Oracy Nogueira (1917-1996): Uma biografia intelectual

Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

Oracy Nogueira integra uma geração cuja trajetória se entrelaça com a das ciências sociais no país. Sua presença discreta e marcante perpassa diversas instituições e iniciativas; sua obra inovadora aborda decisivamente temas como o estigma e o preconceito, as relações raciais, família e parentesco, metodologia e técnicas de pesquisa, estudos de comunidade e sociologia das profissões, entre outros.

Oracy Nogueira nasceu em Cunha em 17 de novembro de 1917, e lá viveu até os dez anos de idade. Seus pais eram professores normalistas e católicos fervorosos. Modéstia, humildade, desprendimento, valores da ética cristã enfatizados pela literatura mística à qual teve acesso na infância, marcaram a formação de seu caráter, tendo perdurado, em suas palavras "mesmo no período de máximo negativismo".

As relações inter-raciais também permearam o seu universo afetivo sob um ângulo muito particular, quase o do avesso da idéia mais imediata de discriminação racial. O chefe político de Cunha, durante a Primeira República, era um médico baiano de cor, Dr. Alfredo Casemiro da Rocha, principal personagem da biografia narrada no último livro de O.N., Negro político, político negro (1992). Dr. Casemiro era um médico negro, vindo da Bahia, um self-made-man detentor de uma posição de mando na pequena cidade na fronteira do desenvolvimento econômico da região, querido e respeitado pela população e pela elite local. Era entretanto negro num mundo de brancos, que se pudesse negar-lhe-ia a cor. Mais tarde, os estudos de Oracy dedicados às relações raciais cunhariam a modalidade brasileira de discriminação racial como "preconceito racial de marca", numa notável contribuição à discussão nacional e internacional do tema.

A família se muda para Catanduva em 1928, e logo para Botucatu em 1931/32, onde Oracy completa o ginásio. O dinamismo, a flexibilidade e o entusiasmo a um só tempo apaixonado e discreto que caracterizariam sua carreira revelam-se desde muito cedo. Em 1932, com quatorze anos, O. N. participa como voluntário da Revolução Constitucionalista de São Paulo, experiência vividamente relatada em "A revolução constitucionalista de 1932: recordações de um voluntário" (1992). Em 1933/34, trabalha como repórter e redator no Correio de Botucatu. Já agnóstico, faz as primeiras leituras marxistas e participa da militância de esquerda, passando a acompanhar, em suas palavras, "a linha do Partido Comunista Brasileiro pelas três décadas seguintes".

Em 1936/1937, com 19 anos, Oracy se isola da família para tratamento de saúde em São José dos Campos. A vivência pessoal da segregação, dessa vez como alvo de uma outra modalidade de preconceito, insinua-se na base do interesse pelo tema que se tornaria sua dissertação de mestrado, em 1945, na Escola Livre de Sociologia e Política: "Vozes de Campos de Jordão. Experiências sociais e psíquicas do tuberculoso pulmonar no Estado de São Paulo", publicada em 1950.

Sua família se muda para São Paulo, onde Oracy, já refeito, faz o curso de formação de professor primário. Um colega mostra-lhe um anuário da Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) em cujo curso de bacharelado ele ingressa em 1940. Na Escola, torna-se logo estudante-bolsista de Donald Pierson, e lá conhece Lisette Toledo Ribeiro que viria a tornar-se sua esposa, colaboradora e mãe de seus quatro filhos.

Donald Pierson era professor de sociologia e antropologia, obtivera seu doutoramento em Chicago, sob a orientação de Robert Ezra Park. Pierson passou dezesseis anos em São Paulo como docente, e na opinião de Oracy, "verdadeiro diretor acadêmico da ELSP". Na Escola, Oracy foi aluno de Radcliffe-Brown, Herbert Baldus, Sérgio Milliet, Emílio Willems entre outros, permanecendo estreitamente vinculado à instituição e a Pierson, até o ano do retorno deste aos Estados Unidos em 1952.

Em 1942, Oracy conclui o bacharelado. Em 1945, o mestrado, fato que o torna, em suas palavras, um dos "decanos dos mestres em ciências sociais por instituições brasileiras". Nesse mesmo ano, por meio de um convênio firmado entre a Escola e a Universidade de Chicago, obtem uma bolsa do Institute of International Education, seguindo para os Estados Unidos para a realização do doutoramento naquela Universidade. Lá permanece sob orientação de Everett Hughes, cumprindo créditos nos Departamentos de Sociologia e de Antropologia até 1947, tendo sido aluno de W. L. Warner, Robert Redfield, Louis Wirth, o próprio Hughes, entre outros. Retorna ao Brasil para confecção da tese, que entretanto não chega a ser defendida: sendo filiado ao Partido Comunista Brasileiro, em 1952, em pleno macartismo, seu visto para retorno aos Estados Unidos é negado.

Na ELSP, Oracy ensina no curso de graduação desde 1943 e, a partir de 1947, no de pós-graduação, desenvolvendo simultaneamente atividades de pesquisa. Integra também a direção da revista Sociologia, de 1948 até 1958. Nesse período, Oracy Nogueira realiza duas pesquisas marcantes. A primeira delas, a já mencionada Vozes de campos de Jordão (1950), aborda o comportamento dos tuberculosos em Campos de Jordão. Trata-se de um estudo etnográfico sobre estigma avant la lettre, com extraordinária sensibilidade para os aspectos subjetivos da cultura e da organização social. A segunda é a extensa investigação sobre relações raciais que embasa a trilogia "Atitude Desfavorável de alguns anunciantes de São Paulo em relação aos empregados de cor" (1985. 1° ed. 1942), "Relações raciais no município de Itapetininga" (1955), "Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem (sugestão para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil)"(1985. 1° ed.1955). O primeiro artigo, fruto de um trabalho de curso, examina anúncios de emprego publicados ao longo de um ano num jornal paulista. Nele, comprova-se a existência de um preconceito racial cuja expressão diferia entretanto do preconceito racial norte-americano e sul-africano. Oracy o denomina ainda timidamente "preconceito de cor". O "relatório" é uma magnífica pesquisa (espantosamente muito pouco conhecida) que examina os padrões de relações raciais vigentes no município de Itapetininga/SP durante três séculos, combinando dados históricos e estatísticos com dados provenientes da etnografia e da observação direta. Oracy cunha então o termo preconceito racial de marca para expressar o padrão de discriminação racial desvendado. O terceiro artigo compara o sistema de relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos, relacionando a lógica e o funcionamento do preconceito racial a critérios distintos de classificação social. Nos Estados Unidos, o sistema opera com base na descendência. No Brasil, na aparência e na cor da pele. O artigo, proferido originalmente no Congresso Internacional dos Americanistas (São Paulo, agosto de 1954), logo repercutiu internacionalmente e permanece uma referência decisiva dos estudos atuais sobre relações raciais.

Data dessa época também sua colaboração com a Comissão Paulista de Folclore, liderada por Rossini Tavares Lima. Pesquisas social: introdução às suas técnicas, (1964), é o resultado de um ciclo de palestas ministradas no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, ao longo do ano de 1951. O. N. teve também expressiva participação nos debates conceituais então travados pelo Movimento Folclórico.

Em 1952, no mesmo ano em que Pierson deixou o Brasil, percebendo que sua situação na ELSP "já não era a mesma", Oracy aceita o convite para a cadeira de Ciência da Administração da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade de São Paulo (USP) e para o Instituto de Administração anexo. A partir de então, até o desligamento formal em 1961, a relação com a Escola se desenrolaria numa agonia lenta. Em 1955, ele se efetiva como técnico do Instituto de Administração da USP (então dirigido por Mário Wagner Vieira da Cunha, que também passara pela ELSP) , logo tornando-se chefe do Setor de Pesquisas Sociais.

Em 1957, ele vem para o Rio de Janeiro, trabalhar no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos do Ministério da Educação, a convite de Darcy Ribeiro, seu ex-aluno na ELSP. Cabe observar que, nessa imigração, o caminho de nosso autor é o mesmo dos estudos de comunidade que têm desdobramento no projeto Municípios-Laboratório desenvolvido no CBPE. Na esteira dessa inserção, Oracy publica Família e Comunidade: um estudo sociológico de Itapetininga (1962). Resultado de pesquisa de 10 anos (1947-1956), o livro é um clássico na área dos estudos sobre família demonstrando a importância da organização familiar como fato sociológico, uma vez que a história da comunidade se entrelaça com a de certas famílias. O livro abriga também diversas pérolas etnográficas, entre elas as reveladoras descrições de uma procissão e de um pique-nique.

Oracy volta a São Paulo em 1961, como técnico do Instituto de Administração, desligando-se finalmente da ELSP "com grande pesar, dada a minha ligação sentimental com a instituição". Em 1967, defende sua tese de Livre Docência, Contribuição ao estudo das profissões de nível universitário no Estado de São Paulo, primeiro trabalho sobre o tema no país, junto à cadeira de Sociologia II da Faculdade Municipal de Ciências Econômicas e Administrativas de Osasco. O. N. constrói um quadro da produção, oferta e necessidade de profissionais em São Paulo, comparando a atualidade com o passado e realizando projeções para o futuro. A profissão emerge como elemento característico da sociedade moderna; o profissional como mediador entre o mundo da ciência e mundo mais simples e cotidiano do homem comum; e o sociólogo como profissional gerador de conhecimentos que permitam melhor intervir na sociedade.

Em 1968, O. N. é integrado como docente na área de Sociologia da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da USP. Em 1970, transfere-se para o Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, como responsável pela cadeira de "Métodos e técnicas de pesquisa". Em 1978, volta à Faculdade de Economia e Administração através do concurso para professor titular de Sociologia aplicada à economia, onde permanece até a aposentadoria em 1983.

Já aposentado Oracy ainda escreveria, entre outras coisas, a expressiva Introdução a seu livro Tanto preto quanto branco (1985), que re-edita os artigos "Atitude desfavorável ...."e "Preconceito racial de marca e de origem" ; e a original biografia Negro político, político negro (1992) que mistura ficção à pesquisa histórica e sociológica na narrativa da trajetória pessoal e política do Dr. Casemiro de Abreu, prefeito de Cunha na Primeira República. Até que a doença o limitasse, O.N. foi um pesquisador incansável.

Oracy Nogueira faleceu em Cunha, a 16 de fevereiro de 1996. Deixou-nos trabalhos modelares e a história de uma carreira íntegra e talentosa que não parece ter recebido sempre o devido reconhecimento institucional. Seu brilho discreto faisca na sombra.

 

LIVROS: Vozes de Campos do Jordão: experiências sociais e psíquicas de tuberculoso pulmonar no estado de São Paulo. Sociologia, São Paulo, out. 1950.

Família e comunidade: um estudo sociológico em Itapetininga. Série Sociedade e Educação, Coleção Brasil Provinciano. Ministério de Educação e Cultura, Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. Rio de Janeiro, 1962.

Pesquisas social: introdução às suas técnicas. 2° ed. São Paulo: Ed. Nacional, Ago. 1964.

Tanto preto, quanto branco: estudos de relações raciais no Brasil. São Paulo: T. A. Queiróz, 1983 Série 1 v.9. Biblioteca Básica de Ciências Sociais.

Negro político, político negro: A vida do Dr. Alfredo Casemiro da Rocha parlamentar da república velha. São Paulo : Edusp, 1992.

Artigos, teses e outros: Atitude desfavorável de alguns anuciantes de São Paulo em relação aos empregados de cor. São Paulo: Sociologia vol.4 nº4, 1942 .

[ Republicado em Tanto Preto, Quanto Branco: Estudo de Relações Raciais, p.95-124. São Paulo: T.A. Queiroz., 1985] .

Estudos sociológicos de comunidades paulistas. Apostila usada no curso intensivo de sociologia da vida rural ministrado na escola de sociologia de São Paulo. São Paulo: FAPESP, 1951.

"Contribuição à História do Municipalismo no Brasil". Revista de Administração/ USP, ano VII, n. 25-26-27-28, pags 23-74.

"A História-de-Vida como Técnica de Pesquisa". Sociologia, vol. XIV nº1, 1952.

"Observação Espontânea e Observação Sistemática". Sociologia vol. XIV nº3, 1952.

"Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem :sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil". Anais do XXXI. Congresso Internacional dos Americanistas, realizado em São Paulo em Ago.1954 v.1, pp. 409-434. Também publicado em Revista Anhembi, abril/1955. São Paulo [Republicado em Tanto Preto, Quanto Branco: Estudo de Relações Raciais, p.67-93. São Paulo: T.A. Queiroz., 1985]

"Relações raciais no munícipio de Itapetininga". In R. Bastide e F.Fernandes (orgs). Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo, pp. 362-554. São Paulo: UNESCO-ANHEMBI, 1955.

"Os Estudos de comunidade no Brasil". Revista de Antropologia, Dez. 1955, 95-104.

"Projeto de instalação de uma área laboratório para pesquisas".Educação e Ciências Sociais, Abr. 1958, pp.123-130.

"Problema social e problema de investigação". Educação e Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Ago. 1958, pp. 93-110.

"Os movimentos e partidos políticos em Itapetininga". Revista Brasileira de Estudos Políticos, Jun. 1961, pp. 222-247.

"Índices do desenvolvimento de São Paulo". Revista Brasileira de Ciências Sociais, 1962. Vol.II, nº 2

"O desenvolvimento de São Paulo através de índices demográficos, demógrafo - sanitários e educacionias". In Revista de Administração, São Paulo, nº 30, maio de 1963, pp. 1-140.

Contribuição ao estudo das profissões de nível universitário no estado de São Paulo. Tese de Livre-Docência, apresentada à Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas de Osasco. Osasco, 1967.

"A organização da família no município de Itapetininga". In: Educação e Ciências Sociais, Rio Janeiro, Ago.1969, pp. 61-112.

"Donald Pierson e o desenvolvimento da sociologia no Brasil". In Universitas. Salvador n° 6-7, maio/dezembro 1970, 331-342.

"Evocação de Roger Bastide". Revista Brasileira de Estudos Brasileiros. São Paulo, n° 20, 1978, 141-145.

" Pesquisa social projeto e planejamento". In Hirano Sedi (org.).São Paulo: T. A. Queiróz, 1979 Série 2 - textos v.1. Biblioteca Básica de Ciências Sociais.

"A Sociologia no Brasil", in M. G. Ferre e S. Motoyama (orgs), História das ciências no Brasil, 3º vol, 1981.

"A revolução constitucionalista de 1932: recordações de um voluntário". Revista da Academia Paulista de História. São Paulo. n° 3, 9 de julho de 1992..

"Homenagem a José Albertino Rodrigues". Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, SP 4(1,2):199-203, 1992 (editado em 1994).

com outros autores:

Nogueira, Oracy; Tavares de Lima, Rossini e Nogueira Lizete Toledo Ribeiro - "Características do fato folclórico" [comunicação apresentada ao Congresso Internacional de Folclore de São Paulo ], 5 de março de 1955. Doc. n. 309 da Comissão Nacional de Folclore. Biblioteca Amadeu Amaral. Coordenação de Folclore e Cultura Popular/ FUNARTE.

Fernandes, Florestan e Borges, João Batista. Questão racial brasileira vista por três professores. USP, 1971, Escola de Comunicação Cultural.

Bibliografia sobre O.N.: Cartas de Oracy Nogueira a Sebastião Vila Nova - 5 de dezembro de 1988 e 20 de junho de 1989

Depoimento concedido à profa. Mariza Corrêa em 1984. Publicado em História, Ciências, Saúde. Manguinhos. Vol II, número 2, pp. 119-121, julho-outubro de 1995.

Cavalcanti, Maria Laura Viveiros de Castro - "Oracy Nogueira e a Antropologia no Brasil: o estudo do estigma e do preconceito racial". In Revista Brasileira de Ciências Sociais, n° 31, ano 11, p. 5-28, junho de 1996. ANPOCS.

Acervo Oracy Nogueira

O Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro recebeu no mês de março a doação do acervo do prof. Oracy Nogueira. O acervo, composto por documentos pessoais - correspondências, textos inéditos, cadernos de campo, documentos de pesquisa, entre outros - e cerca de 1.500 livros, está sendo trabalhado pelo Núcleo de Sociologia da Cultura do Laboratório de Pesquisa Social e será posteriormente encaminhado à Biblioteca do IFCS.



Boletim da ABA # 27