Relativizando a Raposa/Serra do Sol Carlos Alberto Borges (Folha de Boa Vista, no dia 15/11/96) As primeiras lições ensinadas àqueles que pretendem ser antropólogos, é desenvolver a capacidade relativizadora para, assim, poder ler nas tessituras do real, a diferença e a alteridade. Isso quer dizer que, pelo fato da antropologia ser uma ciência voltada ao estudo do diferente, torna-se fundamental abdicar dos preconceitos como forma de deslindar a realidade social desse outro. Então, relativizar nada mais é do que congelar momentaneamente meus preconceitos para que a dimensão sociocultural do outro torne-me um objeto crível. Em Roraima, esse avatar ao qual o antropólogo, por uma questão de método, se submete, serve como sugestão para entender a realidade interétnica no Estado, sobretudo aquela que envolve o debate para a demarcação da área Raposa/Serra do Sol, cuja tônica tem sido, a rigor, marcada por ressentimentos de ambos os lados, em que índios e não-índios se vêem como reféns de decisões tomadas por pessoas que não têm compromissos nenhum com suas vidas. A polêmica gira em torno de se a demarcação deve ser em área única ou bloqueada. Relativizar torna-se necessário para entender a visão de mundo, construída pelos dois lados. Os defensores da primeira alternativa argumentam que a demarcação em área única pode salvar os índios do colapso cultural, evitando ampliar sua descaracterização ética. Por esta solução, os índios ficariam resguardados do contato com os não-índios, preservando o que ainda lhes restam do patrimônio social e cultural. Como no caso dos Ianomami, isso serviria para retardar o contado. Muito justo. Agora, o agravante na área Raposa/Serra do Sol, é que esta solução implica no reconhecimento de possíveis direitos deles; direitos que estes dizem estarem assegurados por serem partícipes e terem inscrito suas histórias na região. Não cabe aqui a polêmica tautológica de que se o direito reivindicado é justo mas não legal, ou se é consuetudinário mas não constitutivo das normas legais do país. Deixemos aos juristas tais controvérsias. O importante é dizer que, a partir daí, originou a segunda alternativa. Por ela, a demarcação viria em blocos (ou bloqueada), contemplando nela índios e não-índios. Pontos de vistas diferentes têm aguçado a fogueira da história interétnica no Estado, envolvendo governos Federal e Estadual, políticos, ongs, sindicatos, fazendeiros contra índios e índios contra índios. Aparentemente a situação caminha para uma situação difícil e complexa, requerendo até a vinda do Ministro da Justiça ao Estado para o reconhecimento do problema. Sem querer ser mais uma linha na fogueira, gostaria de deixar algumas sugestões. Ninguém duvida que por terem sofrido intrusões nem sempre pacíficas, a demarcação da área Raposa/Serra do Sol seria o reconhecimento dos índios sobre a terra. São caminhos amplamente justificados, como diria Hegel sobre a história. E nisso a Constituição Brasileira é bem clara, e, bem ou mal, em Roraima todos estão de acordo. Mas não precisa ser nenhum gênio maligno cartesiano para perguntar: e aí..., como fica a situação dos não-índios? Pelo lado da Antropologia, todas as situações em que envolvem etnias de escalas diferentes, como a sociedade nacional e grupos indígenas, tem lugar uma cultura de contato que gera um conjunto de representações na maneira como as partes classificam a si e aos outros. Chamamos isso de etnocentrismo, inerente à negação da outra identidade que se constrói por contraste. Ele é a incapacidade reproduzir um retrato sobre a outra identidade que lhe é complementar. Mas aqui no Estado de Roraima, isso é um pouco diferente. Os fazendeiros precisaram dos índios para poderem se estabelecer na região e ocupar as terra como assim vinha sendo feito no Brasil desde Cabral. Em vez de exterminá-los, casaram com suas mulheres; em vez de escravizá-los, tornaram-no vaqueiros nas fazendas; em vez de marginalizá-los, conquistaram sua anuência pelo parentesco. Não que se tenham estabelecidos aqui relações inteiramente simétricas, o que seria impossível, pois toda relação de identidade, é, por excelência, contrastiva. Mas aqui, a urdidura do sistema interétnico inscreveu no social outra ordem de relações, vividas por conflitos mais latentes do que manifesto. Melhor do que em qualquer outro lugar, este sistema de relações impôs a necessidade de respeitabilidades mútuas como único caminho possível para a convivência étnica. Os fazendeiros e o Estado de Roraima acreditam que a demarcação em blocos comportaria este convívio. Sem entrar no mérito de se a demarcação deve ser em área única e bloqueada, solução que, por política, não cabe ao antropólogo decidir, encaminharia apenas algumas alternativas que ajudariam na solução da questão Raposa/Serra do Sol, embora a curto prazo, uma solução deve vir de Brasília. Como antropólogo que sou, relativizador por uma questão de método, tenho que visualizar os limites das duas alternativas apresentadas para a partir daí transcendê-las. Primeiro recomendaria que as duas partes estabeleçam um "tribunal de argumentação", onde os interlocutores sejam atores privilegiados da história interétnica de Roraima, podendo opor suas idéias e estudar o encaminhamento delas dentro de parâmetros aceitáveis para ambas as partes. Segundo, sugeriria que na argumentação, as partes fossem ouvidas como diversidades e não como blocos de unanimidade. Terceiro, seguinte à segunda, que através de parâmetros mínimos se estabeleçam padrões de respeitabilidade às diferenças, tantas as de ordem cultural como social. Quarto e último, que o pressuposto democrático seja um valor na orientação de todas as decisões. As vantagens dessas vias, por utópicas que sejam, é que elas permitem transcender na prática duas alternativas que são excludentes por serem antagônicas. E isso se dá na direção de um entendimento como validade política assegurada pelos sujeitos que estão escrevendo a história interétnica no Estado. A preeminência de um deles implicará diretamente na melancolia do outro. Antagonizá-los é aumentar o valor depreciativo entre eles, com repercussões negativas no sistema de relações interétnicas em andamento. As guerras tribais pelo mundo e o racismo, mostram o perigo desta escolha. Mas não se pode dizer que solução não há. Quiçá os interessados saibam, como os antropólogos, relativizar e procurem-na em tempo hábil, pois o tempo urge.
Raposa/ Serra do Sol é território indígena Alexandre M. Namen (Folha de Boa Vista, quarta-feira, 20 de novembro de 1996) Vivo e trabalho como professor universitário em Boa Vista, há cerca de três anos e meio. Atualmente, coordeno uma pesquisa sobre a inserção dos índios do Estado de Roraima, no mercado de trabalho de Boa Vista. Desde que profissionalizei-me, tenho evitado posicionar-me através dos meios de (in)formação, quase sempre pautados pela superficialidade, imprecisão e sensacionalismo. Ocorre que o artigo do antropólogo Carlos Alberto Borges da Silva, intitulado "relativizando a Raposa/Serra do Sol" e veiculado pela Folha nos dias 15, 16, 17 e 18 de novembro do corrente, estimulou-me a romper o "silêncio". Entretanto, devido à convicção exposta acima quanto aos meios de informação, aviso desde já que não terei o trabalho de responder possíveis críticas ou discordâncias, seja de quem quer que for, em relação ao presente artigo. Antes de mais nada é preciso deixar claro que o referido antropólogo é o mesmo que produziu recentemente, por encomenda do Governo do Estado de Roraima, um laudo antropológico sobre a área indígena em tela. Como ele não é um estudioso dos índios residentes naquela região, legítimos "proprietários" daquelas terras, a elaboração deste laudo, embora legal, mostra-se completamente ilegítima, pois fere frontalmente o acordo existente entre a Procuradoria Geral da República e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), segundo o qual somente um especialista (isto é, alguém que tenha pesquisado sistemática e aprofundadamente um determinado grupo indígena) deve, por princípio ético e científico, produzir um documento desta natureza. É preciso ressaltar que o laudo elaborado por este cidadão tem como objetivo, embora não declarado, contrapor-se aquele favorável à demarcação em área contínua executado pelo antropólogo e professor Paulo Santilli, este sim um estudioso daquela região do Estado. A tônica do laudo do senhor Carlos Alberto, numa total desconsideração pela ordem dos fatos, é que os fazendeiros residentes na área indígena são, vejam só, pecuaristas descapitalizados, e por isto, necessitam das terras nas quais encontram-se alocados. Dito isto, deter-me-ei no aludido artigo assinado pelo antropólogo. A Estratégia sutil do autor é argumentar que, pautando-se por princípios democráticos, dever-se-ia constituir o que ele intitula de "tribunal de argumentação", no qual sociedade nacional e grupos indígenas debateriam e encaminhariam soluções para o problema da demarcação. Ora, primeiramente, qualquer antropólogo versado nos estudos sobre sociedades indígenas sabe, nos dias atuais, que é uma falácia pensar por meio da dicotomia sociedade nacional / grupos indígenas, uma vez que estes últimos também constituem o que os não indígenas costumam etnocentricamente rotular de sociedade nacional. Segundo, pautar-se por princípios democráticos é reconhecer a diferença e, no caso em questão, respeitar estas diferenças que são as sociedades indígenas de Roraima atingidas por este conflito. Assim, não se trata de constituir "tribunal de argumentação" algum, mas sim demarcar de forma contínua uma área indígena cuja demarcação foi mais uma vez protelada pelo famigerado Decreto l.1775, de nove de janeiro de 1996. Para quem conhece Roraima ao menos um pouco, fica visível que o objetivo deste antropólogo é escrever o que uma parcela considerável da sociedade roraimense, aquela que detesta e discrimina índios, quer ler e ouvir. Resta descobrir quais são os seus interesses com tudo isso. Demarcar a área indígena significa reconhecer e garantir o direito de viver de forma diferenciada e não, como argumenta sorrateiramente o antropólogo, resguardar do contato, há muito estabelecido com estas sociedades indígenas. Se esta decisão vier, e seria importantíssimo e indispensável que viesse, cabe lembrar ao antropólogo que ela não será tomada por uma instância que não tem compromisso com o Estado de Roraima, pois o Ministério da Justiça, entre outras atribuições, tem compromissos com a integridade física e cultural do indígenas brasileiros, e os índios da Raposa/Serra do sol fazem parte deste estado. Não se deve esquecer que, decidida a demarcação da área de forma contínua, faz-se necessária a retirada e a indenização digna e justa das benfeitorias dos fazendeiros, os quais, há pouco mais de cem anos, invadiram as terras indígenas. O Estado brasileiro, através de seus órgãos competentes, deverá implementar este processo. Distorcendo a história das relações sempre conflituosas entre índios e fazendeiros em Roraima, o antropólogo Carlos Alberto, numa versão intelectualizada das supostas relações harmônicas estabelecidas entre estes segmentos sociais, argumenta que, face á necessidade de respeitabilidades mútuas no processo de colonização desta região, os fazendeiros estabeleceram alianças com os índios, para conviverem sem conflitos manifestos, alianças estas materializadas por meio de casamentos, relações de compadrio e empregatícias. O antropólogo esquece de dizer que estas relações foram antes de tudo estratégias de dominação, adotadas visando a invasão das terras indígenas e a colonização desta região. Quem acredita ou quer fazer acreditar que estas relações chegaram e geram só conflitos latentes, desconhece ou faz de conta que desconhece todos os conflitos manifestos ocorridos no passado e que ocorrem no presente aqui em Roraima. Para um exemplo contundente, lembrem-se do recente e lamentável episódio quando da última tentativa de implantar, em área indígena, uma hidrelétrica no rio Cotingo. Então, resta descobrir também quais são os objetivos deste antropólogo que, ao escrever e fazer veicular artigos deste teor, acaba por estabelecer alianças com certos segmentos da sociedade roraimense. Ainda segundo Carlos Alberto, Governo do Estado e fazendeiros acreditam que a demarcação em área descontínua permitiria a continuidade das relações que, conforme advogam, sempre pautaram-se por princípios de respeitabilidades mútuas. Os indígenas, entretanto, sabem que isto não passa de ideologia, acostumados que estão com a expropriação de suas terras, o desrespeito aos seus modos de vida e a exploração da sua força de trabalho. O tempo urge realmente: é hora de romper com o etnocentrismo e reconhecer que os índios têm direito à terra e autodeterminação. As virtudes da tolerância Carlos Alberto Borges (Folha de Boa Vista, do dia 27/11/96) Nasci nos tristes trópicos. Ganhei os anos da vida vendo o sol aparecer por detrás da serra do mar, numa região prendada pela natureza com uma paisagem exuberante. Nasci e cresci caipira, filho de negro com uma descendente de portugueses rústicos, adaptados ao sertão. Minha infância foi rodeada de pretas velhas benzedeiras, congueiros, jongueiros e festas religiosas que, na verdade, eram mais lúdicas do que religiosas. No meio dessa gente aprendi muitos valores. Um deles é a paciência no colóquio, onde o ouvir não é apenas uma parte do ato interlocutório, mas um valor que diz que a linguagem também pode ser muda e que a comunicação é muito mais rica e sincera através dos gestos e da lealdade que se estabelece a partir deles. Sem saber, meu caráter estava sendo temperado por aquele povo. Saí de lá adulto, quando quis descortinar o mundo. Mas ainda hoje carrego as lições daquele tempo. Diferente de Roraima, e mais parecida com outras paragens brasileiras, uma engenharia social desenhou a história daquela região pela violência contra índios Purí e escravidão de negros. Era uma terra estratégica naquele tempo: por ela passavam ouro em direção a Parati e tropeiros para abastecer fazendas e garimpos. Os Purí tiveram pouca chance: reduzidos na freguesia de Guaratingüetá, acabaram exterminados ou amalgamados na população local. Os negros chegaram lá como mão-de-obra escrava. Resistiram em alguns quilombos para depois se diluírem entre outras tantas cores. A complexidade dessas relações alcançou graus extraordinários de elaboração. A selva, a senzala e a casa grande tornaram-se lá complementares e hierarquizadas, como em grande parte do Brasil, gerando um hibridismo racial - uma tríade -, que está estampado na cara de todo mundo. Constitutivo duma realidade em que a maioria não é nem negra, nem branca e nem índia, e todos convivem sem grandes conflitos entre si, aprendi a ter a tolerância (e não disjunção) como um valor importante. Por ele passei a olhar as coisas com isenção, evitando transformar-me num bocó lamuriento, hábil em tirar do bolso da casaca elucubrações retóricas, tão ao gosto de uma grande parte de nossa elite acadêmica. Foi com esse olhar que comecei a me interessar por Roraima e por seu povo. Esquecido e distante do restante do país e postos à própria sorte, desenvolveu-se aqui um tipo particular de cultura e valores, onde qualquer estruturação rígida nada explica. Quando isso afirmo, não quero dar a impressão de estar anunciando uma boa nova e tampouco inventando alguma tesesinha pretensiosa. Basta ser um estudante disciplinado para perceber que as coisas aqui são assim. Por isso mesmo sempre quis ter o cuidado de não perder os aspectos testemunhais com essa outra humanidade, sem necessariamente ser ignaro a ponto de imaginar estar a serviço de alguém. Foi assim que pude ter familiaridade com pessoas que sabem história social mais do que qualquer esquerdistazinho autoritário e preconceituoso. Foi também dessa maneira que tive a oportunidade de ser prova de um sistema que corre o risco de sucumbir se não se corrigir o sistema desigual nas relações políticas, e, para isso, cheguei até a apresentar algumas sugestões. Aprendi que para não retratar a realidade de forma fragmentária, é preciso saber ouvir e ter a tolerância como paradigma. É bom deixar isso bem claro, porque nas Ciências Sociais é comum se ter uma percepção negativa de quem se aventura em olhar a história pelos dois lados. É um traço que causa vertigem naqueles antropólogos, sociólogos e politólogos emproados de ceticismo, que vêem o mundo dividido tão somente entre os filhos-de-maria e os filhos-de-José, e que acabam fazendo do labor científico uma atividade fetichizada. Entorpecidos por um sono dogmático, estes só despertam de tempo em tempo para ruminar um moralismo irritante. Ao carregar suas
críticas com todas as cores, costumam acoplar abordagens antropológicas
com tendências político-ideológicas. Assustam-se
quando o debate acadêmico transborda os muros da universidade,
porque aí seu conhecimento e sua produção podem
ser vigiados e controlados pela sociedade. Esquecem que qualquer intelectual
deve exercer sua liberdade de pensamento e mesmo tornar públicas
suas idéias. Não conseguem pensar que a antropologia
existe no plural, comportando várias idéias e estilos
de trabalho. Num lugar em que o sistema universitário é
frágil, falam de ética para criticar tudo, até
não existir pedra sobre pedra. Fazem acusações
de intelectualismo porque não entendem que o antropólogo
também se preocupa com problemas teóricos. Certamente,
algumas leituras de filosofia ajudariam-no a torná-los menos
asnáticos e a entender que "tribunal de argumentação"
não é nenhum coelho de cartola, é sim uma noção
do filósofo alemão Karl-Otto Apel, que escreve à
esteira de um Habermas, para encontrar saídas de consenso para
um mundo em que ninguém é mais maria-vai-com-as-outras.
Finalmente, não aceitam um indigenismo que rompa a camisa de
força da demagogia fácil, camuflada, muitas vezes, em
esqueminhas teóricos culturalistas. Se muito falam em defender
os índios, pouca fazem para conhecê-los, essa é
a triste verdade. |
Boletim da ABA # 27 |