Homenagem

 

 

 

VIRGÍNIA VALADÃO
(1952- 1998)

Morayngava é, em Assurini, o desenho que mexe, a imagem animada. O próprio vídeo traz estas imagens do mundo Assurini. Como alguém se torna xamã? Como as mulheres aprendem a dançar? Como manter a tradição da dança dos homens e do ritual das flautas nas celebrações funerárias?

Cognição, aprendizagem, e, mais do que tudo, memória são os grandes temas tratados. "Ninguém vive para sempre", como diz um Assurini. A imagem gravada ajuda as novas gerações a manter viva a presença dos "velhos que sabem". Não se trata de congelar tradições culturais. Imagens - dos mais diversos tipos - são elementos sempre presentes nas sociedades indígenas. E é de imagens, num sentido amplo, que este vídeo trata. Imagens presentes nas diversas situações do ciclo da vida.

As visões de um aprendiz de xamã, recuperadas através de sua memória, são no vídeo visíveis, para nós não xamãs, através de imagens que procuram representar estas visões. São imagens de imagens, quando vemos os Assurini assistindo na "caixa de almas que guarda as sombras" - a TV - a seus rituais, antigos e atuais.

Como manter a presença, o saber, a cultura, quando aqueles que sabem morrem? Este vídeo, de Regina Müller e Virgínia Valadão, realizado na aldeia Assurini do Koatinemo em Janeiro de 1997, mostra bem que isto é possível.

Foi dos últimos vídeos realizados por Virgínia, antes de sua morte, em 2 de Junho de 1998.

Virgínia viveu com paixão e sua atuação foi sempre de vanguarda, compromisso, dedicação e competência para driblar as inúmeras dificuldades, sempre presentes quando se decide levar a sério um ideal de vida. Este vídeo, e os outros por ela realizados: Wai’a - o segredo dos homens (1988) e Yãkwa - o Banquete dos Espíritos (1995), vencedor do primeiro prêmio instituido pela ABA - o prêmio Pierre Verger em 1996, demonstram sua sensibilidade enquanto antropóloga.

Há 20 anos fundamos o Centro de Trabalho Indigenista. Em meio aos anos da ditadura, buscávamos um fórum de atuação junto aos índios. O CTI tem esta marca: uma ONG marcada pelo idealismo de uma geração que se opunha ao regime militar e que, por outro lado, sabia apreciar estilos de vida que em nada se identificavam com o de nossa sociedade, capitalista e individualista ao extremo. Estilos de vida que as sociedades indígenas tão bem exemplificam e que, exatamente por serem tão diferentes, colocam em risco seu próprio futuro, enquanto sociedades com direito a um território garantido no seio da nossa. Virgínia foi de uma militância incansável; sua atuação enquanto antropóloga, comprometida com um futuro mais digno para as populações indígenas, seu senso crítico, sua sensibilidade em captar as diferentes posições envolvidas em qualquer situação de conflito, são as imagens que nos ficam. Seus filhos Rita e Pedro, Vincent Carelli, seu companheiro, seus inúmeros amigos sabem que estas são imagens muito fortes e que nós guardamos. Os índios com quem ela conviveu e trabalhou - Xavante, Urubu Kaapor, Nhambiquara, Tembé, Tenetehara, Guarani, Tenharim, Enawenê-Nawê, Xokleng, e os isolados do Igarapé Omerê, também disso sabem. 45 anos é, para muitos, muito pouco tempo de vida. Mas sabemos também o quanto o tempo é relativo pois a vida de Virgínia foi intensa e apaixonada.

Sylvia Caiuby Novaes
(Presidente do Centro de Trabalho Indigenista
Docente no Dept. Antropologia USP)

 


Boletim da ABA # 30