A Modernização sob o comando da terra: os impasses da agricultura moderna no Brasil

Maria de Nazareth Baudel Wanderley (IFHC/UNICAMP)

Para alguns, a reivindicação da reforma agrária seria hoje um anacronismo, diante da pujança da agricultura moderna. No entanto, afirmar que a agricultura brasileira foi transformada ao ponto de prescindir da reforma agrária só se justifica para aqueles que se filiam direta à matriz conservadora, da modernização do latifúndio.

Uma agricultura moderna é, antes de tudo, aquela que resolve a questão da propriedade da terra do ponto de vista da sociedade moderna, isto é, aquela que põe a propriedade a serviço da produção. E é isto justamente o que faltou completar na chamada modernização conservadora da agricultura brasileira, que manteve, em seus fundamentos, a estrutura fundiária herdada dos tempos coloniais.

No Brasil, a modernização foi feita sob o comando da terra, isto é, foi feita pelos e para os proprietários fundiários, gerando uma tensão entre a propriedade e a produção que afeta a profundidade da própria modernização. O Estatuto da Terra, expressão do pacto social entre o estado e os grandes proprietários de terra, revelou uma enorme "tolerância" no que se refere às firmas e ao ritmo de modernização do setor e aos compromissos sociais que este deveria assumir.

Segundo os dados do INCRA, em 1932, 30 anos após a promulgação do Estatuto da Terra, a área dos latifúndios corresponde a 66,5% da área total dos imóveis e apenas ll% dos imóveis rurais são classificados como empresa rural. Além disso, são 185 milhões de hectares - 40% da área aproveitável permanecem improdutivos.

Camuflando os latifúndios e diluindo o caráter improdutivo sobre o conjunto dos imóveis, os grupos "ruralistas" mais conservadores conseguiram jogar para debaixo do tapete o fato de que a propriedade da terra continua representando um obstáculo ao pleno desenvolvimento da agricultura.

É com este disfarce que pretendem enfrentar a modernidade do mercado agrícola, que alcança atualmente uma dimensão internacional. Resta saber se estes mercados poderão conceder ainda ao latifúndio uma sobrevida, que lhe foi assegurada até o presente pelas forças políticas dominantes no interior do País.

 

 

Terra

Na tarde de quinta-feira, dia 17 de abril de 1997, Brasília viveu mais um de seus famosos dilúvios. Maldição ou não, foi também nesse dia que a marcha dos sem-terra, depois de percorrer mais de 1,1 mil quilômetros a pé, dividiu-se em três colunas e literalmente invadiu a capital brasileira. A peregrinação que se iniciara dois meses atrás, e desfilara por 253 municípios, chegava ao Palácio da Planalto, apoiada pela população local, que recebia os militantes do movimento com bandeiras e cestas de comida.

Exatamente um ano após o massacre de Eldorado dos Carajás, quando a polícia militar do Pará matou 19 sem-terra, a marcha dos trabalhadores-rurais adentrava Brasília, sem qualquer violência, e a manifestação ganhava um caráter festivo. Na verdade, o movimento recebia um apoio inesperado da classe média brasileira, passando a personificar a contestação; um lembrete para nossa castigada cidadania.

À grande marcha outro evento juntou-se. Dois dias antes fora lançado, em São Paulo e no Rio de Janeiro, o livro Terra (Cia. das Letras, 1997, edição conjunta em 8 países) que congrega fotos do famoso fotógrafo brasileiro, Sebastião Salgado, quatro músicas de Chico Buarque (sendo duas inéditas) e introdução do literato português Sebastião Salgado. Os direitos autorais da obra serão doados ao movimento dos sem-terra.

No livro, as 109 fotos de Salgado narram uma história em branco e preto. Falam do cotidiano do campo, da seca, das festas, dos enterros e nascimentos, da vida errante e dos rituais; até chegarmos nos acampamentos dos sem-terra. As últimas imagens retratam as invasões e as mortes: um pouco dessa história que se quer lembrar.

No CD, as novas letras de Chico (Assentamento e Levantados do Chão) dialogam com Guimarães Rosa, com a falta da terra, com a falta de perspectiva: "Como em sonho correr numa estrada? Deslizando no mesmo lugar? Como em sonho perder a passado. E no oco da Terra tombar".

Em tempos de tanto descrédito nas utopias e nas belas palavras, Chico, Sebastião e Saramago emocionaram e falaram de esperança: um bom alento para esse final de século tão marcado pelo discurso frio da globalização.

 



Boletim da ABA # 27