O MEC e a educação indígena - Luís Donisete Benzi Grupioni
Missões Religiosas em Áreas Indígenas - Fernanda Peixoto e Marcio Silva
Ao longo do ano de 1996, o Comitê de Educação Escolar Indígena, vinculado a Secretaria de Educação Fundamental do MEC, reuniu-se por três vezes, em duas reuniões ordinárias e uma extraordinária. Na pauta destas reuniões esteve presente a discussão e a busca de encaminhamentos que pudessem equacionar as dificuldades enfrentadas por organizações indígenas, organizações de apoio e secretarias de educação na construção e implementação de programas de educação escolar indígena específicos e diferenciados. Tais dificuldades podem ser agrupadas em quatro ordens distintas, embora inter-relacionadas, de problemas: recursos financeiros, qualificação dos próprios índios como docentes nas escolas de suas comunidades, elaboração de propostas curriculares e de formação de professores indígenas e o reconhecimento da escola indígena. O Comitê do MEC, que sempre é bom lembrar, é um órgão consultivo e não executor, apresentou propostas para algumas dessas questões, algumas foram acolhidas, outras não, que permanecem no horizonte de preocupações daqueles que acompanham o tema. Com relação aos recursos, além de dotações orçamentárias da FUNAI, as escolas indígenas puderam contar com outras duas fontes diretas para financiar a realização de programas de capacitação de professores e publicações de materiais didáticos diferenciados. Secretarias estaduais de educação puderam apresentar projetos específicos para educação indígena e, pela primeira vez, tais projetos foram avaliados por uma subcomissão do Comitê, juntamente com os técnicos do MEC. O valor disponibilizado foi da ordem de 1.400 mil reais, para 1996. Várias secretarias apresentaram projetos, mas nem todas estavam aptas a receber os recursos, pois estavam inadimplentes. Outra linha de financiamento posta em prática pelo MEC foi o apoio financeiro para projetos submetidos por ongs e organizações indígenas. Seja por falta de informação ou por dificuldades em preencher todas as condições burocráticas exigidas na sistemática adotada pelo MEC, poucas organizações indígenas pleitearam tais recursos. Essa linha continua aberta este ano. Os projetos devem ser encaminhados até 30 de março e 30 de julho, seguindo roteiros e formulários específicos. Interessados devem contatar o tel. (061) 224-9598. A qualificação dos próprios índios como docentes esbarra em inúmeros obstáculos. Quem promove esta qualificação? Quem paga por ela? Em que base ela deve ser feita? Como garantir seu reconhecimento legal? Devem esses professores serem contratados ou não? E por aí vai. Não há dúvida que as ongs têm feito um trabalho mais consistente nesta área, podendo dispor de assessores e especialistas, contando com algumas experiências bem consolidadas neste campo. Mesmo assim, ainda esbarram em dificuldades para o reconhecimento dos currículos indígenas diferenciados e dos cursos de formação específicos para professores indígenas. As secretarias de educação, de modo geral, não possuem nem técnicos habilitados para gerenciar tais programas, nem disponibilizam recursos suficientes para isso. Obstáculos legais e administrativos na regulamentação e reconhecimento destes cursos de qualificação, e consequentemente na contratação destes professores agravam ainda mais a situação. Além de oferecer alguns recursos financeiros e fazer junções políticas para que as secretarias assumam a efetivação de programas de qualificação profissional para que os índios se tornem professores em suas comunidades, o MEC nada mais conseguiu fazer. Vale lembrar que a responsabilidade das ações educacionais com índios cabe, de forma pouco e mal definida, também aos estados e aos municípios. E a roda continua sendo reinventada a cada mudança desses governos, onde continuidade do que está dando certo parece existir só em discurso de campanha eleitoral e não em programas de governo. A questão do currículo diferenciado pode ser resumida em duas vertentes: sua construção e sua implementação, para a qual torna-se necessária o reconhecimento dos Conselhos Estaduais de Educação. Ao lançar as diretrizes para a política de educação, o MEC marcou uma posição importante. Mas aquele documento não esgotou o tema. O próprio Comitê avalia que ele não é suficiente e propôs ao MEC a elaboração de diretrizes mais detalhadas, na forma de um conjunto de documentos de referência, que pudessem servir como base e orientação para as secretarias municipais e estaduais de educação. Tem se mostrado igualmente necessário um trabalho de informação e monitoramento dos Conselhos Estaduais de Educação, diante das inúmeras barreiras que eles têm colocado para o reconhecimento de currículos diferenciados. Já a elaboração destes currículos repousa, fundamentalmente, na vontade política dos governos estaduais em construí-los juntamente com as comunidades indígenas, pois especialistas no assunto parece não ser mais um problema. O próprio MEC está elaborando um cadastro de possíveis consultores que já conta com mais de 100 especialistas. Todas essas são questões complexas que, bem ou mal e na maioria das vezes superficialmente, o Comitê de Educação Indígena do MEC discutiu ao longo do ano de 1996. Elas se agravam na medida em que, talvez acertadamente, não se busque um modelo único, mas tantos quantos necessários a tornar a escola indígena um instrumento a favor dos índios. Mas a busca de vários modelos é também um problema. Parece estar ficando evidente que cabe ao MEC fornecer as diretrizes e orientações mais gerais, não só junto às secretarias, municipais e estaduais, mas também aos conselhos estaduais de educação. E é aqui que reside o papel que este Comitê pode ter junto ao MEC: propor estratégias consistentes que possam encaminhar soluções. Por fim, cumpre registrar que o Comitê discutiu ainda a questão de sua renovação, que pelo regimento -elaborado, revisto e nunca publicado no Diário Oficial- deverá ocorrer neste ano e implicará numa substituição de 50% de seus membros. Foi proposto novos critérios para indicação dos representantes das universidades e das ongs através de consultas, ainda não finalizadas pelo MEC. As demais representações são indicações dos órgãos e associações que têm acento no Comitê. Outra novidade a ser comentada é que a Assessoria de Educação Indígena do MEC transformou-se, no ano passado, em Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas, elevando seu status no organograma ministerial. Permanecem, ainda em pauta, o cadastro das escolas indígenas e a realização de um encontro nacional de professores indígenas, sobre o qual a antiga composição do Comitê não chegou a nenhum consenso.
Luís Donisete Benzi Grupioni
Missões Religiosas em Áreas Indígenas
Nos dias 25 e 26 de novembro último, a ABA, representada pelos professores Roque de Barros Laraia (presidente da comissão de assuntos indígenas), Marcio Silva e Fernanda Peixoto (secretário e tesoureira), participou de um seminário promovido pela FUNAI sobre missões/instituições religiosas em áreas indígenas, que teve por objetivo discutir e rever os modelos de atuação dessas agências. Atualmente, os parâmetros de ingresso e permanência das missões/instituições religiosas são definidos pela Instrução Normativa da FUNAI n° 002, de 08/4/94, publicada no Diário Oficial da União de 15 de abril de 1994, nos seguintes termos:
O conjunto de entidades evangélicas presentes ao evento protocolou junto à presidência da FUNAI um texto substitutivo à Instrução Normativa em vigor que, entre outras coisas, (a) afasta qualquer possibilidade de avaliação antropológica, promovida pela FUNAI, de suas atividades junto aos povos indígenas, (b) contempla a possibilidade do estabelecimento de Missões/Instituições Religiosas junto aos povos indígenas isolados e ( c) garante a permanência dessas agências em áreas indígenas até mesmo onde seus membros venham a ser afastados por descumprirem as normas definidas pelo Estado para o ingresso e permanência dessas Missões/Instituições Religiosas. Em outras palavras, as entidades evangélicas propuseram à FUNAI a adoção de novos parâmetros de atuação que podem ser resumidos no lema "laissez faire, laissez passer". Preocupada com a possibilidade de um retrocesso da política indigenista oficial diante da questão, ciente das responsabilidades da Antropologia na consolidação de um Estado democrático, onde são reconhecidos aos povos indígenas suas organizações sociais, costumes, línguas, crenças e tradições (CF, Art. 231), e com base na manifestação explícita de seu Conselho Científico, reunido em Caxambu, em 24/10/96, a Associação Brasileira de Antropologia encaminhou o documento abaixo ao Sr. Júlio Gaiger, presidente da FUNAI: "A Associação Brasileira de Antropologia vem manifestar o seu ponto de vista em relação aos parâmetros para a atuação das missões religiosas em áreas indígenas, atualmente definidos na Instrução Normativa n. 002/FUNAI/ PRES/1994. Antes de mais nada, é preciso reafirmar que, em hipótese alguma, se justifica a delegação às organizações religiosas da responsabilidade de assistência às comunidades indígenas, sob o argumento da falta de recursos humanos e financeiros do Estado. Definitivamente, não é possível substituir a assistência devida pelo Estado às populações indígenas por uma ajuda humanitária condicionada à aceitação de práticas evangelizadoras. Diante desta consideração inicial, a ABA propõe que nos contextos específicos onde se delega às organizações religiosas a prestação de serviços assistenciais, sejam criadas instâncias independentes de controle e avaliação capazes de assegurar a qualidade dos serviços realizados. Propõe, ainda, que o Poder Público garanta a continuidade e a eficiência dos serviços assistenciais, necessários para que as populações indígenas alcancem sua autodeterminação. Finalmente, a formulação de políticas públicas em relações às populações indígenas deve levar em consideração os conhecimentos já gerados pelas diferentes agências da sociedade civil, tendo em vista as especificidades de cada caso. Em relação ao texto da Instrução Normativa 002/FUNAI/PRES/94, a ABA propõe a reformulação do Artigo 4, nos seguintes termos:
"Nas Áreas Indígenas onde já operam Missões/ Instituições Religiosas, a manifestação da vontade das sociedade indígenas quanto à presença missionária far-se-á através dos mecanismos próprios de representação dessas sociedades, o que inclui necessariamente as lideranças indígenas e suas organizações."
Esta manifestação deverá ser aferida por meio de avaliação antropológica, exatamente de acordo com os parâmetros já estabelecidos nos itens I e II do artigo 4. Consideramos, ainda, plenamente adequado o Artigo 7 que vincula a continuidade das atividades missionárias em áreas indígenas ao cumprimento de uma série de procedimentos e regras detalhados nos itens I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X e XI da Instrução Normativa em vigor. A ABA chama a atenção para a necessidade de acompanhamento permanente das atividades missionárias, sobretudo onde elas envolvem ajuda humanitária nas áreas de saúde, educação e desenvolvimento comunitário. A avaliação e o controle sistemáticos da atuação missionária são imprescindíveis para assegurar a excelência dos serviços prestados. O monitoramento da ajuda prestada pelas agências missionárias, insistimos, deve ser observado desde o momento inicial até o término dos convênios que estabelecem eventuais parcerias entre o Estado e essas agências. A formulação e a implementação das instâncias independentes de avaliação, nos termos aqui propostos, deverão contar com a participação de representantes da Comissão Intersetorial de Saúde do Índio, do Conselho Nacional de Saúde/MS, e do Comitê de Educação Indígena do MEC. Os pontos arrolados constituem uma síntese de nossas preocupações em relação à regulamentação dos acordos que venham a ser firmados entre Estado e organizações religiosas. Além disso refletem a posição do conjunto dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia, Sociologia e Ciência Política brasileiros, conforme manifestação unânime da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, em outubro último. Neste sentido, a Associação Brasileira de Antropologia considera imperioso que as sociedades indígenas, através de suas organizações e lideranças, sejam finalmente ouvidas pela FUNAI no que diz respeito à atuação de agências religiosas. Tratar questões como saúde, educação e desenvolvimento comunitário para as sociedades indígenas de modo meramente burocrático corresponde a um equívoco que o órgão indigenista deveria definitivamente evitar".
Brasília, 29 de novembro de 1996
Fernanda Peixoto e Marcio Silva
Boletim da ABA # 27
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