A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), por meio do Comitê Quilombo vem a público denunciar novamente ações de violação de Direitos Humanos contra famílias dos quilombolas do território do Alto Rio Acará (comunidades da Balsa, Turiaçu, Palmares e Gonçalves), promovida pela empresa Agropalma S/A, fornecedora de óleo de palma para grandes empresas nacionais e multinacionais de alimentos. No último dia 6 de fevereiro de 2022, famílias quilombolas cruzaram o rio Acará para retomarem parte do território expropriado na década de 1980 pela Agropalma S/A, onde se localizam quatro cemitérios da comunidade, sendo que em três deles estão sepultados os ancestrais fundadores do quilombo e, em outro indígenas da etnia Tembé também expulsos das áreas no mesmo período. Estes cemitérios atestam a existência de um território multiétnico destroçado pelo monocultivo de dendê na região do alto rio Acará. No dia seguinte a este ato, famílias quilombolas foram encurraladas por seguranças armados e encapuzados contratados pela empresa. Neste contexto, no dia 9 de fevereiro, novas investidas violentas foram realizadas, com ameaças a um grupo de quilombolas, entre eles mulheres e crianças, por seguranças a serviço da empresa, impedindo-os inclusive de circularem para adquirir alimentos e água potável, caracterizando cerceamento e privação de liberdade. Como parte desta violenta ação, máquinas da empresa trabalham para abrir profundas trincheiras, colocando contêineres, guardadas pelos seguranças em posição de ameaças e gestos coercitivos, com a intensão de dificultar o livre trânsito dos quilombolas naquelas áreas. (ver em: https://ver-o-fato.com.br/exclusivo-agropalma-ignora-mp-e-intimida-quilombolas-do-acara-fechando-acesso-a-rio-video/).
Os conflitos se arrastam desde a década de 80, com a intensificação da produção de palma e resultaram em uma dispersão das famílias desse território, incluindo indígenas, como os Tembé e os quilombolas. As famílias vivem um longo processo de expropriações, remanejamentos compulsórios, controle do ir e vir, além de diferentes tipos de ameaças.
O território reivindicado pelos quilombolas da Balsa, Turiaçu, Palmares e Gonçalves abrange uma área de mais de 18 mil hectares, dos quais 72% encontram-se intrusados por cadastros ambientais rurais da empresa Agropalma, inscritos no Sistema de Cadastro Ambiental Rural do Estado do Pará (SICAR/PA). Quanto à demanda pelo reconhecimento do território etnicamente configurado, encontra-se em tramitação no Instituto de Terras do Pará (ITERPA) sob o processo nº 2016/330821. No entanto, o processo de regularização fundiária anda a passos lentos. Recentemente, a diretoria da Associação das Comunidades Quilombolas da Balsa/Palmares/Turiaçu e Gonçalves contestaram um relatório técnico do órgão fundiário, que de maneira abusiva e autoritária, negara a identidade étnica do referido grupo.
A morosidade do Estado em reconhecer os direitos territoriais tem agravado drasticamente a situação das comunidades tradicionais desta área (quilombolas, indígenas, ribeirinhos, pescadores) e facilitado a intensificação das operações da empresa Agropalma. Além disso, a implantação de novos empreendimentos na região tende a pressionar ainda mais os povos e comunidades tradicionais do Alto Rio Acará. Entre eles destacam-se os 17 títulos minerários em favor da Agropalma S.A que abrangem uma área superior a 121 mil hectares; o asfaltamento da Rodovia Estadual PA-256 e a construção de
uma ponte sobre o rio Acará, que atravessará a comunidade da Balsa, constituída por quilombolas e indígenas Tembé expulsos pela dendeicultura; a construção da Ferrovia Paraense, que cortará o território quilombola ao meio, distante 1.500 metros da comunidade Nossa Senhora da Batalha, margem esquerda do rio Acará; e a criação de um corredor ecológico abarcando reservas ambientais privadas das empresas Agropalma e Brasil Biofuels, visando a comercialização de créditos de carbono. A empresa Agropalma entrou, nesta semana, com uma ação de reintegração de posse das terras, contrariando os direitos quilombolas garantidos legalmente.
Em diferentes momentos as situações de violação dos direitos têm sido denunciadas pelas famílias das comunidades quilombolas aos órgãos competentes locais, mas sem obter qualquer tipo de reação concreta dos órgãos competentes em relação à defesa dos direitos humanos e territoriais. Entre as denúncias realizadas para a Promotoria Agrária do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) e a Defensoria Pública Agrária do Estado do Pará constam ações ilegais da empresa Agropalma, como grilagem, falsificação de documentos, intimidação aos quilombolas, proibição de pescar no rio, impedimento de livre acesso aos cemitérios, florestas e áreas de uso comum, dentre outras. Estas denúncias foram acolhidas pelo MPPA, entre 2018 e 2020, e levadas ao Tribunal de Justiça do Estado do Pará que determinou o cancelamento de matrículas das “fazendas Roda de Fogo, Castanheira e Porto Alto” adquiridas irregularmente pela Agropalma. O Ministério Público declarou a ilegalidade dos referidos registros imobiliários. A sentença, entretanto, não impediu que a empresa permanecesse explorando as áreas adquiridas irregularmente como não interrompeu o histórico de violência e agressões contra as famílias quilombolas, através do apoio de uma empresa de segurança privada, a SegurPro. Diante das proporções tomadas pelo conflito e das ilegalidades envolvendo a situação, a Defensoria Pública do Estado do Pará, propôs, ao Tribunal de Justiça do Pará, no dia 10 de fevereiro de 2022 uma Ação Civil Pública contra e Estado do Pará, o Instituto de Terras do Pará (ITERPA) e a empresa Agropalmas S.A. (file:///C:/Users/Cliente/Downloads/ACP_QUILOMBOLAS%20BALSA%20X%20ESTADO-%20ITERPA-AGROPALMA%20PROTOCOLADA.pdf).
Embora o Ministério Público do Estado do Pará tenha orientado a Agropalma de se abster de impedir as pessoas de ter acesso ao seu território, inclusive aos seus cemitérios, garantidos constitucionalmente, nada foi acatado. Este quadro tem se agravado, inclusive porque os quilombolas têm sido impedidos por um sistema permanente de vigilância realizados pela Polícia Militar do Pará, posto de Vila Palmares, que envolve o uso de câmeras, drones, placas, postos de vigilância e olheiros a serviço da empresa. Este sistema tecnológico de vigilância visa controlar e impedir o acesso das famílias quilombolas às áreas do território tradicionalmente ocupado, até mesmo do acesso ao rio Acará, onde tradicionalmente a pesca artesanal garante a alimentação das famílias quilombolas.
Diante da grave situação de violação de direitos humanos e territoriais, solicitamos imediatamente aos órgãos públicos competentes providências para:
- Coibir toda e qualquer forma de violência contra as comunidades promovida pela Agropalma e seus seguranças e pela Política Militar do Pará;
- Realizar uma diligência idônea com o objetivo de reconhecer a gravidade da situação e evitar tragédias maiores diante do acirramento dos conflitos territoriais e do risco de vida enfrentado pelas famílias quilombolas ameaçadas;
- Garantir as condições de sobrevivência das famílias, como o livre acesso ao rio Acará, de forma a estancar o deslocamento compulsório dos quilombolas do seu território;
- Paralisar imediatamente todos os projetos desenvolvimentistas até o cumprimento do protocolo de Consulta Livre, Pública e Informada, conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT);
- Retomar imediatamente o processo de regularização fundiária do território quilombola do Alto Rio Acará (PA) pelo ITERPA do Estado do Pará.
A partir do exposto, a ABA e seu Comitê Quilombo expressa sua permanente solidariedade às famílias quilombolas e reitera o pedido de manifestação urgente das autoridades públicas competentes para a aplicação dos preceitos estabelecidos na Constituição Federal de 1988 e assegurar a defesa dos direitos territoriais quilombolas.
Brasília, 14 de fevereiro de 2022.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e seu Comitê Quilombos