Artigo

Mafalala, a terra de outros mulatos

A frase "Eu devia ter nascido no Brasil", com que José Craveirinha, o mais prestigiado poeta moçambicano, inicia a conversa ganha maior sentido quando se revela a sua intimidade com a cultura brasileira nos mais diversos registros. Leônidas (o inventor da "bicicleta"), Câmara Cascudo, Joracy Camargo, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Fausto, Nelson Werneck Sodré, as marchinhas de carnaval e Portinari são referências presentes no universo de um homem que não abre mão de uma integral relação com o espaço onde nasceu e que habita desde que pôde escolher onde estar. De Garrincha a Eusébio, a comunhão se evidencia exprimindo a força de uma identidade que, ao longo dos anos, se consolidou em contraposição à brutalidade da engrenagem colonial. Privilegiadas certas matrizes de sua cultura, com a graça do futebol convivendo com o forte caráter social da obra de alguns escritores, o Brasil oferecia-se como um positivo espelho para quem recusava-se a creditar nas promessas de igualdade anunciadas nos projetos de assimilação com que o governo português tentava seduzir certas camadas da população.

Na realidade, a casa fica ainda no Alto Maé, e para chegar lá não é preciso endereço. Todos nas proximidades sabem e indicam com indisfarçado orgulho o local onde o escritor escolheu ficar vivendo. Ali, bem perto, a poucos metros, fica a avenida de asfalto separando a cidade de cimento da cidade de caniço, expressões que encerram um universo de diferenças na geografia cultural da capital do país. E logo que termina o asfalto começa a Mafalala, espaço marcante no imaginário do poeta, espécie de lugar mítico por onde circulam muitas das imagens que tiveram força na história da cidade e do país.

A distância é pequena, mas a atmosfera se transforma. Conduzida pelo poeta, a travessia permite ir além do contato com os sinais de carência que também constituem um traço daquele pedaço da cidade. O pretexto inicial, conhecer o campo de futebol onde começou a jogar o célebre Eusébio, mal escondia outros motivos para aproveitar a generosa disponibilidade do poeta, com o qual queríamos estender a rica conversa. Graças a sua orientação, pudemos chegar numa das casas que viveu Samora Machel, um dos heróis da independência de Moçambique, outro personagem a alimentar a mitologia da Mafalala. As expectativas foram ainda superadas porque pudemos conhecer o espaço que, entre os anos 40 e 60, povoado por certas características, projetava na distante costa oriental da África, de forma tão intensa, a imagem do Brasil.

O Brasil das serestas, modinhas e sambas, o Brasil da tolerância e da convivência racial, o Brasil que cento e tal anos antes havia se tornado independente convertia-se numa força utópica que realimentava as dinâmicas artérias da Mafalala, um dos subúrbios da então Lourenço Marques. A palavra, tão sonora, é na verdade uma corruptela de nifualala, nome de uma dança dos macuas, o maior grupo étnico de Moçambique. Provenientes da margem esquerda do rio Zambeze, sobretudo de Nampula, uma província situada na região norte de Moçambique, os macuas ali se misturaram a outros povos vindos de muitos e diferentes pontos do país e outras terras distantes. Por aquelas ruas viveram, desde sempre, imigrantes de Cabo Verde, comerciantes monhés (indianos e paquistaneses) e brancos pobres, assegurando ao bairro uma intensa convivência racial e cultural e um inegável ar cosmopolita. O bairro, com nome de dança, confirmava o universo de trocas simbólicas e materiais que teriam marcado a própria formação moçambicana. Erguia-se ali, portanto, um microcosmo do ambiente que se criara nas margens do Índico, contrapondo-se à segregada ordem que marcava a cidade colonial.

Separadas da cidade de cimento por apenas uma avenida coberta de asfalto, as ruas de areia compunham um desenho muito especial que os habitantes da cidade elegante não podiam decodificar. Incompreensível, o bairro protegia-se da rigidez da código colonial e instalava uma ordem baseada noutra lógica. Feitas predominantemente de caniço e zinco, as casas estabeleciam um forte contraste com as enormes vivendas do Bairro da Polana e os imponentes sobrados da Baixa, reduto da gente que contava na gestão do modelo colonial. Preenchidos por grandes árvores, os quintais abrigavam os rituais festivos do caju e do canhu, organizados por diferentes grupos que vindos do campo mantinham vivas as linhas da tradição. O esforço das missões para cristianizar os negros conhecia também aí fortes limites. Bastante expressivo é também o fato de numa cidade católica, como a Lourenço Marques de então, ali se terem instalado os já referidos macuas, população islamizada. Fora do centro e do norte, é na Mafalala que se encontram as mesquitas mais frequentadas pelos maometanos negros do país. Quando o islamismo era perseguido pelo governo português, vivenciava-se ali um tão raro quanto significativo exercício de tolerância religiosa.

Se procuramos a voz do poeta no roteiro de seus versos, outros recortes da Mafalala se delineiam. Nos poemas irrompem personagens e situações evocativos da ambiência particular do bairro. Assim em "Dó sustenido por Daíco", poema dedicado a Noêmia de Sousa, outra escritora habitante das imediações do bairro, Craveirinha tematiza a morte de Daíco, lendário violonista das noites aurentinas : " (…) Daíco chateado foi-se embora / mas ficou no "long-plaing da Mafalala / mulato cafuso a vibrar cordas para sempre ( …)" . A música, de que Daíco era um lídimo representante, constituía uma espécie de selo do bairro. Noutro texto, "Violas de lata", as imagens se expõem : " Minha alma grita / súplicas da Mafalala em mutavanas de Xicuembo / e geme timbilas da música de Zavala / no ritmo das blusas de saca / do negro contratado."

A associação da música nos textos se reafirma no depoimento de Craveirinha. Para ele, "ali era tudo cajueiral, e o caju veio de lá também, e debaixo dos cajueiros, é que fazíamos as nossas serenatas. Que música cantávamos? As músicas brasileiras. Se me perguntarem como é que essas músicas chegavam cá, eu não sei. Mas chegavam."

Naquele labirinto no interior do qual a polícia raras vezes se atrevia a entrar, o samba dividia o espaço com o jazz confirmando a dimensão cosmopolita e livre do quotidiano da Mafalala, principal fonte de inspiração do poeta. O paralelo mais uma vez se insinua : se no Brasil, poetas e sambistas encontraram no morro uma forma de escapar à cultura de salão ansiosa por enquadrar o país nos rígidos modelos cunhados na Europa, em Moçambique virá da dinâmica da periferia a resposta criativa de cariz libertador. A produção cultural que se quer moçambicana, e não ultramarina, vai buscar na marginalidade a energia renovadora. Superando a distância física, as identidades motivavam a circulação de bens culturais produzidos noutros cantos, permitindo a apropriação de versos que espelhavam a realidade diária de tantos trabalhadores espalhados pelo mundo afora. Incorporado ao cotidiano daqueles que precisavam se deslocar da Mafalala à cidade do asfalto, o samba se adapta: "Patrão, o maximbombo atrasou / por isso estou chegando agora / trago aqui o memorando da central / o maximbombo atrasou meia hora / O senhor não tem razão / de me mandar embora".

Curiosamente, a divulgação de certas imagens da sociedade brasileira seria estrategicamente utilizada pelo pensamento colonialista português como forma de encobrir o racismo próprio do sistema. Uma leitura mais ligeira do fenômeno poderia detectar na incorporação do Brasil uma postura submissa, de quem cede afinal à pressão do dominador. Todavia, o quadro que se compõe é outro. A relação com o Brasil não se faz de maneira passiva nem configura uma exclusividade. A recusa do patrimônio metropolitano, que se quer impor como referência fundamental, será dinamizada pelo contato com outras tradições culturais, o que significa que, ao lado da aparentemente espontânea importação de marcas da cultura brasileira, articulava-se o diálogo com a produção artística de outras latitudes. Assim, a leitura de Jorge Amado e Graciliano Ramos se fazia a par com os textos de Césaire, Guillén e os afro-americanos como Richard Writgh e L. Hughes. Tal como no terreno musical, os acordes do jazz, que também animavam os bairros periféricos da vizinha África do Sul, atravessavam as noites da Mafalala.

Passadas algumas décadas e históricas transformações, a cidade mudou até de nome. Maputo em muito difere da senhorial Lourenço Marques. A independência do país num contexto revolucionário extinguiu as fronteiras entre o caniço e o cimento e, ocupadas pela população africana, as avenidas de asfalto já não exibem a cruel fisionomia da hierarquia da ordem colonial. Hoje, quando os diferentes grupos étnicos e raciais circulam pela cidade, as igrejas e mesquitas se confundem na paisagem urbana, é surpreendente que os habitantes de Maputo ainda vejam o bairro como uma "terra de mulatos". É preciso entender a extensão do termo mulato, ligado aqui aos não-brancos que se projetando no mundo da cultura (literatura, música e desporto) conseguiram vencer as rígidas barreiras do racismo: Eusébio, Craveirinha e Daíco, entre outros reconhecidos no mundo dos brancos, mantiveram-se como legendas daquele universo, reforçando o sentimento de auto-estima daquela comunidade de excluídos. Lugar do lúdico, das danças, das serenatas, das festas e da poesia, era também lugar de resistência, o que parece assegurar a preservação de seu caráter mítico. Como se o povo da cidade não esquecesse que a sua origem se associou à coexistência de diferentes formas de estar no mundo. Naquele contexto de violenta segregação, imposto pelo colonialismo, a mistura era já um índice de contestação.

Maputo, 17 de fevereiro de 1998

Rita Chaves
Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas - USP
Omar Ribeiro Thomaz
Cebrap




Boletim da ABA # 29