Política Indigenista:

Modernização e Clientelismo: o Caso das Terras Indígenas

Mais de um ano após a assinatura do Decreto 1.775, que modificou o procedimento para a demarcação das Terras Indígenas no Brasil, é preciso fazer um balanço de seu significado. Na época, o decreto foi vendido à sociedade como uma necessidade, digamos, técnica. Matéria etérea, à qual só os doutores da lei podiam ter acesso, e que era neutra do ponto de vista político. O então Ministro Jobim apresentava-o como um instrumento de modernização e racionalização, cujo intuito era sanear, jurídica e administrativamente, o processo demarcatório. Em tom didático, o jurista explicava à sociedade o caráter inelutável de tal medida. Diante desse saber luminar, os antropólogos, presos a uma visão tão romântica quanto falsa, deveriam se curvar, deixando espaço para o predomínio da razão. O embate assim se apresentava, e o tom didático do Ministro correspondia ao do missionário benevolente, civilizador do gentio.

Ao fim do processo, ou da primeira parte dele, o que vemos? Aquilo que se apresentava como um movimento de racionalização interverteu-se em seu contrário. Se é possível caracterizar o processo por uma expressão, esta deveria ser "modernização clientelista". Sob o verniz iluminista escondia-se - e isto a sociedade civil jamais ignorou - uma transferência de poder, que permite ao Ministro da Justiça e ao Governo como um todo, atender às demandas de grupos políticos e interesses privados locais. A tese sobre a necessidade de universalizar as regras constitucionais, das quais as terras indígenas teriam sido incorretamente excluídas, converteu-se na prática em mais um instrumento clientelista.

Essa conversão do universal em particular parece endêmica aos projetos brasileiros de modernização, pois eles tendem a ignorar as relações de poder preexistentes. A regra é aplicada como se a sociedade fosse um agregado de indivíduos abstratos, igualmente livres em sua capacidade de escolha. Um exemplo paradigmático desse fenômeno é a introdução do voto direto e universal (com a exclusão implícita das mulheres) na primeira constituição republicana, que acabou por se tornar um dos vértices da política clientelista do coronelismo.

No caso, a justeza da regra não está em questão. Tratar-se-ia de conceber mecanismos adicionais para contrabalançar as desigualdades estruturais de poder. No caso das terras indígenas, a Constituição de 1988 tem precisamente esse sentido. Ao consagrar o direito originário dos índios às suas terras, a sociedade brasileira contemporânea reconhece que o país não foi simplesmente 'descoberto' e 'povoado', mas conquistado e reocupado. A regra estabelece uma diferença para contrabalançar uma desigualdade: aquela entre sociedade envolvente (e seus agentes) e povos nativos. O decreto 1.775, ao contrário, introduz uma igualdade formal para reforçar uma desigualdade de fato. O discurso constitucionalista que legitimava o decreto interverte-se, assim, em um instrumento anticonstitucional, solapando os princípios ético-políticos que fundamentam o artigo 231.

Essa constatação é feita por alguém que acompanhou de perto o processo e foi, inclusive, um de seus agentes. Como 'especialista' em um dos grupos remetidos ao limbo (os Apyterewa-Parakanã), fui chamado a intervir mais de uma vez, e acabei coordenando um grupo técnico, que realizou estudos complementares sobre a área, por determinação do Ministério da Justiça. Junto com o Ministério Público Federal, elaboramos um projeto para viabilizar a demarcação da área, que foi discutido com os Parakanã, com representantes de ONGs, com membros da Igreja e levado ao Poder Executivo. O ex-ministro Jobim, contudo, preferiu ignorar nossa proposta, deixando claro que, em seu entendimento, o decreto era uma espécie de carta branca conferida ao titular da pasta da Justiça. E ele, de fato, fez uso dessa prerrogativa que atribuíra a si mesmo, por meio de um despacho publicado no Diário Oficial da União, no dia 8/04/9, pouco antes de assumir uma vaga no Supremo Tribunal Federal.

No documento, embora acate nosso relatório técnico no que tange à improcedência das contestações e à conformidade do estudo de delimitação original com a Constituição Federal, afirma que, ainda nesse caso, não se estaria impedido de fazer "ajustes, ditados pelo interesse público". Assim, determina a alteração dos limites da T.I. Apyterewa-Parakanã, que deverá levar a sua redução em um total de, aproximadamente, cento e sessenta mil hectares, redução qualificada no despacho como 'insignificante'. O mais surpreendente, contudo, é o reconhecimento de uma área, de quase quarenta mil hectares, titulada em nome da Exportadora Perachi. Contrariando dois laudos antropológicos anteriores, o Ministro decreta em sua onisciência que a "gleba em questão [...] não é habitada pelos índios, não é utilizada pelos mesmos em atividade produtiva, não se mostra imprescindível à preservação de seus recursos ambientais, nem necessária a sua reprodução física e cultural. E o que é mais importante, não se revestia desses requisitos constitucionais quando o título dominial foi expedido pelo Poder Público [...]". Não me cabe aqui desmentir tal afirmação. Todos os dados necessários para esse fim encontram-se no relatório técnico. No mais, se o Ministro admite que a delimitação original está em acordo com a Constituição Federal, como é possível que parte do território não o esteja? O todo está conforme, mas parte não está? (Em outros tempos, a antropologia explicaria tal proposição por meio da noção de pensamento pré-lógico...). Os problemas com a decisão, porém, não param por aí. Em primeiro lugar, salta aos olhos a desigualdade de tratamento dado a Perachi e aos Parakanã. Para que os últimos tivessem suas terras reconhecidas, exigiram-se dois estudos técnicos detalhados; para que a Perachi conseguisse anulá-los, bastou-lhe apresentar alguns documentos. Ora, não se pode ignorar que a maioria dos títulos na Amazônia, com suas respectivas cadeias dominiais, devem ser vistos a priori com cautela. Não se pode afirmar, nem infirmar nada sobre eles, antes que sejam objeto de investigação, principalmente quando incidem sobre território indígena em uma extensão tão grande. Tomar decisões com base apenas em títulos ostentados é, no mínimo, ingenuidade. Em segundo lugar, o fato da área não ser tida como indígena na época da titulação original, não altera em nada o caráter da área. O reconhecimento administrativo das terras indígenas é um ato secundário, pois o direito originário dos índios sobre suas terras precede a esse reconhecimento. Isto está claramente expresso no art. 231 da Constituição Federal de 1988, que não é senão a consolidação de um entendimento que veio se sedimentando ao longo dos últimos trinta anos.

Por último, é preciso inserir o despacho nas condições sociais e políticas reais. A Exportadora Perachi é uma grande madeireira com sede em Belém, que invadiu os territórios dos índios Parakanã, Xikrin e Araweté, explorando ilegalmente mogno na região de 1986 até hoje. Foi autuada e multada pelo IBAMA, processada pelo Núcleo de Direitos Indígenas e, por diversas vezes, saqueada em ataques dos Parakanã. Devastou cinco mil hectares de floresta virgem no centro do território indígena para formação de pastagens, e construiu mais de cem quilômetros de estrada, rasgando a mata, para escoar a madeira até a cidade de Tucumã. Como é possível, então, que uma empresa que cometeu toda sorte de ilegalidades, possa ter direitos reconhecidos sobre uma terra que invadiu e espoliou? Qual a concepção de "interesse público" que pode ditar tal decisão? Por que a União abriria mão de terras de seu domínio e posse indígena em prol de uma empresa privada, que reconhecidamente infringiu a legislação?

É necessário qualificar devidamente o fato: trata-se de um ato violento de expropriação legitimado por um discurso jurídico e pela autoridade de quadros estatais. O Governo, ao invés de cumprir sua função reguladora, equilibrando e disciplinando as relações de poder na sociedade, utiliza o direito para promover poderosos interesses particulares. É preciso colocar essa violência em primeiro plano. O grande erro na discussão sobre o decreto 1.775 foi aceitar os termos do problema: ao se fazer abstração da realidade sócio-econômica sobre a qual se aplicaria, admitiram-se os efeitos perversos que ele veio a ter. O fato do despacho sobre a T.I. Apyterewa-Parakanã, assim como outros em seu gênero, ferir os princípios constitucionais, não deve nos surpreender, pois tais princípios fundam-se em percepções ético-políticas diversas daquelas que estão na origem do decreto 1.775.

Caberá certamente ao Ministério Público Federal mover uma ação visando revogar as decisões do ex-Ministro. Cabe a nós antropólogos, porém, muito mais. Cabe-nos recolocar os termos da discussão: enquanto profissionais, não podemos aceitar que um Ministro, qualquer que seja ele, atribua-se um conhecimento que ele não detém; enquanto cidadãos comprometidos com uma verdadeira democratização da sociedade brasileira, devemos resgatar o conteúdo ético que inspira o artigo 231 da Constituição Federal; enquanto especialistas do particular, devemos duvidar de discursos que, em nome de uma racionalidade universal, imputam-nos o atraso, para em seguida promovê-lo.

Carlos Fausto


A questão Waiãpi

Dominique Gallois, docente da Universidade de São Paulo, realiza pesquisa etnológica entre os Waiãpi desde 1978. A partir de 1991, coordena um Programa do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) que atende a demandas formuladas por estes índios. Atualmente, orienta 12 alunos que fazem pesquisa na região. Até recentemente, foi responsável pelo Núcleo de Implantação do Campus Avançado da USP no Amapá.

A antropóloga encontra-se lamentavelmente impedida de regressar ao campo em virtude de recente decisão judicial. O Reitor da Universidade de São Paulo manifestou o apoio da comunidade universitária à antropóloga, em carta ao Ministro da Justiça. O presidente da Comissão de Assuntos Indígenas da ABA, Prof. Roque de Barros Laraia, por sua vez, acompanhou a Profa. Dominique Gallois em encontro com o Presidente da Funai, realizado em 11 de setembro. Além disso, a ABA pretende realizar nos próximos dias uma reunião extraordinária para avaliar a questão e definir uma agenda, junto com a USP, para equacioná-la. Segue abaixo um breve relato da situação.

Campanha contra o projeto de autonomia dos índios WAIAPI, Amapá

Os índios Waiãpi tem demostrado, ao longo dos últimos anos, capacidade de controle sobre sua terra, demarcada e homologada graças a sua intensa participação. Uma terra que está livre de invasões por força do controle que eles mesmos vem exercendo sobre seus limites, há muitos anos. Essa terra indígena continua, entretanto, alvo de interesses dos setores que propagaram, em outras regiões da Amazônia, destruição e morte de inúmeros grupos indígenas. Agora, por conta da interferência de agentes reconhecidamente envolvidos com este modelo destrutivo, está ocorrendo naquela área um gravíssimo retrocesso no que toca ao respeito dos direitos indígenas e às diretrizes de projetos e acordos internacionais, como o Programa Piloto para Conservação de Florestas Tropicais / G7, que tem avançado na implantação de alternativas de desenvolvimento em forma participativa, socialmente e ambientalmente sustentáveis.

O ouro da terra Waiãpi interessa aos setores representados pelo Deputado Federal Antonio Feijão (PSDB/AP), que desde 1993 move campanha contra os índios Waiãpi e contra o Centro de Trabalho Indigenista, entidade parceira dos índios no seu processo de construção de autonomia. As almas dos Waiãpi são objeto de desejo de uma missão de fé, a New Tribes Mission, que também participa ativamente desta campanha, sob os auspícios do modelo assistencialista que a política indigenista governamental vem reforçando nos últimos meses. O controle paternalista do futuro do povo Waiãpi é o alvo dos funcionários da ADR Funai local, que para sustentar sua permanência no orgão, defendem práticas autoritárias contestadas pelos Waiãpi e por muitos outros grupos indígenas no país.

A articulação entre o Deputado Antonio Feijão e funcionários da administração local da Funai em Macapá, resultou numa campanha de difamação contra o Centro de Trabalho Indigenista, organização não-govenamental que vem apoiando, desde 1991, demandas concretas da comunidade Waiãpi, representada pelo Conselho das Aldeias / Apina, nas áreas de educação, saúde, controle territorial e implantação de alternativas econômicas em formato social e ambientalmente sustentável. Todas essas ações são discutidas e executadas com a intensa participação das aldeias Waiãpi; como as ações do CTI na área são, sempre, fruto de iniciativas dos índios, eles se consideram autores dos projetos, cuja gestão eles pretendem assumir, com apoio da capacitação que os programas do CTI vem lhes fornecendo. Há dois meses, em decorrência da campanha de calúnias contra o CTI, essas atividades, de caráter assistencial, mas sobretudo educativo, foram interrompidas: o programa de saúde, realizado em convênio com a Secretaria de Saúde do Estado do Amapá; o programa de educação, também em parceria com orgãos estaduais, financiamento da Rainforest Foundation da Noruega e apoio do MEC; o programa de vigilância da Terra Waiãpi, executado em parceria com a Funai e recursos do PPTAL. E um programa de despoluição e recuperação ambiental de uma porção central da área indígena, devastada pelos garimpeiros invasores na década de 70, e que seria executado com apoio do Ministério do Meio Ambiente PD/A.

No final do ano passado, a implantação desse projeto piloto foi suspensa pela Procuradoria Geral da República no Amapá. Desde então, com base em informações parciais e sem considerar nem disposição para ouvir a posição da maioria dos Waiãpi (que foram até repelidos da sede da PGR/AP pela Polícia Federal) o Procurador João Bosco reitera a interpretação equivocada de que o CTI desenvolve atividades de "mineração" na área Waiãpi. Não reconhece aos índios o direito, nem a capacidade de realizar, em forma ambientalmente adequada, a garimpagem aluvionar de ouro em sua própria terra. Esta atividade, que os Waiãpi assumiram a mais de 10 anos, como parte de suas ações de controle territorial, vê-se agora sob suspeita de ilegalidade.

Desde junho, os assessores do CTI estão sendo alvo de ações judiciais. Entre elas, o Inquérito Policial número 067/97 instaurado a pedido do Ministro da Justiça, para apurar "possível exploração de ouro em área de reserva indígena bem como o uso indevido de imagem dos índios pela antropóloga Dominique T. Gallois".

Os representantes da maioria das aldeias Waiãpi e o Conselho das Aldeias vem insistentemente desmentindo as calúnias e solicitando a normalização e continuidade dos trabalhos realizados pelo CTI. Uma caravana de 8 chefes foi a Brasília, em junho; os jovens secretários do Conselho das Aldeias vem produzindo documentos, cartas e incansavelmente procuram ser ouvidos pela imprensa. Mas, no Amapá, suas vozes são caladas, a favor da posição da Funai. Os Waiãpi, para quem esta guerra de papéis é uma experiência nova e extremamente desgastante, continuam aguardando respostas da Funai. Até o momento, a ADR local só lhes deu uma resposta truculenta, quando no dia 11 de agosto, solicitou à Polícia Federal retirar a equipe do programa de saúde da área.

Pouco depois, o Procurador da República no Amapá, João Bosco Araújo Fontes Junior, encaminha ao Juiz Federal em Macapá, uma Ação Civíl Pública com pedido de liminar, contra a União (Ministério do Meio Ambiente), a Funai e o CTI. O juiz fedeal em Macapá acata o pedido e determina na liminar: proibir a implantação do Projeto Recuperação Ambiental e Despoluição de Áreas da Terra Waiãpi degradadas por garimpo (de autoria do CTI e do Apina, com financiamento do MMA/PD-A; determinar a retirada e proibição de ingresso de qualquer representante o técnico do CTI da área indígena Waiãpi, diante da "nocividade de sua presença para os índios" alegada pelo Procurador Bosco; determinar à Funai que retome todo o trabalho de assistência à população Waiâpi "eventualmente" prestado pelo CTI; assegurar aos servidores da Funai o livre acesso na reserva indígena, advertindo-se aos membros da comunidade sobre a ilegalidade da manutenção de atividades de garimpagem que deverá ser imediatamente cessada.

Se os índios estão sendo impedidos de exercer com exclusividade uma atividade que lhes é garantida pelo artigo 44 do Estatudo do Índio, é certamente porque o ouro de sua terra deve ter, para os autores da campanha difamatória, como o Deputado Feijão, um outro destino. Uma coincidência recente que não pode deixar de ser mencionada é a aprovação, pelo senado, do Projeto de Lei Jucá, que regulamenta a mineração em terras indígenas. É preocupante que interesses e empreendimentos de garimpeiros consigam, por via de uma maquiagem empresarial que a lei exige, penetrar nas terras indígenas. Com a regulamentação em curso, essas terras deixarão de ser "santuários".

Nesse contexto, vale destacar a contradição entre a possível abertura das terras indígenas à empreendimentos desse tipo e a imposição de um modelo protecionista autoritário, que nega aos índios, voz e capacidade de estabelecer parcerias que contribuam à construção de sua autonomia e à proteção de sua integridade territorial.

As atitudes tomadas pela Funai em Macapá são efetivamente um retrocesso preocupante neste momento, quando se sabe que esta administração local não tem condições de desenvolver programas que apoiem os índios a construir por eles mesmos e com dignidade, seu futuro. Limitar os índios a um assistencialismo via de regra deficiente, comprovadamente tem contribuído apenas em abrir as portas à cooptação dos índios por parte de setores interessados na exploração e destruição das terras e das vidas indígenas.

Dominique T. Gallois




Boletim da ABA # 28