtor de commodities agrícolas e minerárias, verdadeira posição subordinada no jogo político-econômico internacional.

A rendição a esse modelo econômico neocolonial evidencia uma estratégia com viés obscurantista de constantes ataques e censuras às instituições produtoras de conhecimento, incluindo as universidades e os institutos de pesquisa como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE.

Soma-se a isso, o recrudescimento do controle e da restrição aos espaços de participação social que, mediante a extinção ou redução e esvaziamento de conselhos e órgãos colegiados da administração pública federal, coloca em risco preceitos constitucionais. O Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA, por exemplo, teve sua composição drasticamente reduzida de 96 para 23 membros, o que acarretará no esvaziamento de suas funções na avaliação da implementação e execução da política e das normas ambientais do País.

No mesmo diapasão, governantes se pronunciam acerca da “eliminação do ativismo” e designam autarquias ambientais, tais como IBAMA e ICMbio como “fábricas de multa” entre outras espantosas acusações que fomentam um ambiente de desrespeito às leis ambientais vigentes, implicando na redução da fiscalização ambiental, na intensificação do desmatamento, sobretudo na Amazônia brasileira, no aumento de invasões às terras de povos tradicionais e no acirramento de conflitos armados.

Dentre as graves mudanças, destacam-se os esforços para a construção de uma nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental através da tramitação de Projetos de Lei do Senado, a pretexto de “desburocratizar o processo de concessão de licenças”. Com efeito, o que se tem é um processo de fragilização do marco regulatório, apontando a substituição dos instrumentos de controle do Estado por práticas corporativas de autolicenciamento, automonitoramento e gestão ambiental voluntárias.

O desmonte se radicaliza através da inobservância ou desrespeito ao marco regulatório, de que são exemplos processos de licenciamento em curso, cujas obras estão em andamento mesmo sem a promoção de audiência pública e consulta prévia, livre e informada às comunidades tradicionais afetadas, preceitos da Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário.

Acompanhamos estarrecidos as denúncias diárias de violência armada contra indígenas, como o recente caso envolvendo a morte violenta de Emyra Waiãpi, um líder da etnia waiãpi, e as invasões de garimpeiros, em meio a declarações sobre a pretensão do governo de legalizar mineração e garimpos, bem como barragens hidrelétricas e sistemas de transmissão em terras indígenas.

Esforços de revisão regulatória são expressivos no tocante às atividades extrativas, visando fomentar a expansão das atividades de mineração no país. O quadro é também alarmante no que diz respeito ao Plano Nacional de Segurança de Barragens. Mesmo após os rompimentos das barragens de Fundão em Mariana e da Barragem B1 da Mina Córrego do Feijão em Brumadinho, as iniciativas para o controle e a fiscalização dessas estruturas mostram-se bastante limitadas e omitem procedimentos relativos às comunidades locais.

São particularmente preocupantes as declarações sobre a abertura da Amazônia, das Unidades de Conservação e das Terras Indígenas para exploração econômica, sobretudo a mineração. E acendem sinal de alerta sobre violações explícitas à Constituição. Não por acaso, os dados recentes que revelam o aumento do desmatamento na Amazônia divulgados pelo INPE, alarmantes, são acintosamente questionados.

O desmatamento desenfreado poderá ser enormemente agravado pelas recentes propostas de mudanças no Código Florestal, em tramitação no Senado, no que concerne à revisão da situação das reservas legais em propriedades rurais. Simultaneamente, o Ministério da Agricultura liberou número recorde de agrotóxicos em curto espaço de tempo, muitos dos quais proibidos em vários países do mundo, submetendo a população brasileira a riscos cada vez mais elevados quanto à saúde.

Tudo isso mostra uma violência que se apresenta sem disfarces e ousa formular uma política explícita de destruição das florestas e dos povos que as habitam. Os discursos que versam sobre a liberação do porte de armas no Brasil também têm sido evocados em nome da defesa da propriedade privada, desconsiderando mais uma vez os princípios constitucionais que asseguram a defesa da vida acima de qualquer outro direito.

Diante desse quadro, o Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos externa seu repúdio às iniciativas mencionadas e manifesta sua profunda preocupação quanto ao futuro dos povos tradicionais, das vindouras gerações de brasileiras e brasileiros e à integridade dos preceitos constitucionais, cuja flagrante deterioração revela a profundidade da crise atual de nosso Estado Democrático de Direito.

Brasília, 01 de agosto de 2019.

Associação Brasileira de Antropologia e seu Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos

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