Política Indigenista
Os procedimentos na identificação de terras indígenas: relato de uma experiência A partir do decreto presidencial número 1775, de 8 de janeiro de 1996 e da portaria 14 do Ministério da Justiça, de 9 de janeiro de 1996, foram introduzidas algumas mudanças nos processos de identificação de terras indígenas, alterando o desenvolvimento do Grupos de Trabalhos e a elaboração dos relatórios antropológicos. O decreto e a portaria trouxeram à tona a atuação do antropólogo em campo, no sentido de conformar a coleta de dados e a composição do relatório como uma peça jurídica fundamental. Entretanto, a perspectiva dada ao trabalho de campo não foi propriamente novidade para os antropólogos, mas sim a exigência de uma forma específica para a apresentação dos dados técnicos. O decreto 1775 causou polêmica, pois estabeleceu no processo administrativo da demarcação o chamado "princípio do contraditório", abrindo a possibilidade de contestação dos limites das terras indígenas. A portaria MJ 14, baseada no parágrafo 6° do artigo 2° do decreto, por sua vez, determinou um roteiro para a construção do relatório, apontando questões que devem necessariamente constar do texto e como deve ser sua estrutura. Se do ponto de vista jurídico tal modelo de formatação dos dados é factível, do ponto de vista antropológico, cabem muitas dúvidas. Tais dúvidas só se tornaram evidentes quando fui para o campo, encarregado da primeira identificação de terra após a publicação dos referidos decreto e portaria. Estive, entre janeiro e fevereiro de 1997, na condição de coordenador de Grupo de Trabalho, revisando os limites da Terra Indígena Tenharim do Igarapé Preto, no estado do Amazonas, como parte do Programa Integrado de Proteção às Terras e Populações Indígenas da Amazônia Legal - PPTAL. Em 1984, Alceo Cotia Mariz, antropólogo da FUNAI, fez a primeira proposta de área para os Tenharim do Igarapé Preto. No ano seguinte, devido a uma série de conflitos na região, Miguel Menéndez, antropólogo da Universidade Estadual Paulista - UNESP, já falecido, estabeleceu um novo limite para a Terra Indígena do Igarapé Preto. No período em que Menéndez esteve entre os Tenharim, uma empresa mineradora do grupo PARANAPANEMA explorava uma área dentro do território indígena. Desta maneira, a proposta acabou não considerando o trecho de terras então utilizado pela empresa. Somente em janeiro de 1996, a FUNAI requisitou a anuência formal da comunidade indígena sobre os limites propostos por Menéndez. Neste momento, a empresa de mineração já havia abandonado suas atividades, deixando no local um rastro de destruição e uma cidade fantasma. Os Tenharim reivindicavam assim uma nova definição de limites, com a inclusão da sede da empresa, da pista de pouso e de um castanhal. Uma primeira viagem foi realizada para precisar estes dados e propor a formação de um grupo de trabalho para a revisão. Em seguida foi constituído o GT, que efetivou os estudos e a nova identificação da área. O grupo compunha-se de dois técnicos agrícolas - um da FUNAI e outro do INCRA, para o levantamento fundiário; um técnico em agrimensura da FUNAI para registrar os limites; um biólogo para avaliar o impacto ambiental da mineração no local e a utilização dos recursos naturais pela população; e um antropólogo para efetuar o levantamento antropológico, assessorar os demais membros da equipe e sintetizar a contribuição dos colaboradores no relatório final. O trabalho em campo desenvolveu-se de maneira tranqüila e com intensa participação dos Tenharim. De posse dos dados, iniciou-se a etapa da composição do relatório, tendo como referência a portaria 14. Se a portaria pode servir como um roteiro, contudo sua aplicação é algo restrita. Ela exige a alocação dos assuntos levantados em campo em diferentes itens do relatório, lembrando a composição de clássicas monografias. Em alguns momentos, é preciso retomar um tema já discutido em outro item, para acompanhar a ordem dos tópicos. A proposta da portaria, em resumo, é a seguinte: I. Dados gerais; II. Habitação permanente; III. Atividades produtivas; IV. Meio ambiente; V. Reprodução física e cultural; VI. Levantamento fundiário; VII. Conclusão e delimitação. Tal fragmentação da organização social para encaixá-la no relatório pode trazer certos problemas de entendimento sobre a sociedade em estudo. Os Tenharim, por exemplo, são o que se pode chamar de uma "sociedade do serviço da noiva". O noivo deve se mudar e trabalhar para seu sogro por aproximadamente cinco anos. Depois disso, caso o sogro não tenha prestígio, pode voltar a residir próximo de seu pai e incorporar-se ao seu grupo doméstico de origem. Neste caso, tópicos como atividades econômicas (parte III) e reprodução física e cultural (parte V), estão intrinsecamente relacionados. Entretanto, não vejo esta questão como um problema insolúvel, embora possa parecer uma redução antropológica em favor de uma eficácia jurídica. Um manual de orientação para quem nunca participou de identificações, de todo modo, é sempre uma ajuda quando se está em campo. Trabalhei com a perspectiva etnográfica quando realizava o levantamento nos Tenharim. Tive a vantagem de estar de posse de um mapa pré-elaborado (era uma revisão), que permitiu o acompanhamento pela população Tenharim de todas as etapas do trabalho. O desenvolvimento era constantemente apresentado e discutido com os líderes e, assim, novos dados surgiram desde minha pesquisa de mestrado. Estes foram para o diário de campo, porém não chegaram ao relatório final, pois não eram especificamente voltados para a discussão sobre o território. Pela experiência que tive neste trabalho de delimitação da Terra Indígena Tenharim do Igarapé Preto, vejo que há necessidade de uma preparação do antropólogo, antes de partir para o campo. Elaborar um trabalho de delimitação, em tão pouco tempo, só foi possível devido ao conhecimento anterior, tanto da região, como da organização social Tenharim. Sabemos que muitas vezes não existem estudos sobre um povo específico e, neste caso, há a necessidade de um tempo maior para o trabalho de campo do antropólogo e da equipe técnica. Seria ideal que a toda a equipe tivesse uma certa afinidade com a área em questão, pois é perceptível uma diferença de expectativas com relação ao levantamento. O antropólogo, em geral, está envolvido politicamente com o trabalho, o mesmo não ocorrendo com os demais membros da equipe técnica. O que falta, neste caso, é uma preparação, que poderia ser realizada pelo coordenador na sede mais próxima do local onde se realizará o trabalho. Não afirmo, com isso, que não há envolvimento político dos demais membros da equipe. Apenas que há uma diferença neste envolvimento. Para quem realiza vários trabalhos de identificação, começa-se por contabilizar áreas, perdendo-se de vista povos, histórias e conjunturas políticas. É importante que haja uma articulação, por parte do coordenador, com todas as instituições que atuam direta ou indiretamente com o povo que reivindica um território. Deve haver também um incentivo aos demais membros da equipe para que façam o mesmo. Sabemos que diferentes organizações não governamentais, embora nem sempre tendo boas relações entre si, convivem efetivamente com as populações e podem trazer informações fundamentais para o processo de identificação. Esse conhecimento prévio de uma sociedade específica é que naturalmente faz do antropólogo o coordenador dos GTs que realizam estudos de áreas indígenas. Acredito que fazer levantamento de dados, mesmo que sob "encomenda", para a elaboração de relatórios de identificação territorial e outros, ainda é fazer antropologia. Saber como se articulam os grupos políticos internos e suas relações com o exterior, determinante para o bom desenvolvimento dos trabalhos, é central no conhecimento do antropólogo. E só se sabe isso a partir de uma boa pesquisa de campo, com base no instrumental antropológico de observação. O relatório deve ser conseqüência de todo trabalho acima referido, e não o contrário. Ter um roteiro é interessante, mas este não pode caracterizar-se como uma camisa-de-força que determina, a priori, a estrutura de apresentação dos assuntos. A portaria 14 impõe, de uma certa maneira, malabarismos de quem redige o relatório para encaixar os dados nos itens propostos. Apesar disso, por ser uma peça jurídica, é de fato interessante que existam alguns pontos fundamentais similares entre os relatórios. A linguagem acadêmica não pode ser suprimida, mas deve dar espaço às devidas explicações dos conceitos, no corpo do texto ou no rodapé, pois os relatórios não se destinam apenas aos antropólogos, mas a administradores e autoridades. Levando estes fatores em consideração, seria interessante fazer o processo inverso ao da portaria 14, avaliando todos os relatórios realizados até o momento e, a partir disto, discutir e definir, em amplos fóruns, os pontos capitais que devem constar nos trabalhos futuros. E, fundamentalmente, é preciso repensar os conceitos legais, redefinindo-os à luz de um diálogo que contemple a possibilidade da existência de diferentes lógicas. Edmundo Antonio Peggion
Boletim da ABA # 29
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