Editorial
Os antropólogos e as agências governamentais
Lendo uma avaliação recente do trabalho de antropólogos norte-americanos comissionados para trabalhar numa área da Oceania logo depois da Segunda Guerra, e suas vicissitudes até os dias de hoje, me ocorre que, infelizmente, e apesar de toda a nossa discussão sobre uma nova antropologia, ainda é cedo para relegar à pré-história da disciplina as relações difíceis entre antropólogos e governos e/ou suas agências. Ao mesmo tempo, uma visão distanciada como essa coloca em perspectiva a nossa relação, interna ao país, com as nossas agências. Começando pelas agências de financiamento. Desde a sua criação, representantes das Ciências Sociais participam das comissões da CAPES e do CNPq e, desde então, a nossa relação é a de clientes, mais ou menos passivos, dessas agências: o crescimento e a consolidação das Ciências Sociais no país e, em particular da Antropologia, sugere que talvez devêssemos começar a assumir um papel mais ativo em nossas relações com elas. Isto é, assumir uma postura explícita a respeito de vários temas que afetam diretamente nosso trabalho e que são objeto constante da política dessas agências, especialmente no que diz respeito à pós-graduação (talvez devêssemos também ser mais assertivos em relação aos cursos de graduação, antes que eles sejam objeto de novas políticas não discutidas por nós, seus docentes): a relação orientador/orientando, o tempo destinado às pesquisas de mestrado e doutorado, a relação entre o mestrado e o doutorado e o peso atribuído, anualmente, à nossa produção. Todos nós sabemos que os programas de pós-graduação se estruturaram a partir de uma história muito específica, que os chamados "fluxos" são cíclicos (isto é, a um ano de "boa" colheita de teses e dissertações podem corresponder dois ou tres de colheita ruim, etc.), bem como a "produção" acadêmica, que dificilmente expressam mudanças anualmente, e que tentar amarrar todos esses indicadores em números e tabelas isolados não necessariamente implica numa avaliação adequada do que está ocorrendo nos programas do país. A discussão sobre esses, e outros, aspectos da nossa relação com as agências de financiamento, começou em dezembro de 1986, numa reunião dos coordenadores de pós-graduação dos cursos de antropologia, em Brasília, e vai continuar, agora em maio, na reunião programada para ocorrer no âmbito do Encontro Regional Norte/Nordeste da Aba (veja a súmula dos pontos levantados na reunião em Brasilia neste Boletim). Espero que ambas as reuniões sinalizem uma mudança de rumo na nossa relação com essas agências. Além das agências de financiamento, nós antropólogos temos relações históricas com outras agências governamentais que incidem sobre nosso trabalho e a mais importante delas, para os etnólogos, é a FUNAI. Neste número do Boletim estamos informando nossos associados a respeito do andamento de uma questão grave que mobilizou os etnólogos desde o final do ano passado: o propalado interesse dessa agência na manutenção da presença de denominações religiosas entre os grupos indigenas brasileiros, independentemente do que esses grupos pensem a respeito de sua presença. (veja a carta da Aba ao presidente da Funai sobre o assunto e a nota da redação historiando a questão). E este é o ponto que, creio, merece nossa atenção: assim como estamos lutando para fazer prevalecer nossas idéias e propostas a respeito do nosso trabalho como docentes e pesquisadores nos programas de pós-graduação do país, devemos apoiar sempre que se faça necessário a luta dos representantes dos grupos indígenas para que a sua opinião seja ouvida nos assuntos que lhe dizem respeito. Acredito que isso é o mínimo que se espera de uma associação cuja história se confunde com a da defesa dos direitos dos grupos indígenas brasileiros. Não bastasse a experiência histórica da disciplina, a nossa experiência nacional mostra que, parafraseando Mauss, contra os interesses dos governos e das agências dele, devem prevalecer os interesses dos que são objetos de sua política.
Mariza Corrêa
Boletim da ABA # 27 |