Homenagem
Berta Ribeiro : Identidade Desâna Lembrar de Berta é reviver sua dimensão de profissional e de amiga. Há porém algumas singularidades em sua biografia que contribuem para melhor conhecê-la e mais admirá-la. Berta nasceu em 2 de outubro de 1924, em Beltz, província de Bessarábia, Romênia. Seus pais eram judeus. A mãe, Rosa Sadovnic Gleiser, morreu quando ela era pequena. Seu pai, Motel Gleiser, foi um atuante líder sindical em Beltz, que, abatido com o suicídio da mulher, decidiu vir para o Brasil com as filhas: Berta, de 8 anos, e Jenny, de 15. Motel estabeleceu-se no Rio de Janeiro como pequeno comerciante. Assim que dominou o português, Jenny começou a trabalhar e logo mudou-se para São Paulo. Foi presa em julho de 1935 e expulsa do Brasil. Motel soube da prisão da filha pelos jornais e mobilizou-se para localizá-la nos presídios paulistas. Instituiu advogado para a menina, mas todos os seus esforços pessoais, assim como os empreendidos pela sociedade civil da época, foram vãos. Jenny fora deportada (antes de Olga Benário Prestes e de outros estrangeiros que tiveram o mesmo destino) durante a ditadura Vargas. Em 11 de outubro de 1935, Jenny foi escoltada pela polícia até o Porto de Santos e embarcada para a Romênia, cujo governo de então era adepto de Hitler. Por sorte, foi libertada em um porto francês, mas ficou impedida de retornar ao Brasil. Com a derrota da revolta comunista de novembro de 1935, Motel começou a ser procurado pela polícia e decidiu ir para a França, ao encontro de Jenny, deixando Berta no Rio de Janeiro. Não chegou a encontrar a filha banida. Sem dinheiro e desempregado, passou por muitas dificuldades em Paris, onde adoeceu e morreu, logo depois de ter deixado o Brasil. Ao completar 11 anos, Berta viu-se absolutamente sozinha. Passou a viver em casa de uma família judia, amparada pelo Partido Comunista Brasileiro. Não podia levar a vida de uma criança normal. Vivia escondida para não ser identificada com a irmã e com o pai e para evitar que fosse deportada para a Romênia, onde já não lhe restava parente algum. Aprendeu a ler, a escrever e a contar clandestinamente, freqüentando grupos de imigrantes que se reuniam com este fim, e só tardiamente ingressou na escola regular. A família que abrigou Berta no Rio de Janeiro mudou-se para São Paulo, onde ela passou a viver com outra família judia, sempre sob o controle do PCB. Estudou datilografia e, ao mesmo tempo, concluiu o ginásio. Aos 16 anos arranjou emprego de datilógrafa e foi morar em pensão, onde tinha um quarto só seu. Disse-me ela que este foi um dos acontecimentos mais felizes de sua vida, pois estava cansada de viver em casas alheias, embora amigas. Ainda em São Paulo conheceu Darcy, durante um comício, e começaram a namorar. Mas o Partidão não fazia gosto no namoro e transferiu Berta para o Rio de Janeiro. Contou-me Darcy que viajava quase semanalmente para o Rio para namorar Berta, escondido do PC. Casaram-se em maio de 1948, sob protestos de Berta, que não queria oficializar a relação para evitar burocracia. De seu amor por Darcy adveio a paixão pela Antropologia, despertada nas primeiras expedições do marido, entre 1949 e 1951 . Foi fiel a ambos por toda a vida, mas após a separação conjugal, dedicou-se com exclusividade e independência aos índios, especialmente aos Desâna do rio Negro, aos quais devotou grande afeição. Berta concluiu a graduação em História e Geografia já casada, no Rio de Janeiro, na Faculdade de Filosofia do Instituto Lafayette, posteriormente incorporada à UEG, e depois à UERJ. Colaborou nos trabalhos antropológicos de Darcy durante as três décadas de casamento, no Brasil e no exílio, sendo sua principal auxiliar e datilógrafa. Separada de Darcy e com mais de 50 anos de idade, dispôs-se a procurar trabalho e a reconstruir a vida. Ainda abatida pelo desenlace, dizia-me ela: "Onde encontrar trabalho com minha idade ? Quem daria oportunidade a uma pessoa com o meu passado, ex-mulher de cassado ?" Falei então com Roberto Cardoso sobre a situação de Berta e ele sugeriu que ela apresentasse um projeto solicitando bolsa ao CNPq. Descrente na sugestão de mestre Cardoso, na época desafeto de Darcy, Berta apresentou o projeto e ficou surpresa quando recebeu a bolsa, ao abrigo do Museu Nacional. Sempre trabalhando muito, obteve sucessivas bolsas que contribuíam para seu sóbrio sustento e logo iniciou o doutorado em Antropologia Social na USP, título que alcançou com a tese "A civilização da palha": dois alentados volumes sobre a arte do trançado indígena e sua relação com a cultura e a vida material dos índios xinguanos e dos afluentes do rio Negro. Berta começou a publicar em 1953, como estagiária e depois naturalista-auxiliar do Museu Nacional, de onde se afasta em 1958 para acompanhar Darcy, designado por JK para criar a UnB. Entre 53 e 58, publicou dois artigos, um deles em colaboração com José Cândido de Mello Carvalho e um livro, A arte plumária dos índios Kaapor, em parceria com Darcy. A partir de 1977 (após retornar do exílio e separar-se de Darcy) é que sua vida profissional ganha dimensão relevante. Publica sete livros e três dezenas de artigos, todos de autoria individual, produz um filme documentário sobre os Asurini e os Araweté e fornece argumento e material etnográfico para outro filme: "Gain Paņan e a origem da pupunheira" (animação dirigida por Luiz Fernando Perazzo). Além da citada tese de doutorado (não publicada), escreveu e editou Antes o mundo não existia, livro baseado em depoimentos de dois índios Desâna sobre sua cosmologia, aos quais concedeu todos os direitos autorais da publicação. Coordenou três volumes da Suma Etnológica Brasileira. Já doente, escreveu o texto de "Índios do Brasil: 500 anos de resistência", livro ainda inédito, que registra toda a informação etnográfica acumulada por Berta sobre os índios brasileiros. Pacientemente, ela reuniu, classificou e guardou em casa um acervo com cerca de 500 peças de artesanato indígena, coleção pertencente a ela, a Darcy Ribeiro e a Eduardo Galvão, que recentemente foi doada à Prefeitura de Brasília (DF) para futura exposição permanente a ser instalada na capital. Projetou e realizou várias exposições no Brasil e no exterior divulgando a cultura indígena brasileira. Em agosto de 1994 Berta adoeceu com um tumor cerebral que a matou em 17 de novembro de 1997. Trabalhou até quando a doença lhe permitiu. Sabia que ficaria inconsciente e queria organizar-se para o fim. Acompanhei-a durante a doença, até seus últimos dias de lucidez. Ela costumava indagar-se sobre si mesma. Não queria viver sem trabalhar e não se reconhecia sem os índios. Freqüentemente dizia: "Eu não posso ser judia, porque não tenho religião... Não tenho família, nem marido, nem filhos. Sou sozinha. Só tenho mesmo meu trabalho com os índios. Devo a eles o que sou... Eu me sinto Desâna." Berta era professora adjunta do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, cargo que ocupou por concurso, em meados da década de 80. Ela recebeu pleno reconhecimento da comunidade de antropólogos brasileiros e foi homenageada, em vida, mais de uma vez pela ABA. Em 1995, já vitimada pela doença, foi condecorada comendadora da Ordem Nacional do Mérito Científico, insígnia concedida pelo governo brasileiro a cientistas ilustres. Reconquistou Darcy, a quem sempre amou, apesar da separação. Sentia-se feliz, confortada e grata com o apoio que o ex-marido lhe dava na fase difícil da doença, mas desconfiava muito das declarações de amor e dos carinhos dele, durante as visitas que este lhe fazia. Então, ele tornou públicas tais declarações amorosas através de entrevistas concedidas à imprensa em 1995 e 1996 e nos dois últimos livros que escreveu antes de morrer, em 17 de fevereiro de 1997. Era tarde demais para mitigar os sofrimentos daquela pequena órfã judia, romena e suavemente brasileira, às vezes, quase ingênua. Fragilizada pela doença, aproximara-se ainda mais da infância. Ela se sentia tão somente Desâna. Maria Stella Amorim
Boletim da ABA # 29
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