Comissão de
BRUNA FRANCHETTO / MN-UFRJ DOMINIQUE TILKIN GALLOIS / USP HENYO TRINDADE BARRETO FILHO / UNB JOSÉ AUGUSTO LARANJEIRAS SAMPAIO / ANAÍ - UFBA LUX VIDAL / USP (Presidente) MARCO ANTONIO GONÇALVES / IFCS-UFRJ RAFAEL JOSÉ DE MENEZES BASTOS / UFSC |
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Marco Antonio Gonçalves
IFCS-UFRJ
A Profa. Lux Vidal, Presidente desta Comissão, incumbiu-me de reunir, organizar e editar os textos que ora se publicam. A Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia, procurando abordar a interface antropópolos/questão indígena se defronta, necessariamente, com uma multiplicidade de temas e questões que vão desde informes e acompanhamentos de casos que envolvem direitos indígenas, participação em comissões especiais, reflexões sobre o indigenismo e os laudos antropológicos. O que se publica aqui é uma versão editada de três conjuntos de textos (os textos na íntegra estarão à disposição na homepage da ABA).
O primeiro conjunto, composto pelos textos de Luís Donizeti Benzi Grupioni, Rafael José de Menezes Bastos e Henyo Trindade Barreto Filho, informa sobre a participação dos antropológos, respectivamente, no Comitê de Educação Escolar Indígena do MEC, no recém instalado Conselho Indigenista da Funai e na política do Banco Mundial para os Povos Indígenas no que se refere às perspectivas para a revisão da diretriz operacional vigente.
O segundo conjunto de textos enquadra reflexões sobre o indigenismo, política indigenista e o papel do antropológo face à questão indígena neste fim de século. O texto de Bruna Franchetto aborda o trabalho do antropólogo como perito do poder jurídico na fase de julgamento de ações cíveis que incidem sobre terras indígenas. O texto de Henyo Trindade Barreto Filho informa sobre o Seminário "Indigenismo: Fim de Século" (UNB), que avaliou as perspectivas para o indigenismo no Brasil, abrangendo reflexões sobre alguns casos específicos de prática indigenista, a questão dos direitos dos povos indígenas no Brasil dentro de um contexto internacional e o papel das organizações indígenas e indigenistas. O texto de Carlos Fausto é uma reflexão sobre o fazer política indígenista neste final de século, apontando para a constituição de um novo contexto em que diferentes práticas políticas começam a se delinear, envolvendo novos atores sociais, novas questões e, necessariamente, novas perspectivas.
O terceiro conjunto enfoca casos especificos em que se enquadram os direitos dos povos indígenas. Dominique Tilkin Gallois trata do caso Waiãpi, denunciando o impacto negativo que a prática da tutela abusiva - sobretudo quando dominada por interesses da política local - está tendo sobre o futuro das comunidades indígenas no estado do Amapá. O texto de Denise Fajardo, sobre a negligência e omissão com a saúde dos Tiriyó e Kaxuyana do Parque de Tumucumaque, Pará, questiona a condução da assistência médica aos povos indígenas da região por parte do órgão indigenista oficial. José Augusto Laranjeira Sampaio informa sobre a política indigenista no Nordeste e Leste resenhando oito casos que podem ser considerados os mais graves e mais ilustrativos do andamento da política indigenista nas regiões abordadas.
Deste modo toda a complexidade deste campo denominado questão indígena está refletida nesta variedade de textos apresentados o que por sua vez coloca em evidência as múltiplas interações sociais e políticas que dizem respeito à prática da antropologia junto a povos indígenas brasileiros.
Informe sobre os trabalhos do Comitê de Educação Escolar Indígena do MEC
Luís Donisete Benzi Grupioni
Representante da ABA no Comitê de Educação Indígena do MEC
Neste ano de 1998, o Comitê de Educação Escolar Indígena do MEC reuniu-se uma única vez. Da pauta da reunião dois assuntos merecem destaque: o pedido de regulamentação de dispositivos da LDB referentes à educação indígena junto ao Conselho Nacional de Educação (CNE) e a análise da primeira versão dos Referenciais Curriculares Nacionais para as Escolas Indígenas (RCNEIs).
Em relação ao primeiro ponto, o Comitê elaborou um documento, que foi encaminhado ao CNE, solicitando a regulamentação de uma série de questões referentes à regularização das escolas indígenas e aos cursos de formação de professores indígenas. Este encaminhamento visa equacionar uma série de impasses que estão surgindo na medida em que as escolas indígenas têm sido absorvidas pelos sistemas estaduais e municipais de educação, sem que estes reconheçam a especificidade deste tipo de educação. Os principais problemas elencados dizem respeito à definição: (a) de um estatuto próprio para as escolas indígenas, através da criação da categoria escola indígena, garantindo-lhes acesso aos diversos programas que beneficiam o ensino fundamental, e respeitando suas especificidades; (b) de responsabilidades na oferta da educação indígena entre a União, os Estados e os Municípios; (c) dos limites de diferenciação da escola indígena em relação às demais escolas do ensino fundamental; (d) de parâmetros para a realização de cursos de formação de professores indígenas. Diante da complexidade da temática e da novidade do assunto no CNE, o mesmo resolveu criar uma subcomissão para tratar da matéria.
Com relação ao segundo assunto em pauta, o dos referenciais curriculares nacionais para as escolas indígenas (RCNEIs), os membros do Comitê tomaram ciência da primeira versão do documento. Esta foi elaborada por uma sub-comissão do Comitê juntamente com um corpo de assessores, contratados pela Coordenadoria Geral de Apoio às Escolas Indígenas, composto por professores indígenas e especialistas nas diversas áreas de estudos que compõem os currículos. Nesta fase, começaram a ser identificados diversos aspectos não consensuais da discussão curricular, em termos teóricos e metodológicos, e se iniciou um extensa e demorada revisão do conteúdo do documento, que teve continuidade com a leitura crítica de um grupo ainda maior de pareceristas, de diversas instituições e regiões do país. O documento, após sua reelaboração com os aportes trazidos nesta fase de avaliação crítica de pareceristas, deverá estar publicado no mês de novembro e será então distribuído nas escolas e instituições relacionadas à educação escolar indígena para apoiar a construção de programações curriculares adequadas aos novos preceitos legais e aos subsídios teóricos nele oferecidos
O RCNEI está voltado prioritariamente aos professores indígenas e aos técnicos das secretarias estaduais de educação, responsáveis pela implementação e regularização de programas educativos junto às comunidades indígenas. O documento divide-se em duas partes. Na primeira, "Para começo de conversa", estão reunidos os fundamentos históricos, políticos, legais, antropológicos e pedagógicos que balizam a proposta de uma escola indígena intercultural, bilingüe e diferenciada. Na segunda parte, "Ajudando a construir o currículo nas escolas indígenas" apresenta-se, a partir das áreas de conhecimento, sugestões de trabalho para a construção dos currículos escolares indígenas específicos a cada realidade. Isto é concretizado a partir de indicações de seis temas transversais (auto-sustentação; ética indígena; pluralidade cultural; direitos, lutas e movimentos; terra e preservação da bio-diversidade; e educação preventiva para a saúde) e do trabalho com seis áreas de estudos (línguas, matemática, geografia, história, ciências, arte e educação física). A proposta desta parte do documento é uma integração entre conhecimentos universais selecionados e os etno-conhecimentos de cada povo indígena. Trata-se, assim, de um subsídio que vem ampliar e esmiuçar os princípios traçados no documento "Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena" de 1993. Por sua amplitude, é um documento complexo, sujeito a várias leituras e interpretações. A equipe responsável pela redação do documento buscou a construção de um texto minimamente consensual, num campo marcado por uma grande pluralidade de idéias e concepções divergentes. Pretende-se que ele seja um subsídio para a discussão e implementação de novas políticas e práticas pedagógicas e curriculares em áreas indígenas.
No mês de agosto, a sub-comissão de avaliação de projetos encaminhados por ONGs de apoio aos índios e organizações indígenas para financiamento pelo MEC procedeu ao exame das propostas. Foram aprovados 23 projetos, pedido a reformulação de 5 e reprovados 2. Os projetos encaminhados visam à realização de programas e cursos de capacitação e formação de professores indígenas, realização de encontros de professores indígenas e publicações de materiais didáticos para uso nas escolas indígenas.
Merecem destaque, ainda, dois programas que contaram com a participação de membros do Comitê: o de elaboração de argumentos para a realização de uma série com 10 programas de vídeos sobre a temática indígena para a TV Escola do MEC (que serão produzidos e veiculados em 1999) e a constituição de um cadastro nacional das escolas indígenas, que permita a regularização das escolas indígenas junto aos sistemas de ensino e sua inclusão nos programas de apoio à escola e ao estudante gerenciados pelo MEC.
Neste ano de 1998, apesar do Comitê de Educação Escolar Indígena continuar exercendo uma função propositiva em relação à política do MEC nesta área, como no caso dos RCNEIs e do documento ao CNE, ficou claro um certo esvaziamento de atribuições que vinham sendo por ele desempenhadas, na medida em que várias ações foram desenvolvidas diretamente pela Coordenação Nacional de Educação Indígena do MEC. Esta tem se firmado cada vez mais como instância executora das ações dentro do ministério, selecionando seus assessores e fragmentando ações em sub-comissões do Comitê, enfraquecendo, assim, o poder executor e deliberativo antes experimentado por seus membros.
Saudades do General Ismarth? Sobre a participação da ABA no recém instalado Conselho Indigenista da Funai 1
Rafael José de Menezes Bastos
UFSC
Na manhã do dia 3 de março passado, depois de longo tempo desativado, a Funai reinstalou o Conselho Indigenista, com a seguinte composição: Titulares - Antônio Carlos Silveira (Fundação Nacional de Saúde), Rafael José de Menezes Bastos (Associação Brasileira de Antropologia), João Baptista Borges Pereira (Universidade de São Paulo), Megaron Txucarramãe, Pedro Cornélio Seg Seg Caingang, Francisca Nevantino Ângelo (representantes indígenas) e Benedito Ferreira Marques (advogado e professor da Universidade Federal de Goiás); suplentes - Flávio Pereira Nunes (Fundação Nacional de Saúde), Carlos Fausto (Associação Brasileira de Antropologia), Lux Boelitz Vidal (Universidade de São Paulo), Marcos Terena, Tsuptó Xavante e Estela Maria dos Santos de Oliveira (representantes indígenas) e Marcos Antônio dos Santos.
A solenidade de reinstalação, com a posse dos novos conselheiros - a qual contou com a presença de representantes dos Ministros da Justiça, Exército, Relações Exteriores, do Embaixador da Venezuela, entre outros, além de grande platéia de índios e não-índios - foi extremamente pomposa. Na ocasião, entre muitas intervenções empolgadas, o Presidente da Funai discursou enfaticamente, defendendo a pretensa obra sua de recuperação do prestígio da Funai, aqui relevando a importância da reinstalação do Conselho. A necessidade da contribuição dos antropólogos e particularmente da ABA foi especialmente marcada em sua fala.
Na tarde do mesmo dia, deu-se a primeira reunião do órgão. No fax através do qual os conselheiros foram convocados para a solenidade, bem como para a reunião, simplesmente não constava nenhuma pauta para a reunião. Por outro lado, o Presidente da Funai, Presidente também do Conselho, simplesmente não compareceu ao encontro. O regimento do órgão reza que este deve eleger um Vice-Presidente, para substituir o Presidente em suas ausências e impedimentos. Ausente o Presidente, a reunião foi conduzida pela antropóloga Mari Baiocchi, funcionária da Funai.
Na reunião, a Sra. Baiocchi apresentou para discussão uma minuta de portaria para normatizar o ingresso e a permanência em terras indígenas de "prepostos de entidades civis e religiosas". Também essa minuta envolvendo tema tão complexo, sobre o qual a ABA recentemente (1996) se pronunciara, seja em encontro convocado, aliás, pela própria Funai (gestão do Sr. Júlio Gaiger), seja através de moção passada no encontro da ANPOCS2 não foi encaminhada com antecedência aos membros do Conselho. A meio de tantas irregularidades e procedimentos no mínimo inadequados, a Sra. Baiocchi ainda propôs que a reunião da tarde fosse estendida até a manhã do dia seguinte. Como se verificou, enfim, que não haveria tempo para discussões consistentes sobre o tema, levando-se também em conta que vários dos conselheiros não poderiam comparecer para a não convocada extensão da reunião, acertou-se que, num prazo de 10 (dez) dias os conselheiros enviariam suas observações sobre a minuta ao Sr. Benedito Marques, escolhido relator do assunto. Marcou-se também uma nova reunião para o dia 20/3.
Dentro do prazo estabelecido, os representantes da ABA e da USP, assim como a Sra. Estela Maria dos Santos de Oliveira, fizeram chegar ao Sr. Benedito seus pontos de vista sobre a minuta. Estes votos solicitavam menos açodamento no processo de discussão do documento ou sua rejeição e arquivamento. Note-se que a minuta em tela propõe, de um lado, tratamento indiferenciado para missões religiosas e ongs (indígenas e/ou não) e, de outro, o exercício, por parte da Funai, de um poder absolutamente incontrastável de controle das organizações acima e da legítima vontade própria indígena de com elas eventualmente contar. A Sra. Francisca Nevantino Ângelo também encaminhou documento sobre a minuta, ao qual entretanto não tivemos acesso.
Logo após a primeira reunião do Conselho, tanto o representante da ABA quanto os da USP encaminharam ao Presidente da Funai documentos enfatizando a necessidade de que as próximas reuniões contassem com a sua absolutamente necessária presença, seguindo os procedimentos regimentais, com a eleição inclusive do Vice-Presidente. Com a ausência do Presidente à primeira reunião, o Conselho, enfim, nem se instalara propriamente falando.
A segunda reunião deu-se somente a 27/3, com convocação3 feita fora do prazo regimental (mínimo de 72 horas). Sua pauta era a seguinte:
a. eleição do Vice-Presidente;
b. discussão e aprovação das Normas para Ingresso em Terras Indígenas; e
c. indicação de secretária.
O ponto b da pauta era claramente exorbitante (onde se lê aprovação), pois a minuta das Normas, conforme visto acima, havia sido objeto de votos escritos que ou solicitavam tratamento mais demorado da problemática nela envolvida ou simplesmente a rejeitavam e pediam seu arquivamento, por completa inadequação.
A reunião, marcada para 9 da manhã, não pôde começar no horário pois o Presidente da Funai simplesmente não chegava. Um grupo de conselheiros foi então designado para pessoalmente ir solicitar ao Presidente que viesse, enfim, presidir a reunião que ele mesmo convocara. Aberta, afinal, a reunião (às 10:30), os representantes da ABA e da USP solicitaram que se retirasse de pauta o item b, aí devendo-se incluir um ponto sobre o papel do Conselho (envolvendo a análise de seu regimento) e sobre a elaboração de uma agenda de discussões para o órgão. Justificamos, apontando, de um lado, que o atual regimento desenha para o Conselho um papel consultivo não mandatório e, de outro, que havia muitas questões efetivamente relevantes a serem tratadas pelo órgão (além de seu papel: o Estatuto do Índio, o projeto de lei sobre mineração em áreas indígenas, entre muitos outros pontos emergentes) e que a aprovação da minuta em tempo tão rápido era no mínimo inadequada, conforme os votos escritos de vários conselheiros.
Com relação à minuta, obteve-se retirar da pauta a expressão aprovação, ali ficando discussão. Incluiu-se também o ponto para discussão geral em torno do papel do Conselho e questões urgentes da política indigenista.
Em seguida, os Srs. Rafael e Benedito foram eleitos respectivamente 1o. e 2o. Vice-Presidentes, sendo a Sra. Mari indicada como secretária. Depois, o Presidente retirou-se, o representante da ABA assumindo a direção dos trabalhos. Foi lida a ata da reunião anterior, que reflete bem o que nela havia se passado. Note-se que até hoje, porém, essa ata não foi assinada, os conselheiros, por outro lado, dela não tendo recebido cópia.
Depois, com base no relatório do Sr. Benedito, começou uma rodada de discussões sobre a minuta. Observe-se que essa nova versão do documento não trouxe nenhuma mudança substancial para o mesmo. A reunião foi, então, interrompida para almoço.
A rodada continuou à tarde, quando, enfim, os conselheiros descobriram que atualmente não há nenhum instrumento normativo sobre a entrada e permanência em áreas indígenas de membros de entidades civis e religiosas. Alguns de nós pensávamos que a Instrução Normativa no. 2 (de 8/4/94) que normatizava a questão quanto às missões religiosas ainda estava em vigor. Depois que a Sra. Mari mandou verificar em vários escalões da Funai, porém, foi possível fazer essa descoberta, com a verificação de que a citada Instrução havia sido revogada, nada tendo sido posto em seu lugar. De posse dessa informação, é nossa posição é tornar urgente a normatização do assunto. A minuta disponível, porém, é absolutamente inadequada.
Depois da rodada, que se prolongou por grande parte da tarde, começou-se a levantar os pontos sobre o papel do Conselho, definido pelo regimento respectivo como "órgão de apoio técnico, científico e cultural da Presidência da Funai". Algumas questões urgentes da política indigenista também foram assinaladas. O tempo era curto, porém foi aprovada, por unanimidade, a minuta de uma manifestação contra o projeto de lei, de autoria do Senador Romero Jucá, sobre mineração em áreas indígenas. Sugerimos que o Presidente viesse a fazer tal manifestação junto ao Congresso Nacional.
Depois da segunda reunião, o representante da ABA dirigiu documento ao Presidente da Funai, exigindo priorização das reuniões do Conselho e observância das disposições regimentais, com horários respeitados e outros quesitos. Quanto a assuntos importantes para as próximas reuniões, ali foram levantados os seguintes: discussão do papel do Conselho, elaboração de uma nova minuta que cubra as entidades religiosas neste contexto, tendo sido sugerido que as organizações civis viriam a ser o objeto de exame, caso a caso, do Conselho, providências no sentido da retomada das discussões, no Congresso Nacional, do Estatuto do Índio e outros tema relevantes. Depois dessa reunião de 27/3, o Conselho Indigenista não mais foi convocado.
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1 Este texto reedita alguns trechos de notas apresentadas, via
"e-mail", aos colegas da Comissão de Assuntos Indígenas da gestão Mariza
Corrêa da Associação, informando sobre a primeira (assinadas por mim) e a segunda (por
Lux B. Vidal e eu) reuniões do Conselho.
2 Conforme Boletim no. 27 da ABA.
3 De 25/3, recebida a 26 pelo representante da ABA.
A Política do Banco Mundial para os Povos Indígenas:
Perspectivas para a revisão da diretriz operacional vigente.
Henyo Trindade Barretto Filho
UNB
Atualmente, o Banco Mundial está encaminhando um processo de revisão do conjunto das suas "Políticas Operacionais", no que qualifica como "um esforço para aperfeiçoar o seu leque de políticas e garantir uma maior conformidade, especialmente, com as políticas de salvaguarda (safeguard policies)". Entre as várias diretrizes operacionais vigentes passíveis de revisão encontra-se a OD (Operational Directive) 4.20 sobre povos indígenas, que desde 1991 vem orientando as políticas do Banco e os procedimentos de preparação de projetos que afetam esses povos. Com a divulgação, em agosto último, de um Approach Paper on WB Policy on Indigenous Peoples, o Banco deu início a "um processo sistemático de consultas externas e internas com grupos pertinentes (relevant stakeholders) para facilitar a revisão da OD 4.20, de acordo com a nova política do Banco".
A ABA foi formalmente convidada a participar de um encontro prevista para ocorrer em Brasília, em meados de outubro, que reunirá representantes de organizações indígenas, de órgãos do governo e de organizações não-governamentais de apoio, e antropólogos com experiência de convívio com e estudo sobre povos indígenas que, direta ou indiretamente, sofreram efeitos de intervenções do Banco (aí incluídos os que escreveram, especificamente, sobre essas intervenções). Essa reunião visa, eventualmente, aportar subsídios para a revisão da OD 4.20, a partir de um conjunto de recomendações feitas no suprareferido Approach Paper. A ABA aceitou ao convite e se fará representar formalmente por um membro da Comissão de Assuntos Indígenas, como também pela presença de antropólogos que, de um modo ou de outro, atuaram com povos e em áreas objeto de intervenções do Banco. Participarão da reunião, pelo Banco, Shelton Davis e Judith Lisansky, entre outros.
Na impossibilidade de realizar uma consulta mais abrangente, pois, segundo o Banco, o orçamento para desencadear esse processo em vários países é reduzido, algumas iniciativas têm sido tomadas a título de preparação da reunião. A assessoria do Banco divulgou cópias da diretriz operacional vigente e do Approach Paper para pesquisadores relacionados a povos e terras indígenas da área de influência do Projeto Grande Carajás. Além disso, até a reunião, um grupo de discussão/conferência eletrônica será coordenado pelo Prof. João Pacheco de Oliveira, do Museu Nacional/UFRJ, que, espera-se, discutirá inúmeros aspectos relacionados à revisão da atual diretriz operacional e ao caráter da participação dos antropólogos nesse processo, buscando qualificá-la.
Uma diretriz operacional do Banco "descreve as políticas do Banco e os procedimentos de preparação de projetos" - no caso da OD 4.20, os que afetam povos indígenas - e tem o caráter de obrigatoriedade característico de uma disposição normativa, à qual os Oficiais de Projeto (Task Managers) do Banco devem se conformar. Nela são estabelecidas definições básicas, objetivos de política, recomendações para o desenho e a implementação de atividades ou componentes de projetos - no caso da OD 4.20, para as populações indígenas - e as exigências para o processamento e a documentação.
A OD 4.20 se propõe a oferecer orientações para, nessa ordem: (a) assegurar que os povos indígenas se beneficiem dos projetos de desenvolvimento, recebendo benefícios sociais e econômicos compatíveis com suas culturas, e (b) evitar ou mitigar os efeitos potencialmente adversos sobre os povos indígenas, decorrentes de atividades apoiadas pelo Banco. Tudo isso nos marcos do objetivo geral do Banco face aos povos indígenas, "assim como para todos os povos em seus países membros", qual seja: "assegurar que o processo de desenvolvimento promova o respeito por sua dignidade, direitos humanos e singularidade cultural".
Na diretriz em vigor, bem como na anterior - a OMS (Operational Manual Statement) 2.34, de 1982 -, a expertise antropológica é chamada a desempenhar um importante papel em inúmeros aspectos no decorrer do ciclo dos projetos financiados pelo banco: desde a definição mesma das "populações" às quais a diretriz se aplica, passando pela demanda de envolvimento de organizações e pessoas com "experiência em assuntos indígenas" nos procedimentos para implementação de "planos de desenvolvimento de/para povos indígenas" (Indigenous Peoples Development Plans/IDDPs), até a realização de estudos preliminares (baseline data studies) que "apreendam toda a gama de atividades produtivas e comerciais nas quais os povos indígenas [afetados] estão envolvidos". Isso para ficar nas mais evidentes.
O Approach Paper que deflagrou o processo de revisão da política do Banco face aos povos indígenas declara seguir "a estrutura das políticas de salvaguarda". Esta faria distinções entre: (i) os aspectos de política e de procedimentos que visam evitar danos ou prejuízos a terceiros, aspectos estes que se espera sejam observados integralmente pela equipe do Banco; e (ii) os aspectos positivos, face aos quais a equipe do Banco guardaria maior discrição. Ademais, sugere um enquadramento para a revisão da OD 4.20 baseado nas seguintes recomendações específicas: (a) um processo para "identificar as populações cobertas pela Política Operacional" que se baseie nos critérios prévios de definição, mas dê maior atenção às definições legais nacionais e internacionais e a consultas com os governos, organizações indígenas regionais e nacionais, ONGs e "especialistas acadêmicos"; (b) adesão aos objetivos da diretriz em vigor, porém, com maior "esclarecimento dos padrões mínimos ou condições necessárias para que o Banco tenha segurança de que os povos indígenas não sofrerão efeitos adversos decorrentes das intervenções de desenvolvimento financiadas" por ele; (c) esclarecimentos quanto ao que se espera em termos de análise social, participação e consulta, quanto ao significado da expressão "proteção da terra e dos recursos naturais" e quanto a oportunidade de se fazerem planos de ação para os povos indígenas; e (d) um detalhamento dos "modos como o Grupo do Banco poderá promover o desenvolvimento dos povos indígenas, para além das medidas de proteção, particularmente no âmbito da estratégia mais ampla de redução da pobreza e dos investimentos do setor privado".
É sobre questões dessa natureza e desse grau de complexidade que estamos sendo chamados a opinar, ao lado de lideranças indígenas, organizações de apoio e órgãos do governo. A ABA não poderia se furtar ao debate, entendendo a revisão da OD 4.20 como um processo que vai gerar uma outra diretriz operacional e não algum outro instrumento operativo dos que o Banco possui - como as best practices (boas práticas) - que não guarde o caráter normativo e de obrigatoriedade de uma OD.
Cabe ressaltar, ademais, que entre nós antropólogos o consenso com relação a esses pontos ainda está para ser consolidado - a começar pela definição de povos indígenas. Outrossim, há um conjunto de questões a serem debatidas quanto à nossa participação nesse processo de consulta, das quais gostaria de destacar apenas duas, a título de estimular o debate.
No Approach Paper, o Banco recorda que a OD 4.20 foi elaborada em 1991 como uma diretriz revisada, com base em sua experiência com a OMS 2.34 e em função das mudanças nos padrões internacionais relativos ao tratamento dos povos indígenas. Caberia nos perguntar se não haveria espaço e condições de revisar a diretriz em vigor não só com base nesses dois elementos (i. é., a experiência do Banco de 1991 para cá e as importantes transformações, em especial, na antropologia das sociedades indígenas), mas também incorporando a reflexão antropológica sobre o desenvolvimento, enquanto categoria e praxis cultural e historicamente específicas. Mais edificante do que integrar à praxis do desenvolvimento o nosso conhecimento, ainda que parcial, da dinâmica sócio-cultural dos povos indígenas, seria colocar em jogo tudo o que aprendemos no desvelamento de categorias sócio-culturais centrais desses povos na compreensão do desenvolvimento - categoria e praxis central para nós. Abriríamos, assim, a possibilidade de uma participação mais esclarecida no processo de consulta.
Outrossim, a diretriz atual, mantendo as medidas de proteção da anterior, põe uma ênfase muito grande na necessidade dos povos indígenas participarem e se beneficiarem dos projetos de desenvolvimento financiados pelo Banco. Delineia, também, procedimentos especiais para a incorporação dos interesses dos povos indígenas afetadas nos investimentos financiados pelo Banco, através da preparação de "planos de desenvolvimento de/para populações indígenas". Não estaríamos, aí, diante de uma dissimulação retórica do imperativo, da obrigação e do "dever do desenvolvimento", fraseada em termos de um "direito ao desenvolvimento"? Aos povos indígenas que convocamos a participar e a se deixarem consultar, não estaríamos negando o direito de recusar o desenvolvimento e de controlar integralmente o que se passa em seus territórios? Alguns de seus representantes estarão à mesa discutindo essas questões, que para eles são mais do que objetos de reflexão intelectual, mas horizontes de sua dimensão existencial.
Eis aí alguns elementos da encruzilhada em que nos encontramos, tentando imaginar canais de passagem entre a reflexão que produzimos na academia e o nosso horizonte de ação política. Nada que nos leve a ataraxia. Ao contrário, a perspectiva de uma participação esclarecida e em meio a um diálogo com os diversos atores envolvidos é positiva. Espera-se, como produto desse processo de consulta, produzir uma diretriz operacional renovada para as políticas do Banco que afetam as populações indígenas. Alguns de nós esperamos que daí emerja uma concepção menos instrumental da expertise antropológica, do que a vigente nas atuais diretrizes do Banco. Pensar os produtos implica estar situado nos e refletindo sobre os processos.
Laudos Antropológicos
Bruna Franchetto
MN-UFRJ
A publicação dos laudos antropológicos "Parque Indígena do Xingu" e "Capoto", elaborados por Vanessa Lea, professora do Departamento de Antropologia do IFCH/UNICAMP, torna visível o trabalho do antropólogo enquanto perito do poder jurídico na fase de julgamento de ações cíveis que incidem sobre terras indígenas. Vale a pena lembrar que o papel do antropólogo perito e o trabalho de produção de laudos de natureza variada se tornaram, nos últimos anos, parte da vida profissional de muitos antropólogos, configurando, ao mesmo tempo, uma responsabilidade política, um desafio intelectual, uma inserção interdisciplinar, um mercado de trabalho. A ABA tem desempenhado um papel de mediação institucionalizada entre os especialistas que nela se congregam e instâncias do poder judiciário. Isso permitiu algum controle ou acompanhamento dos processos de indicação e consequente nomeação de antropólogos peritos, o que tem se revelado uma garantia da qualidade e da ética da assessoria prestada e uma salvaguarda dos direitos profissionais e intelectuais dos antropólogos envolvidos. O termo de colaboração firmado entre a ABA e a Procuradoria Geral da República em 1988, representou uma conquista coletiva e política. Ultimamente, porém, a presença da ABA nessa arena tem sofrido uma retração e um enfraquecimento, que, na nossa opinião, deveriam ser analisados e remediados, restabelecendo um canal institucional ativo e crítico que possa neutralizar iniciativas individuais, não sempre condizentes com a qualidade e a ética da assessoria antropológico-jurídica. Precisamos delinear o que foi feito até o momento em termos de laudos produzidos e mapear os problemas levantados por muitos colegas, encaminhando soluções.
Os laudos de Vanessa Lea não são os únicos que chegaram à publicação, saindo das gavetas de juízes e antropólogos. Lembramos a coletânea organizada por Denise Maldi e publicada pela UFMT em 1994, com o título "Direitos Indígenas e Antropologia. Laudos Periciais em Mato Grosso". Iniciou-se, assim, a realização de um objetivo há tempo apresentado como sendo um projeto que a própria ABA deveria endossar: a criação de um "banco de laudos", sua acessibilidade a um público mais amplo, a divulgação de uma amostra significativa dessa produção. Os laudos agora publicados são um exemplo dos mais ricos e instigantes para uma reflexão científica e política. São notáveis a construção do texto, as estratégias discursivas no agrupamento de quesitos e na argumentação, a iniciativa de incluir todos os anexos, que constituem uma documentação valiosíssima, o material fotográfico inserido como elemento de prova documental e do trabalho efetivo do perito em campo, o prefácio que esclarece pressupostos e implicações do "fazer laudos".
A autora considera que a divulgação das informações é importante para a realização de futuras perícias, racionalizando a multiplicação de laudos solicitados para áreas limítrofes, parcialmente sobrepostas, habitadas por um mesmo povo indígena. Os limites das propriedades cujos donos reivindicam, no caso do Xingu, indenização por expropriação indireta, recortaram os territórios indígenas num emaranhado confuso (e o perito é chamado a se pronunciar sobre a ocupação indígena de uma gleba específica). A divulgação de laudos fornece também subsídios para o trabalho de educadores, agentes de sáude, indigenistas, com depoimentos, cronologias, dados, mapas. As perícias resultam do acúmulo de conhecimentos de um pesquisador, muitas vezes após anos de estudo e investigação, e representam subsídios também para os que fazem pesquisas etnográficas, geopolíticas, jurídicas, históricas.
No prefácio, Vanessa Lea chama a atenção para alguns desafios enfrentados pelo autor de laudos. O primeiro é o de articular os discursos antropológico, jurídico, histórico e a tradução da voz indígena, de sua versão da história, ou melhor, como diz Lea, a tentativa de representar "a polifonia de vozes no Xingu". Outro desafio é o da interpretação de noções jurídicas à luz das teorias e conhecimentos antropológicos, e viceversa, a tradução de conceitos antropológicos numa semântica compreensível pelo universo jurídico, procurando muitas vezes corrigir, modificar ou até derrubar conceitos equivocados. Quem elaborou laudos deve se lembrar bem dos momentos delicados desse trabalho de mediação e tradução, tentando conquistar ou convencer o leitor (um juíz, um advogado), mantendo-se fiel aos dados de sua pesquisa, defendendo os direitos dos índios, dando vez à voz destes.
Admirável, nos laudos de Lea, é, também, o cuidado na reconstituição de documentos muitos dos quais encontrados em péssimas condições, quase ilegíveis. Assim, foi feita a digitação de relatórios, mapas, reportagens jornalísticas, compondo um acervo agora disponível de documentos fundamentais para muitos outros trabalhos, periciais e de pesquisa. Citamos aqui apenas o "Relatório de uma investigação sobre terras em Mato Grosso" de Roberto Cardoso de Oliveira (1954) e o mapa do INTERMAT mostrando o loteamento das terras indígenas, que foram incluídas no Parque do Xingu, obra da brutal política de colonização levada a cabo em Mato Grosso, nos anos cinquenta, com o incentivo dos governos e a conivência do órgão indigenista oficial. É uma história que precisa ser constantemente reapresentada em cada ação movida por supostos proprietários (são dezenas) de glebas no Parque do Xingu.
O lançamento das publicações, em 29 de abril, na UNICAMP, foi comemorado com uma mesa redonda a qual participaram Virgínia Valadão, o advogado Sérgio Leitão e Bruna Franchetto, além da autora dos laudos. Reavivamos e discutimos experiências e questões ligadas ao envolvimento de antropólogos enquanto peritos "de terras indígenas". Virgínia nos enriqueceu com sua competência e com os resultados de uma longa e intensa prática nesse campo, com sua postura corajosa e honesta (saudades). Sérgio fez um balanço da problemática jurídica e política da defesa das terras indígenas, lembrando da necessidade de um avaliação dos dez anos da atual Constituição (as noções de ocupação ou habitação "tradicional" versus "imemorial", a fase Jobim, o decreto 1775). Vanessa manifestou preocupações comuns: como racionalizar, monitorar, regularizar, se assim podemos dizer, essa prática de "fazer laudos"? Como acompanhar o andamento da ação até seu desfecho?
Qual o papel da ABA, hoje, na indicação de nomes aos juízes, na racionalização dos honorários, na circulação de informações entre antropólogos/peritos, no reconhecimento dessa produção? Uma transcrição, editada, do debate aparecerá em breve na home-page da ABA. Aguardem.
Os laudos de Vanessa Lea podem ser pedidos ao Setor de Publicações do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Caixa Postal 6110 - Cidade Universitária Zeferino Vaz, 13081-970 Campinas, SP.
O Século do Fim do Indegenismo
Henyo Trindade Barretto Filho
UNB
Com o objetivo de avaliar as perspectivas para o indigenismo no Brasil neste fim de século, abrangendo reflexões sobre alguns casos específicos de prática indigenista, a questão dos direitos dos povos indígenas no Brasil dentro de um contexto internacional e o papel das organizações indígenas e indigenistas, o Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília promoveu, no dia 22 de maio, o Seminário "Indigenismo: Fim de Século", organizado e coordenado pelo Prof. Stephen Grant Baines.
Os antropólogos, lideranças indígenas, representantes de organizações de apoio e advogados convidados foram instados a refletir sobre os rumos do movimento indígena e a questão indígena nos contextos nacional (das reformas constitucionais) e internacional (de reivindicação de direitos coletivos, dentro da tendência à internacionalização e, simultaneamente, autoctonização). As questões de fundo que motivaram a organização do evento são o prospecto da "privatização" do indigenismo por grandes corporações nacionais e transnacionais, cujos interesses incidem sobre os territórios indígenas, e a inscrição da garantia dos direitos indígenas nos marcos de programas multilaterais de conservação da biodiversidade e das florestas tropicais.
O Seminário foi organizado em duas sessões, pela manhã e à tarde, na forma de mesas-redondas seguidas de debates. De manhã falaram o líder indígena Marcos Terena (CGDDI-FUNAI) e os antropólogos Carlos Fausto (MN-UFRJ), Dominique Gallois (USP) e Antônio Carlos de Souza Lima (MN-UFRJ), tendo como debatedor Henyo T. Barretto Filho (DAN-UnB). À tarde, o antropólogo João Pacheco de Oliveira (MN-UFRJ) dividiu a mesa com o advogado Aurélio Rios (procurador do MPF, ex-coordenador da 6a Câmara) e o filósofo Márcio Santilli (da ONG Instituto Socioambiental e ex-Presidente da FUNAI), tendo como debatedor Roque de Barros Laraia (DAN-UnB).
Marcos Terena abriu a mesa-redonda da manhã saudando a iniciativa, lembrando que o diálogo entre antropólogos e lideranças indígenas em fóruns como aquele estava adormecido e se fazia necessário retomá-lo ("temos conversa atrasada"), tanto mais agora que nos encontramos às vésperas das comemorações dos "500 anos". Em sua exposição, intitulada "Povos Indígenas: 500 anos - retrospectiva e perspectivas", fez uma breve reconstituição do movimento indígena, a partir da sua biografia, destacando as diferenças que ele identifica entre as lideranças que caracterizaram o momento inicial do movimento (nas quais se inclui) e as atuais. Defendeu a posição de que a política indigenista deve ser conduzida pelos próprios índios, mas não sozinhos. Destacou a necessidade de superar o vácuo da participação dos antropólogos que, segundo ele, teria se dado com o surgimento do movimento indígena. Convidou os presentes a tomarem parte no esforço da Comissão Indígena Brasil 500 anos em não deixar as comemorações se transformarem num megashow, aproveitando a oportunidade histórica para pensar o Brasil a partir de um "autêntico diálogo cultural", na direção de formular um novo projeto de sociedade.
As repercussões e implicações políticas e conceituais do Decreto 1.775/96, da Portaria no 14 e dos despachos do ex-Ministro da Justiça e atual Ministro do STF, Nelson Jobim, sobre as áreas indígenas de que se aguardavam os resultados das diligências adicionais solicitadas à FUNAI, nos marcos do estabelecido pelo Decreto, foram objeto da apresentação de Carlos Fausto: "Território e Contraditório: antropólogos, índios e poderes de estado". Retomando argumentos que já teve oportunidade de avançar nas páginas deste Boletim e apresentar em mesa-redonda na 20a Reunião da ABA, em Vitória, ES, Carlos Fausto abordou o tema a partir dos bastidores do caso da TI Apyterewa dos Parakanã, aportando novos elementos a análises já consolidadas sobre a questão. Enfatizou como uma decisão claramente política, a de inviabilizar a demarcação de uma terra indígena (entre outras), acabou por "colocar uma cunha" no Artigo 231 da Constituição Federal. Ao defender, no despacho sobre a TI Apyterewa (como em outros), um suposto "interesse público", o ex-Ministro conspirou contra a leitura correta do Art. 231, avançando uma leitura restritiva, fragmentada e reificada dos seus quesitos, traindo o espírito do artigo. Apresentou, assim, a armadilha conceitual e prática que está posta diante de quem quer que venha a fazer uma identificação de terra indígena doravante, destacando a importância que ainda tem o trabalho de mediação/tradução dos antropólogos nesse procedimento - principalmente quanto a grupos de contato recente.
Em sua apresentação, "Polêmica em torno da representação indígena no estado do Amapá", Dominique Gallois fez uma breve "etnografia da etnopolítica local", enfocando a trajetória e a constituição das organizações indígenas naquele estado, a partir de duas questões vinculadas à tutela: o modo como os índios se confrontam com esta a partir de suas representações políticas e o modo como lidam com as suas próprias demandas de desenvolvimento. Em seu "diálogo com a modernidade", pela via da representação política formal e da relação com o desenvolvimento, os índios, destacou Dominique, estão não apenas em permanente movimento, mas também em constante processo de reflexão sobre a sua própria singularidade cultural: "não se deve pensar que há algo fixo ali". Assim sendo, a conjuntura na qual se desenvolve o trabalho do antropólogo - seja o da pesquisa acadêmica tout court, seja o de implicação nos processos políticos que envolvem os grupos que estudam (se é que é possível separar essas duas dimensões), seja em um GT de identificação de uma terra indígena - é complexa e ambivalente: via de regra, espera-se do antropólogo que produza "uma representação congelada face a todo esse movimento" de confronto e negociação com os múltiplos caminhos de desenvolvimento.
Fechando a mesa da manhã, Antônio Carlos de Souza Lima fez uma apresentação de caráter programático, intitulada "Metamorfoses do Colonialismo Interno: modos de intercâmbio da produção antropológica e de políticas públicas para os povos indígenas no Brasil". Partindo de uma retomada da noção de "colonialismo interno", tratada por Roberto Cardoso de Oliveira em artigo de 1966, em particular das preocupações teórico-práticas que identifica nela, Antônio Carlos resenhou brevemente os estudos sobre colonialismo, referindo-se a um conjunto de autores (antropólogos, sociólogos e historiadores contemporâneos e nem tanto) nos quais julga encontrar ressonâncias daquela noção. Distinguindo o colonialismo "etéreo e geral" das "manifestações sócio-históricas específicas desse empreendimento", propôs uma agenda de pesquisa empírica em torno das assim chamadas "práticas indigenistas", nos marcos da perspectiva que toma os dispositivos coloniais como objeto de estudo. Destacou alguns elementos relevantes nos autores que mencionou e que poderiam contribuir para esse esforço: a perspectiva de longo prazo de alguns estudos de desenvolvimento social; a dimensão de experimentação e reflexão encontrada nas tradições coloniais; a vinculação de estudos monográficos à análise de totalidades mais abrangentes, complexas e englobantes - e enfatizou a importância de pensar a nossa inserção como antropólogos nesses processos.
As exposições da mesa-redonda da tarde foram abertas por João Pacheco de Oliveira, com a apresentação intitulada "Sociedades Indígenas, Economia de Mercado e Hábitos Indigenistas: por uma nova representação do índio". Nela, João Pacheco propôs uma revisão do habitus indigenista tradicional e o engajamento dos antropólogos na constituição, para a sociedade nacional, de uma nova representação das sociedades indígenas. Partindo de dados relativos: (i) à mudança do perfil demográfico dos povos indígenas no Brasil (que não é mais o de um número grande de micro-sociedades isoladas, com menos de 200 hab., mas sim o de um contingente maior de sociedades de porte médio, com populações relativamente firmadas e demograficamente equilibradas), (ii) à superação do "funil" do processo de demarcação da década de 1980 para cá (dado o avanço no processo de reconhecimento oficial das terras indígenas e considerando que a porcentagem de terras a ser identificada é pequena relativamente ao contingente já demarcado); e (iii) à configuração de uma concepção mais matizada e menos naturalizada das terras indígenas (que incorpora a variável ambiental na análise destas e a dinâmica sócio-histórica particular dos grupos, implicando na ruptura com a idéia de que uma terra indígena possa ser definida de uma vez para sempre); João Pacheco mostrou a inviabilidade histórica do indigenismo. Na medida em que não estamos falando de terras e povos que "estão fora do espaço nacional e da história", a idéia de um mecanismo protetor de objetos que devem ser mantidos puros não se sustenta. Pelos dados apresentados, Pacheco crê que já não há mais espaço para o antropólogo defensor da pureza étnica, que esconde as mazelas da situação histórica em que os grupos estão enredados. Ao contrário, caberia ao antropólogo a tarefa de produzir uma representação mais condizente desses grupos, enquanto sujeitos políticos e históricos.
Na sua exposição, "Os Direitos dos Índios no Direito Internacional: perspectivas para o terceiro milênio", o procurador Aurélio Rios fez um retrospecto da constituição do sistema internacional de proteção aos direitos das minorias, nos quais se inserem os direitos indígenas. Como o direito internacional é fruto de um consenso entre as nações, não é de se surpreender, disse ele, que aí as mudanças se processem mais vagarosamente do que ao nível das legislações nacionais. Lembrou, assim, que foi só no segundo após-guerra, sob o impacto do holocausto, que as primeiras convenções internacionais em torno da proteção aos grupos étnicos e contra o genocídio começaram a ser firmadas. Naquele momento, contudo, ainda sob a égide da concepção de igualdade formal perante a lei, de garantia apenas dos direitos básicos (como o direito à vida) e de uma perspectiva assimilacionista e integracionista. Foi preciso esperar a década de 1960 para que, sob a influência dos processos de descolonização em Ásia e África e da pressão dos próprios grupos étnicos, o direito à autonomia política, cultural, econômica e territorial virasse letra de convenções internacionais. Mais recentemente, sob o efeito da problemática ambiental, as convenções internacionais recentes (produzidas em outros fóruns que não mais a Organização Internacional do Trabalho e nem a Comissão de Direitos Humanos da ONU) passaram a propor dispositivos de proteção dos direitos de propriedade intelectual indígena (do reconhecimento da legitimidade e importância dos seus sistemas de conhecimento), bem como da regulamentação do acesso à biodiversidade em seus territórios tradicionais - o que nos sinaliza para um quadro mais completo e abrangente de proteção aos direitos indígenas no próximo milênio.
Na intervenção conclusiva, "Política Indigenista no Brasil: do reconhecimento à auto-sustentação", o Coordenador do Programa Brasil Socioambiental da ONG Instituto Socioambiental e ex-presidente da FUNAI, Márcio Santilli, partiu de um retrospecto da evolução do reconhecimento oficial dos direitos indígenas à terra, para tecer considerações sobre a situação atual das terras e povos indígenas no Brasil, e algumas tendências discerníveis. Santilli apontou para a "mudança radical do eixo/tipo de demanda" que os povos indígenas têm colocado para as organizações de apoio. Com a superação do "gargalo" da demarcação, emergem as questões econômicas, do manejo dos recursos naturais e da viabilidade, em geral, dos povos e terras indígenas. Disse que isto está produzindo um impacto profundo sobre a morfologia tradicional das organizações de apoio, bem como das próprias organizações indígenas e do Estado. De uma situação em que o Estado era o protagonista, pois demarcação de terra é algo que ainda se pode fazer dentro de um órgão com caráter tutelar, passamos para outra em que o espaço de autonomia relativa das sociedades indígenas é maior: o da demanda pelo usufruto exclusivo dos recursos naturais. Segundo ele, não será o modelo de um órgão indigenista que vai conseguir dar conta disso: o eixo da política teria que sair da tutela para algo próximo ao fomento - algo qualitativamente diferente do que temos hoje.
Lados Demais?: Fazendo Política Indígenista no ano 2.000 dC.4
Carlos Fausto
MN - UFRJ
As imagens-força sobre os povos indígenas que nortearam a prática política dos antropólogos nas últimas décadas, parecem se desvanecer diante de um novo contexto teórico-político. A paisagem etnológica que nos servia de base para ação e reflexão aquela dos pequenos grupos igualitários, isolados e dispersos, cortados da história e do sistema mundial já não mais se sustenta. Assim como não se sustenta a ilusão de um estado puro, tradicional da cultura nativa. A própria idéia de cultura, no momento mesmo em que ela é reivindicada por vários grupos indígenas como instrumento de luta, está sob questão. Nós antropólogos já não mais acreditamos nela, pelo menos não mais como dantes, quando ontologizávamos o conceito e fazíamos dele uma totalidade quase-viva. Ao deixarmos de ver a cultura como uma mônada, ao mesmo tempo frágil e original, o ímpeto com que defendíamos a impermeabilidade de suas fronteiras perdeu fôlego, assim como a própria idéia de que há uma fronteira a defender.
Nesse contexto, novas práticas políticas começam a se delinear, envolvendo novos atores sociais, novas questões e, necessariamente, novas perspectivas. Já não é mais tão simples definir os lados, pois o dualismo diametral começa a se aplicar mal à lógica política. Não que no passado ele esgotasse o jogo, mas era uma mistificação confortável e razoavelmente eficiente: de um lado, havia os pró-, de outro os contra. A esse dualismo diametral somava-se outro, concêntrico, cujo centro era o Estado. Não me refiro aos governos, que no mais das vezes encontravam-se na metade dos contra, mas o Estado enquanto instituição mediadora.
Alguns dirão, com razão ademais, que essa jeologização da política refiro-me aqui aos Jê do Brasil Central, evidentemente é uma redução retórica. Porém, é uma redução que foi eficiente, pois permitiu que os antropólogos e, em particular a Associação Brasileira de Antropologia, interviessem de modo decisivo em momentos importantes da política indigenista do país.
Hoje, a situação tornou-se mais complexa e a ABA encontra-se em uma encruzilhada: ou limita-se às questões internas à coorporação dos antropólogos e deixa a política para outras organizações civis; ou intervém em um contexto movediço, no qual a demarcação de posições e fronteiras não é tarefa trivial.
Lembremos o surgimento das fronteiras passadas, que remete à luta pela criação do Parque Nacional do Xingu, cujo anteprojeto de Darcy Ribeiro data de 1952. Naquele momento, um corte tornou-se nítido, opondo na política indigenista as idéias de assimilação-integração àquelas de proteção-preservação. Se é verdade que na proposta do Parque vislumbrava-se uma futura aculturação dos índios, embora mais lenta e menos violenta, é também verdade que sua criação rompeu com o modelo de distribuição de terras então vigente. O modelo rondoniano visava localizar permanentemente os índios em pequenas reservas de modo a acelerar sua integração; i.e., sua conversão em trabalhadores nacionais (lembrem-se que o SPI nasce como SPILTN, Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais). O Parque, ao inaugurar a concessão de grandes extensões, abriu caminho para a redefinição administrativa do que é um território indígena, que viria a desembocar no conceito de imemorialidade, prevalecente até a Constituição de 1988.
Essa transição na política indigenista correpondia aos anseios de uma comunidade antropológica nascente no Brasil, que conhecera a noção de cultura por meio dos estudos de aculturação, mas que fez dela um instrumento de luta contra a aculturação. Territórios e culturas indígenas passaram a andar juntos, uma vez que não se tratava de defender a terra de um aglomerado de indivíduos, mas o de sociedades que necessitariam de um espaço não apenas para reprodução física de seus membros, como também para sua reprodução cultural o que para a maioria dos etnólogos significava a reprodução estereotípica da cultura, sua preservação no tempo.
O conceito de cultura foi o principal instrumento de legitimação dos direitos indígenas no país e uma bússola para a orientação política dos antropólogos. Nossa desconfiança contra os missionários, nossa defesa dos territórios, nossa dificuldade de lidar com a intensificação e multiplicação dos contatos com a sociedade nacional, nossas idéias sobre o poder corruptor do dinheiro e da mercadoria; tudo isso, fundava-se no conceito de cultura, cuja origem romântica e contra-iluminista, assim como sua ambientação à tradição liberal reformista americana, não podem ser esquecidas. Nos séculos XVIII e XIX, a idéia de cultura representou as aspirações de autonomia de uma região não hegemônica da Europa, a Alemanha, no processo de constituição de sua identidade nacional. No início do século XX, representou as aspirações de setores da sociedade norteamericana que procurava se constituir a partir do legado escravagista e da intensa imigração européia. A noção de cultura foi o instrumento pelo qual se combateu o determinismo racial e afirmou-se a vontade de reforma social e igualdade na sociedade americana.
Nós também fizemos do mesmo conceito um instrumento de luta. Com ele, importamos duas ambigüidades que lhe são constitutivas: de um lado, aquela entre totalidade e particularidade (a cultura é uma totalidade particular); de outro, aquela entre tradição romântica e ambientação liberal. Essa segunda ambigüidade talvez explique por que somos, em matéria de política como já nos lembrava Lévi-Strauss (1955:344) , conservadores quando se trata de outras culturas e libertários quando se trata da nossa.
Mas o quê dizer de tudo isso quando o conceito de cultura já não recebe a mesma adesão na própria antropologia, quando seu atributo de totalidade é posto em questão, quando a reprodução estereotípica dá lugar à transformação histórica, quando a tradição dá lugar à mudança? Uma resposta típica, que acompanha ademais o movimento teórico contemporâneo, é substituir o conceito de cultura pelo de ação social, o de estrutura pelo de prática, o de objeto pelo de sujeito. A facilidade de trilhar esse caminho é, porém, enganosa. Dizer apenas que são os próprios índios, enquanto agentes históricos, que devem decidir sobre seus destinos é, mais uma vez, um slogan tão confortável, quanto mistificador. E aqui, evidentemente, nos acercamos da tão abominável, quanto tentadora figura jurídica da "tutela".
É precisamente a postura tutelar que se manteve na transição do modelo rondoniano àquele, digamos, vilasboasiano. E isso não é de se estranhar. Tanto um quanto o outro compartilhavam de uma mesma visão sobre a sociedades indígenas, definindo-as pela tríade natureza-primitivo-criança. Darcy Ribeiro, que teve um papel fundamental nessa transição e foi de certa forma seu ideólogo, também partilhava desse imaginário e soube bem difundi-lo, com uma ênfase na bondade e igualdade naturais dos indígenas.
Chamar a atenção para as continuidades não implica desconhecer os efeitos práticos positivos dessa transição do modelo rondoniano ao vilas - boasiano. Não implica tampouco desconhecer a continuidade entre as posições de Darcy e aquelas das gerações de etnólogos que o sucederam. Foram poucos aqueles que, apesar de criticarem o neo-evolucionismo de Darcy, não reproduziram a idéia dos povos indígenas como contraface romântica de nossa sociedade: utopia localizada da ausência de poder e desigualdade, lugar da nostalgia moderna de um senso de comunidade.
A partir dos anos 1980, contudo, todo esse imaginário começou a implodir, por meio de uma virada historicista de uma etnologia até então feita contra a história. As evidências acumuladas acerca do impacto da colonização sobre os grupos indígenas mesmo sobre aqueles caracterizados como isolados, puros, pristinos , encontraram, enfim, ressonância. De um momento ao outro, demo-nos conta de que tudo tem história, mesma as sociedades sem história.
O neo-historicismo dos anos 1990 fez-se acompanhar por uma crescente agentivização daqueles que apareciam como sujeitos passivos nos modelos anteriores: os próprios índios. Uma nova visão da interação dos povos indígenas com a sociedade nacional começa a povoar os textos antropológicos: o discurso da vitimização cede lugar ao da criatividade dos agentes históricos na situação de contato. O a-historicismo estrutural-culturalista, que respondia ao assimilacionismo com uma negação algo ingênua das transformações em curso, dá espaço à valorização dos próprios processos de transformação. Não é mais a lógica do plus ça change, plus cest la même chose. Agora, trata-se de buscar positividades na própria mudança.
Esse novo ethos, no entanto, não funda uma ética tão clara quanto aquela do passado, embora torne possível uma prática mais eficaz. Quantos de nós não estão hoje envolvidos em projetos cujo objetivo não é mais preservar a cultura indígena, mas qualificar os índios com os instrumentos de nossa sociedade: a escrita, o vídeo, a medicina, os motores à combustão, os rádios, a garimpagem, o extrativismo em geral e, por que não?, o dinheiro? Mas, então, o que fazer com as famosas sociedades do lazer e da abundância que cultuamos? Foram meras ilusões de uma etnologia désirante ou apenas nos curvamos ao pragmatismo, já que o movimento do capital alcançou enfim os últimos rincões do Brasil?
Seja como for, fazer juízos de valor se tornou uma atividade mais complexa. A nossa bússola não tem mais Norte e os candidatos a ocuparem essa posição, que um dia foi do conceito de cultura, não conseguirão fazê-lo facilmente. Alguns dirão que temos que ouvir os índios. Mas quem fala por eles? Quem são os índios? Como representar uma diversidade tão grande? E mesmo quando se trata de apenas um grupo étnico, iremos continuar a nutrir a ilusão da comunidade primitiva como totalidade indivisível? Ou a voz dos índios é a voz daqueles que chamamos de lideranças? Ou seria ainda, a das mais de cem organizações indígenas existentes hoje no país? O certo é que sequer nos perguntamos se o conceito de representação aplica-se bem a esse contexto.
A multiplicação de entidades, de vozes, de perspectivas implica uma redefinição da relação com o Estado. As organizações não-governamentais oscilam entre a parceria e o não reconhecimento do Estado como instância mediadora entre as comunidades indígenas e a sociedade envolvente. São críticos contundentes da tutela, e o fazem em nome da livre negociação de seus projetos com as populações nativas. No entretanto, muitas vezes reproduzem a tentação tutelar, pretendendo decidir e controlar quem pode e quem não pode entrar nas áreas em que os projetos são desenvolvidos. Aqui um antropólogos pode auxiliar, ali atrapalhar; aqui precisamos de lingüistas, ali lingüistas nem pensar.
E lembremos que as ONGs são um campo importante de trabalho de vários associados da ABA. Aliás, diante das parcas verbas governamentais, muitas pesquisas etnológicas só se tornam viáveis, hoje, quando ligadas a um projeto de ONG. E é curioso notar, aqui, como as demandas práticas feitas aos pesquisadores são, em geral, aquelas que tanto criticávamos na FUNAI: os famosos projetos de viabilidade econômica.
Mas não estou aqui para criticar genérica e superficialmente as ONGs, cujo papel político é dos mais relevantes e que têm contribuído, inclusive, com o desenvolvimento de pesquisas, documentação e com a criação de novas formas de atuação em áreas indígenas. Mesmo porque a ambigüidade em relação à tutela não se expressa apenas nas atitudes das ONGs ativistas. Ela está presente em nossa ONG, a ABA, e se manifesta em questões críticas para o exercício da profissão como o ingresso em áreas indígenas. Deve o Estado controlar esse ingresso? Ou isso é um assunto que só interessa às comunidades locais, cabendo a elas decidir caso a caso?
A ABA tem uma posição definida nesse ponto quando se trata de missões religiosas: o Estado não apenas deve controlá-las como a política de ingresso deve ser extremamente restritiva. Defender essas posição e ela me parece a mais razoável tem no entanto duas implicações fortes: primeiro, que em certos casos, as comunidades nativas não devem definir autonomamente sobre o ingresso e permanência de não-índios em seus territórios; segundo, que o proselitismo religioso é deletério à.... ao quê exatamente? À cultura? Às tradições? Aos costumes?
Com a incerteza conceitual, cresce a decalagem entre elaboração teórica e prática política: os índios são sujeitos mas não podem definir sozinhos quem pode e quem não pode entrar em seus territórios; o contato é um processo criativo, que implica resistência, reelaboração e não simples descaracterização, mas é necessário controlar quem entra em contato com quem.
E há mais do que isso, pois o controle via Estado implica que ele seja capaz de fazê-lo de maneira adequada e criteriosa. No caso das pesquisas científicas, por exemplo, conseguimos avançar nesse item, graças à figura do projeto a ser aprovado pelo CNPq. Ainda assim, tivemos, no passado, colegas que confundiram pesquisa científica com ação missionária, permitindo o ingresso de missionários que eram falsos pesquisadores (pois há missionários que são verdadeiros pesquisadores). Não demorará muito, porém, para termos problemas de outra ordem, não mais ameaçando a Cultura indígena, mas o patrimônio genético e o conhecimento tradicional dos índios. Dessa feita, não será pela via da extinção como no passado, mas pela via da comercialização.
Eis um novo terreno movediço para a política indigenista que promete mover as organizações indígenas, os orgão estatais, as ONGs, os pesquisadores e inúmeros grupos econômicos. Ao direito à terra sobre a qual os índios não tem juridicamente propriedade, devemos somar agora a preocupação com o direito à propriedade intelectual.
O alargamento das questões e a multiplicidade de atores me faz perguntar se estamos preparados para fazer política indigenista no ano 2.000 dC. Não me refiro aqui à luta pela demarcação das terras e pela defesa dos direitos constitucionais consagrados no artigo 231. Refiro-me à uma capacidade mais reflexiva, que permita diminuir a distância entre nosso discurso teórico intramuros, nosso discurso retórico para o público e nossa prática política.
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4 Comunicação apresentada na Mesa Redonda "Política Indígena
Contemporânea", XXI Reunião da Associação Brasileira de Antropologia. Vitória, 5
a 9 de Abril de 1998
Caso Waiãpi: o CTI é autorizado a retomar seus trabalhos na área indígena.
Dominique Tilkin Gallois
USP
Coordenadora do Projeto Waiãpi / CTI
A recente decisão judicial
No último dia 19.08, o Juiz da 2a. Vara da Justiça Federal em Macapá, Marcelo Dolzany da Costa, acolheu em parte a petição encaminhada pela comunidade Waiãpi, no sentido de revogar o alcance da liminar que proibia a atuação do Centro de Trabalho Indigenista na área, desde o final de agosto de 1997. Um ano antes, o mesmo Juiz havia concedido a liminar, solicitada pelo Procurador João Bosco Araujo Fontes Junior, na Ação Civil Pública (Processo n.1997.31.00.001717-4), movida contra o CTI, a Funai e o MMA, a quem proibia o repasse de verbas para a implantação do projeto de "Recuperação Ambiental", idealizado em parceria pelo Conselho das Aldeias Waiãpi / Apina e o CTI e aprovado pelo PD/A em 1996. Nesta ação, o Procurador acusava o CTI de "ilegalidade" e de "nocividade" para com os índios, alegando interesses escusos na implantação daquele projeto.
Desde então, os Waiãpi se mobilizaram para manifestar seus interesses na continuidade da parceria com o CTI e na implantação do Projeto PD/A, onde a comunidade indígena é proponente e o CTI executor. Na Funai de Macapá, só encontraram obstrução. Os professores indígenas e a diretoria do Apina relatam o assédio constante a que foram submetidos por parte dos funcionários da ADR, da Missão Novas Tribos do Brasil e do Deputado Antonio Feijão (PSDB/AP), com questionamentos visando desqualificar os trabalhos do CTI ao mesmo tempo que procuram convencer os Waiãpi - e especialmente os jovens formados pelo CTI - de que eles são incapazes de gerenciar projetos formulados pela própria comunidade, se forem executados em parceria com ONGs. Atitude condizente com a intenção da atual gestão do órgão, que pretende exercer a tutela exclusiva das comunidades indígenas, boicotando não apenas a parceria dos índios com as ONGs, como os próprios projetos das comunidades.
Diante destas dificuldades, os Waiãpi procuraram outros apoios. Foram ouvidos na 6a. Câmara de Índios e Minorias da PGR, em Brasília. Em 12.12.97, encaminharam uma representação à Corregedoria do MPF, solicitando a impugnação da tutela exercida pelo Procurador João Bosco. Em 15.12.97, apresentaram um mandado de segurança contra a liminar concedida pelo Juiz Dolzany. O CTI, por sua vez, apresentou um agravo de instrumento, em 09.09.97, e uma contestação em todos os termos da Ação, no dia 10.10.97. Como esses encaminhamentos não obtiveram resposta, os Waiãpi decidiram que o Apina deveria assumir a gestão do Projeto de Saúde e fizeram os encaminhamentos necessários junto ao Ministério da Saúde, a Funai e o Governo do Estado. Com a determinação de "levar o CTI de volta" e dar continuidade aos demais projetos (educação, vigilância e alternativas de desenvolvimento) que a entidade desenvolvia em parceria com eles, os líderes procuraram diversas vezes o Juiz e o Procurador. Em julho passado, entraram com uma petição em que solicitaram ingresso na Ação enquanto réus, assistentes lidis-consorciais necessários do CTI, uma vez que tanto a liminar como a sentença discutiam seus interesses e seus direitos, dos quais o CTI é simplesmente um defensor e colaborador.
No último dia 18 de agosto, prestei depoimento no processo de difamação movido contra mim pelo Procurador Bosco. Ainda terei de responder a outro processo, instaurado a pedido do deputado federal Antonio Feijão (PSDB-AP) que me acusa de "uso abusivo de imagens indígenas" e de realizar "garimpagem ilegal". Vale mencionar que outros assessores do Conselho das Aldeias têm sido submetidos a inquéritos policiais, que alegam crimes diversos e sem nenhum fundamento. Toda essa situação configura a articulação de diversos interesses locais na propagação de uma campanha difamatória, iniciada há vários anos, contra pesquisadores e entidades que apoiam os índios no Amapá.
Desafios para o reinício dos trabalhos
Após a decisão do Juiz, os Waiãpi solicitaram à Funai a reativação do convênio com o CTI, para o desenvolvimento de programas de capacitação e vigilância. O convênio, assim como a assessoria antropológica aos programas, tinha sido suspenso por portaria da Funai em função da Ação Civil Pública.
Com a interrupção do trabalho que vínhamos realizando na área assistencial e na implantação de alternativas adequadas à autonomia dos índios, a Funai local apenas realizou intervenções volantes e de caráter paternalista. Durante vários meses, os Waiãpi passaram a depender apenas deste tipo de apoio, que não atendia às ações que eles priorizavam: a continuidade de programas de capacitação, em ritmo, continuidade e alcance adequados à realidade das 12 aldeias em que se dividem este povo. Entre as ações concretizadas pela Funai local, está a contratação de serviços dos jovens que o CTI vinha capacitando como agentes comunitários. A introdução de salários segundo critérios externos gerou várias disputas entre aldeias. Surgiram cargos como varredeira da escola, merendeira, etc... Por outro lado, na tentativa de provar que as atividades do CTI poderiam ser dispensadas, a Funai promoveu apressadamente um treinamento de agentes de saúde, que serviu para responsabilizar alguns jovens pelo trabalho nas enfermarias, já que a Funai não consegue manter profissionais em área. Alguns chefes denunciaram esta iniciativa, pelo risco que a distribuição aleatória de medicamentos por pessoas despreparadas representa. Com a degradação do atendimento à saúde, as famílias concentram-se por mais tempo nos postos. Aliás, a sedentarização dos Waiãpi também foi a meta das "atividades produtivas" que a ADR local tentou implantar nos postos: criação de galinhas e piscicultura, abertura de roças coletivas para os índios (contratando serviços de trabalhadores não-índios). Com o sucateamento dos equipamentos de transporte e comunicação, as expedições sempre empreendidas pela área se tornaram mais difíceis e as atividades de fiscalização e controle territorial foram comprometidas.
Voltar ao tempo "das promessas da Funai" representou uma dificuldade que concentrou a atenção de todos para ser superada. A maioria dos chefes de aldeia e a diretoria do Apina se mobilizaram ao longo de todo esse tempo e conseguiram defender os projetos de seu interesse (saúde, educação, vigilância e o projeto de recuperação ambiental aprovado pelo PD/A).
Mas há mais um desafio a ser superado: a divisão da comunidade entre duas associações (o Conselho e uma nova associação), que foi incentivada pela Funai local e pela MNTB para que algumas famílias pertencentes às aldeias Ytuwasu e Manilha fundassem, a "Associação dos Povos Indígenas Waiãpi do Triângulo do Amapari". Os três indivíduos que gerem esta associação vem tentando sem sucesso obter parte das verbas de projetos idelizados e financiados através do Apina.
Esta divisão, na verdade, serve claramente aos interesses dos políticos locais, como o Deputado Feijão, que controla praticamente todas as representações de órgãos federais no Amapá e move campanha aberta contra o Governador Capiberibe. Foi nesse contexto que a MNTB se instalou numa área concedida pelo INCRA, no limite leste da TI Waiãpi, onde ela procura atrair famílias indígenas em troca de ações de saúde.
Assim, ao invés de apoiar e colaborar com o bom andamento de programas assistenciais já consolidados e que possuem recursos financeiros e humanos capacitados a atender todas as comunidades Waiãpi (o Programa de Saúde do Apina, o Projeto Educação do CTI, o Programa de Vigilância, do PPTAL/FUNAI), os funcionários da ADR, os missionários evangélicos e seus aliados políticos promovem a discórdia entre grupos locais e lideranças.
Esperamos que os chefes de aldeia consigam promover um novo equilíbrio em suas relações internas. Para tanto, o Apina se propõe desautorizar, publicamente, as intervenções externas de políticos e tutores que responsabilizam pelo acirramento de suas divisões internas.
Como nos documentos anteriores que a ABA divulgou sobre a situação no Amapá, voltamos a denunciar o impacto negativo que a prática da tutela abusiva - sobretudo quando dominada por interesses da política local, como é fato em Macapá - está tendo sobre o futuro das comunidades indígenas no estado do Amapá.
Negligência e Omissão com a Saúde dos Tiriyó e Kaxuyana do Parque de Tumucumaque/PA
Denise Fajardo
USP
Em 1995 ocorreu o primeiro registro de Aids entre os índios Tiriyó que vivem no extremo norte do Pará, juntamente com os índios Kaxuyana, sob jurisdição da Administração Regional da Funai em Macapá/AP. Tratava-se de uma mulher jovem que em janeiro de 1996 viria a óbito. Em julho daquele ano, um novo caso, entre a mesma etnia, era confirmado pelo Dr. Isamu Barros Kanzaki, da Universidade Federal do Amapá, que após ter encaminhado para a Universidade de Berkeley um lote de 350 amostras de sangue colhidas entre os Tiriyó e Kaxuyana, a serem testadas para o vírus HTLV, foi informado de que havia sido casualmente descoberta, em uma amostra, a presença do vírus HIV. Cabe ressaltar que esta pesquisa do Dr. Kanzaki foi realizada apenas com a anuência da Funai de Macapá, sem autorização da Funai de Brasília, e ainda, que as 350 amostras foram colhidas e encaminhadas para fora do país sem o conhecimento do Conselho Nacional de Saúde, conforme as "Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo Seres Humanos".
Com a constatação de mais um caso de HIV+ na população Tiriyó, a Funai de Macapá incumbe o Dr. Kanzaki, de realizar um inquérito sorológico específico para HIV. Em agosto de 1996, sem comunicar o então Programa Nacional de DST/AIDS do Ministério da Saúde e, mais uma vez, sem que o Conselho Nacional de Saúde tomasse conhecimento, foram colhidas 432 amostras. Esta iniciativa da Funai de Macapá porém, esbarrou em um problema operacional: o Hemocentro do Amapá (HEMOAP), além de não ter a atribuição de realizar testagem para HIV na população em geral, conforme as "Normas Técnicas para Coleta, Processamento e Transfusão de Sangue, Componentes e Derivados", não dispunha de kits suficientes para testar as 432 alíquotas e o sangue teve de ficar armazenado à espera de alguma providência.
Diante da notória inoperância das instituições amapaenses no acompanhamento deste caso, bem como no trabalho de diagnóstico e prevenção das DST e Aids entre populações indígenas, a Procuradoria Geral da República no Amapá denunciou o problema junto ao Ministério da Saúde, no final do ano de 1996, solicitando que este interviesse e assumisse o controle da situação.
Com este alerta, o Programa Nacional de Prevenção às DST e Aids envia um grupo técnico a Macapá que avalia as necessidades das instituições locais de saúde e toma a providência emergencial de encaminhar para o Instituto de Saúde em Brasília o lote das 432 alíquotas de soro que se encontrava depositado no HEMOAP havia 3 meses.
De posse de resultados alarmantes (12 HIV positivos em um total de 432 amostras), o então Programa Nacional de DST e Aids (PN-DST/AIDS) - atual Coordenação Nacional de DST e Aids (CN-DST/AIDS) envia no início de 1997 para Macapá e Missão Tiriós uma equipe responsável por comunicar à comunidade indígena Tiriyó e Kaxuyana os resultados da testagem das alíquotas examinadas em Brasília, de identificar os soropositivos e estabelecer estratégias de acompanhamento, bem como de investigar casos de DST para tratá-los por abordagem sindrômica e iniciar um trabalho preventivo e educativo entre aquela população indígena.
Por ocasião da entrega à comunidade indígena dos tão esperados resultados da sorologia realizada em agosto do ano anterior, as lideranças pediram que os resultados fossem comunicados individualmente, e que, sob hipótese alguma, divulgados para fora das aldeias, sob o argumento de que tinham desconfianças quanto à veracidade dos resultados apresentados, tendo em vista que já fazia quase um ano que o sangue havia sido colhido e que desde então não haviam tido mais notícias do andamento dos exames. Manifestaram ainda, seu desejo de que fosse urgentemente encaminhada uma nova coleta. Em decorrência desta insegurança, por parte da comunidade, quanto aos resultados, e do pedido por um novo inquérito sorológico que desta vez cobrisse toda população de cerca de 760 pessoas, na época, a equipe decidiu não divulgar os resultados, nem mesmo para a Funai local, pois eles não poderiam ser considerados oficiais e, de fato, após a nova testagem solicitada, dos doze casos positivos, apenas um foi confirmado. De qualquer forma, esta decisão de manter sigilo quanto aos doze nomes causou uma das primeiras indisposições da Funai do Amapá para com a equipe da CN-DST/AIDS.
Cabia ainda, a esta equipe, realizar um diagnóstico situacional da assistência médica aos índios, em geral, sob jurisdição da Funai em Macapá, e aos Tiriyó e Kaxuyana, em particular, tanto em Macapá, quanto na Missão Tiriós.
Este diagnóstico, publicado no "Relatório de Viagem à Terra Indígena do Tumucumaque Março/97", visava detectar as reais condições de assistência à saúde indígena por parte das instituições locais responsáveis para que, com base nesta realidade, fosse possível à CN-DST/AIDS traçar um plano de melhoria das condições de acompanhamento e prevenção das doenças sexualmente transmissíveis entre as populações indígenas do Amapá e Norte do Pará.
Diante de tal incumbência e do conteúdo do referido relatório, que assinalava, dentre outros graves problemas, a má qualidade da assistência à saúde prestada aos índios e a falta de profissionais capacitados para citar apenas um exemplo, na época o cargo de Chefe da Assistência da ADR era ocupado pelo motorista do órgão - a Funai de Macapá mostrou-se contrariada com as atribuições da equipe e, desde então vem protagonizando um esforço, tanto de denegrir a imagem dos integrantes do grupo, quanto de boicotar suas ações, tal como aconteceu no segundo semestre de 1997, quando foram planejadas, conjuntamente com as lideranças Tiriyó e Kaxuyana, as atividades de prevenção e assistência que deveriam ser desenvolvidas nos próximos sete meses. Esta programação foi endossada pela Funai de Macapá durante o Seminário de Prevenção de DST e Aids para os povos indígenas do Amapá e norte do Pará, realizado em agosto de 1997 em Macapá. Entretanto, nenhuma das ações planejadas pôde ser implementada porque a consultora da CN-DST/AIDS no Amapá, Dulcimar del Castillo, foi impedida de ingressar na área indígena, incialmente pela Funai local, sob o argumento de que não havia nenhuma autorização de Brasília para seu ingresso e, posteriormente, pela própria comunidade indígena que, preocupada com as informações recebidas por funcionários da Funai de Macapá sobre esta consultora, envia um rádio à Funai informando que não queria mais a presença dela em suas aldeias. Recentemente, algumas lideranças indígenas tiriyó e kaxuyana que se encontravam em Macapá esclareceram o ocorrido em entrevista gravada dizendo o seguinte: "(...) O que fizeram com a Dulce, fizeram assim, mas foi obrigado a dizer, mas não é que isso saiu do coração dos caciques ou do coração da comunidade. Isso saiu de outra boca e entrou na outra boca, pra outra boca dizer da Dulce que não é pra vir a enfermeira. (...) Agora as coisas estão paradas, nem a Funai, nem o Ministério (da Saúde) vai dar continuidade no trabalho do DST e Aids"."
De fato, no lugar das ações interrompidas, até hoje não foram implementadas outras que as substituíssem, de tal modo que, em decorrência disto, tanto os Tiriyó e Kaxuyana, quanto os demais grupos indígenas que estão sob jurisdição da Funai de Macapá continuam desassistidos e, portanto, altamente vulneráveis a uma epidemia de Aids.
Nos últimos três anos, já passaram pela ADR da Funai de Macapá três administradores dois sem experiência anterior no trabalho com populações indígenas - e nenhum deles mostrou-se empenhado em realizar as articulações necessárias para enfrentar o alto índice de DSTs e a ameaça de AIDS que ronda os grupos indígenas da região.
Nesse contexto crítico de dificuldade de articulação interinstitucional, os maiores prejudicados são os grupos indígenas sob jurisdição da ADR da Funai de Macapá que, em decorrência dos impasses criados, estão sem alternativas. É urgente uma intervenção por parte das autoridades competentes no sentido de propiciar que sejam retomadas as ações planejadas com as comunidades indígenas, mas não executadas devido aos sucessivos boicotes criados à agenda de ações de prevenção e assistência às DSTs e à Aids no Amapá e Norte do Pará.
Informações sobre Política Indigenista no Nordeste e Leste
José Augusto Laranjeiras Sampaio
ANAÍ - UFBA
Dois anos e meio após a edição do Decreto 1775, seus previsíveis efeitos no atravancamento de processos de regularização de terras indígenas se fazem sentir plenamente na região Nordeste e Leste, onde esses processos se caracterizam, tipicamente, pela forte presença de intrusões nas Terras. Embora apenas quatro das TI da região tenham sido contraditadas com base no Decreto (Maxakalí, Tapéba, Tremembé e Xukurú) e nenhuma dessas contestações tenha sido acatada pelo Ministério da Justiça, justamente essas quatro áreas sofreram, no corrente ano, retrocessos em seus processos por força de medidas judiciais que, pelo menos em dois casos (Tapéba e Xukurú), se baseiam em interpretações peculiares do Decreto que desconsideram todo o andamento dos processos anteriormente à sua edição e praticamente determinam que estes retornem à estaca zero. Tal só não ocorrerá se, levados à última instância no Supremo Tribunal Federal, este vier a reformular as interpretações predominantes nas outras cortes, notadamente no STJ.
Em outras situações, interesses opostos aos dos povos indígenas da região tem sido impostos ou ameaçam se impor por meio de "negociações" desiguais que tendem a redundar em "acordos" desfavoráveis. Foi, tipicamente, o que ocorreu no caso da redução das Terras Tupiniquim e Guarani no Espírito Santo, em abril, e o que pode estar para acontecer no caso dos Pataxó da Coroa Vermelha (Bahia), aos quais se pretende impor a construção de um "Memorial do Encontro", alusivo ao "descobrimento", sobre sua terra; e no dos Tuxá (Bahia), relocados de suas terras pela construção de uma usina hidrelétrica e agora ameaçados de não terem plenamente garantido seu direito a um reassentamento justo face á iminente privatização do setor elétrico pelo governo federal. Em todos estes casos chama a atenção o envolvimento direto do governo federal, a nível de seus ministérios, na condução das pressões exercidas sobre as comunidades indígenas. No caso da regularização da Terra Xukurú-Karirí, em Alagoas, são os interesses político-eleitorais do próprio Ministro da Justiça que ameaçam o processo.
Resenho, a seguir, esses oito casos que podem ser considerados os mais graves e mais ilustrativos do andamento da política indigenista na região este ano, acrecentando, ao final, algumas informações sobre a situação de desassistência e preconceito que mais uma vez atinge a população indígena do semi-árido em um ano de seca.
Tupiniquim e Guarani (Espírito Santo) e a Aracruz Celulose
Portarias ministeriais reduzem Terras Indígenas e acordo com a Aracruz Celulose estipula "Compensações" para as comunidades tupiniquim e Guarani.
Após estarem, desde janeiro, ocupando áreas já identificadas das Terras Indígenas Tupiniquim e Comboios em poder da empresa Aracruz Celulose, as comunidades Tupiniquim e Guarani do Espírito Santo foram alvo de uma série de pressões por parte do governo federal (FUNAI), o que incluiu a expulsão (pela Portaria 253, de 19/03/98, da FUNAI) de seus aliados (CIMI, MST, pesquisadores, Comissão de Direitos Humanos da OAB, etc.) e mesmo a ameaça de expulsão do país de um técnico holandês que prestava assessoria agronômica às comunidades através de uma ONG de cooperação internacional.
Em 09 de março, o Ministro da Justiça assinara as Portarias 193 e 195 reduzindo as Terras de 18000 para 7000 hectares e mantendo a TI Tupiniquim dividida em duas, as TI Caieiras Velha e Pau Brasil, como queria a Aracruz. Essas Portarias desautorizam, sem maiores considerações, o relatório antropológico de identificação e delimitação das Terras, já aprovado pela FUNAI (despacho 41, de 27/12/96).
Em sua Assembléia Geral realizada em Vitória, a 9 de abril, quando do encerramento de sua 21ª Reunião Bianual, a ABA aprovou moção de protesto pela redução das Terras e pela injustificável desconsideração do relatório antropológico de identificação das Terras.
Maxakalí (Minas Gerais)
Ação judicial protela a efetiva reintegração da Terra Maxakalí e contribui para a instabilidade social na área.
Mesmo estando já plenamente regularizada desde a edição do Decreto Presidencial de homologação de demarcação em 02/10/96, a TI Maxakalí permanece intrusada por 14 fazendas de gado. Para não terem que sair da área, os fazendeiros recusam-se a receber as indenizações por benfeitorias que lhes são devidas pela União, embora os recursos para tanto já tenham sido disponibilizados no orçamento da FUNAI em mais de uma ocasião, como no início do corrente ano. Diante da complicação judicial do caso e da ausência de perspectivas imediatas de recuperação das terras, cresce o crônico estado de animosidade entre Maxakalís e fazendeiros, o que tende a redundar, em breve, na repetição de conflitos e violências.
Pataxó da Coroa Vermelha (Bahia) e o Museu Aberto do Descobrimento
Com Terra regularizada, aumentam pressões para que os Pataxó da Coroa Vermelha acatem a implantação, sobre essa, do babilônico "Memorial do Encontro", integrante do projeto Museu Aberto do Descobrimento (MADE).
A 09 de julho foi finalmente assinado, pelo Presidente da República, o decreto de homologação da demarcação da Terra Indígena Coroa Vermelha, composta por duas glebas: cerca de 1420 hectares de remanescentes da Mata Atlântica, floresta secundária e algumas capoeiras; e mais 72 hectares à beira-mar, bem em frente à baía Cabrália -onde aportou a esquadra do "descobrimento"- e sobre o pontal -onde frei Henrique de Coimbra rezou a "Primeira Missa no Brasil"- no qual vivem hoje cerca de 1500 pataxós.
Além dos Pataxó, a área à beira-mar está completamente intrusada por centenas de ocupações de não-índios, resultado da desenfreada especulação imobiliária que, nos últimos vinte anos, devastou e descaracterizou completamente um dos mais belos e valorizados pontos do litoral baiano, e que, além de Terra Indígena, é -ou deveria ser- também protegido como patrimônio histórico nacional e pela legislação ambiental.
A aproximação do quinto centenário do "descobrimento" fez com que, por fim, atenções oficiais se voltassem para o seu sítio, o que, de início, custou muito esforço aos Pataxó para que não fossem simplesmente retirados da área junto com o entulho de construções irregulares que a atravancam, como pretendia o governo do Estado da Bahia que, em janeiro de 1996, chegou a editar um decreto de desapropriação de toda a área, sem a menor consideração ao fato de ser ela Terra Indígena.
Apesar de abocanhar, de um só golpe, mais de 300.000 hectares do litoral baiano, o projeto notabilizou-se por nunca ter sido submetido à discussão com a sociedade regional, nem com instituições culturais e acadêmicas, consistindo, basicamente, em uma coleção de "monumentos" de duvidosa adequação arquitetônica (apesar do renome internacional do seu autor, o arquiteto Wilson dos Reis Neto), e na proposição de uma série de intervenções que, sobre o pano-de-fundo da proteção ao patrimônio histórico e ambiental incidente na área do projeto, buscam, inequivocamente, atrair investimentos públicos que favoreceriam, acima de tudo, alguns empreendimentos privados, sobretudo na área do turismo, de iniciativa dos poucos grupos empresariais que detêm a maior parte das terras abrangidas pelo MADE.
Protelada desde 1996 e mantida como mais um trunfo para barganha com os Pataxó, a regularização da Terra Indígena, finalmente arrematada em julho como medida indispensável às próprias pretensões do MADE, marca também a intensificação de pressões sobre a comunidade à medida em que se aproxima um prazo fatal para início das obras do "Memorial", a partir do qual já não será possível inaugurá-lo antes de abril do ano 2000. Nas últimas semanas, têm se intensificado a revoada de autoridades federais de Brasília para a "costa do descobrimento" e as principais lideranças indígenas já exibem automóveis novos e outros cobiçados bens de consumo da sociedade nacional, o que, previsivelmente, tem estimulado dissenções internas.
Tuxá (Bahia) e a Privatização da CHESF
Privatização do setor elétrico ameaça comunidades Tuxá de não serem devidamente reassentadas, doze anos após terem perdido sua terra para o reservatório da hidrelétrica de Itaparica. Transferidos de seu território tradicional desde 1986 por força da construção da barragem de Itaparica, pela CHESF (Companhia Hidrelétrica do São Francisco), os Tuxá ainda aguardam que a empresa implante as obras de infraestrutura e providencie a assistência técnica necessárias para que retomem, nas novas aldeias de Ibotirama e Rodelas, suas atividades produtivas, com base, sobretudo, na agricultura irrigada.
As providências para tanto, na verdade, só tiveram algum impulso nos últimos quatro anos e, no momento, a Procuradoria da República na Bahia tenta finalizar as negociações entre as partes para assinatura de um "termo de ajustamento de conduta" que defina, de uma vez por todas, os compromissos da CHESF para com o programa de reassentamento da comunidade de Ibotirama; enquanto que, para o grupo de Rodelas, o estudo técnico para definição da área a ser reservada para tal reassentamento apenas acaba de ser concluído.
Com a criação de um Grupo Executivo Interministerial (GERPI) para cuidar das negociações com os reassentados da barragem de Itaparica, a CHESF já não tem autonomia política nem financeira para prover o resgate de sua dívida social, e toda a cuidadosa negociação que vinha sendo conduzida pela Procuradoria da República entre empresa, FUNAI e comunidades Tuxá passou a ser sistematicamente boicotada pelo GERPI, que, interessado em uma solução imediata, vem pressionando os representantes tuxá para que as famílias indígenas aceitem receber uma indenização em dinheiro em lugar dos projetos produtivos que, no caso, nem seriam implantados.
Não é necessário muito conhecimento para que se saiba que uma tal "solução" representaria a completa inviabilização econômica das comunidades indígenas e, possivelmente, sua dissolução.
Xukurú-Karirí (Alagoas)
Interesses políticos dificultam processo de identificação e delimitação da Terra Indígena e estimulam tensão social.
O processo de identificação da Terra Indígena Xukurú-Karirí em Palmeira dos índios, Alagoas, teve início em agosto de 1997 e o necessário levantamento fundiário das ocupações de não-índios incidentes na área prosseguiu lenta mas pacificamente até janeiro deste ano, quando, atendendo a apelos de parlamentares alagoanos liderados pelo então senador e atual Ministro da Justiça, Renan Calheiros, o Presidente da FUNAI visitou a cidade para "tranqüilizar os produtores" temerosos de perder suas "propriedades" incidentes na Terra Indígena.
A partir de então, os detentores de posses na TI passaram sistematicamente a não receber nem prestar declarações aos técnicos da FUNAI encarregados do levantamento que, embora tenha se arrastado até o mês de julho último, cobriu apenas 21% das ocupações, 90% dos quais antes da referida visita.
Enquanto isto, mesmo sem que o relatório de identificação tenha sido concluído, a FUNAI iniciou gestões, também patrocinadas por políticos alagoanos, para efetuar indenizações imediatas em uma "área prioritária" em que os ocupantes estariam interessados em desfazer-se de suas posses, e que abrange cerca de 700 hectares dos 15000 da área em identificação.
Para lograr algum apoio à iniciativa, valem-se os interessados do fato de que muitas famílias indígenas se encontram sem acesso à terra e, portanto, propensas a acatar uma "solução" que garanta tal acesso de modo mais imediato.
Se tal ocorrer, temem os Xukurú-Karirí que o processo de regularização da Terra como um todo venha a ser "engavetado", o que, aliás, já teria sido prometido aos ocupantes não-índios pelo próprio Ministro da Justiça, que tem entre eles fortes bases eleitorais.
Xukurú (Pernambuco) e o Assassinato do Cacique Chicão
Mais um crime de morte contra líder indígena caminha para a impunidade enquanto processo de regularização da Terra retrocede na Justiça.
O assassinato, a 20 de maio, por pistoleiro, do cacique Xukurú, Francisco de Assis Araújo -Chicão-, consumou a série de insistentes ameaças que lhe eram dirigidas desde que assumiu a liderança da luta dos Xukurú pela reconquista e regularização de sua Terra.
Sob o comando de Chicão os Xukurú obtiveram a identificação dessa Terra, em 1989, pela FUNAI, a declaração de sua posse, pelo Ministério da Justiça em 1992 e, finalmente, sua demarcação, em 1996, após a rejeição formal de uma bateria de quase trezentas contestações facultadas pelo Decreto 1775 (08/01/96) aos não-índios intrusados na área.
Em paralelo ao processo administrativo, Chicão e os Xukurú promoveram diversas retomadas de faixas do seu território, ainda hoje intrusado em 85% da sua extensão por cerca de trezentas posses, mas, principalmente, por dezessete grandes fazendas de poderosos proprietários do município de Pesqueira, promotores explícitos de uma campanha contra a regularização da Terra Indígena, da qual, evidentemente, fazia parte as ameaças anônimas dirigidas aos líderes Xukurú.
Apesar do insucesso no processo do contraditório, os ocupantes da área movem ação judicial para anulação do processo administrativo de regularização da Terra, alegando insuficiência de prazo para o contraditório, iniciado, no caso, apenas após a edição do 1775, quando a Terra já estava identificada e delimitada. Vitórias parciais dos fazendeiros conduziram o caso à apreciação final pelo Supremo Tribunal Federal, onde aguarda julgamento.
Enquanto isto, a "Anistia Internacional" responsabilizou o governo brasileiro pelo assassinato de Chicão, mesma conclusão do relator da Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada no Congresso Nacional, deputado Fernando Ferro. As investigações da polícia pernambucana, contudo, encaminham-se para a consumação de mais um caso de impunidade: não há pistas do assassino nem, alegadamente, apesar das evidências, de quem seriam seus possíveis mandantes.
Tapeba (Ceará)
Enquanto processo de demarcação é paralizado na Justiça, autores da ação promovem invasão em massa da Terra Indígena com o objetivo de inviabilizá-la.
Embora tenha tido sua demarcação determinada pela Portaria Ministerial competente em setembro de 1997, a realização dessa foi obstada por ações judiciais da Prefeitura de Caucaia e de proprietários locais.
As ações contra os Tapeba e a regularização do seu território, lideradas pela família Arruda, remontam ao início do processo de identificação da área, em 1986, e passam mesmo pela alegação de que os Tapeba não seriam índios, embora os autores da ação neste sentido tenham, até agora, se negado a realizar o depósito para realização da perícia antropológica determinada pelo juiz federal encarregado.
O mais grave no caso da paralização do processo demarcatório é que os autores das ações obtiveram, no STJ, a anulação da Portaria Ministerial, com base no mesmo argumento utilizado no caso Xukuru de imperfeição, no processo, da garantia do contraditório previsto no Decreto 1775, o que ameaça fazer retroceder todo o processo, desde a identificação da TI.
Enquanto isto, embora a condição de sub-júdice determine a não alteração da situação ocupacional da Terra, a família Arruda vem, impunemente, promovendo sua invasão por famílias pobres que vivem no entorno da área, situada na periferia da região metropolitana de Fortaleza.
Tremembé (Ceará)
Empresa agro-industrial mantém ocupação de Terra Indígena e impede processo de regularização com ação judicial.
Trata-se de mais um caso de processo de regularização de Terra Indígena com retrocesso por ação judicial.
Em 1996, juíza federal do Ceará -Germana Moraes- proferiu sentença anulando o processo de identificação da Terra Indígena Tremembé de Almofala, em ação impetrada pela empresa agro-industrial "Ducoco S. A.", invasora da Terra Indígena desde há duas ou três décadas. A juíza concluiu que a área em litígio "não é terra de tradicional ocupação indígena" com base apenas no fato de que os índios não se encontram em sua posse efetiva, tendo, inclusive, preterido a perícia antropológica que já havia sido determinada e indicada pelo juiz anteriormente encarregado da ação.
Os advogados dos Tremembé e da FUNAI requereram a anulação da inusitada sentença, mas o processo, embora já conte com parecer favorável aos índios emitido pela Procuradoria Regional da República, encontra-se há já mais de um ano aguardando julgamento no Tribunal Regional Federal de Recife.
Enquanto isto, os Tremembé, que foram violentamente expulsos da área ora em litígio, permanecem sem possibilidade de acesso às suas melhores terras, tendo ademais paralizado e praticamente retrocedido à estaca zero todo o processo de regularização do seu território.
Seca e Desassistência
No atual período de seca, a população indígena do sertão do Nordeste sofre também com a reedição de velhos preconceitos e com a crônica desassistência por parte do Estado.
Como aconteceu em 1993 e em ocasiões anteriores, a população indígena nos municípios em situação de emergência pela seca tem tido, mais uma vez, dificuldades de acesso às frentes de trabalho e à ajuda governamental. Cadastrados pelas prefeituras municipais junto com o restante da população, os índios são sempre os últimos a terem acesso às vagas nas frentes e a receber as ajudas em alimento, vítimas dos velhos preconceitos e dos interesses eleitorais dos poderes públicos municipais.
Para contornar este tipo de problema, a FUNAI conseguiu que a CONAB repassasse as "cestas básicas" diretamente para o órgão, o que, contudo, não tem agilizado a distribuição dessas face à extrema burocracia dos organismos federais. Há estados onde a situação é mais grave, notadamente em Pernambuco, em que a prestação do auxílio tem sido simplesmente caótica.
Mais da metade -aproximadamente 37 mil- dos cerca de 65 mil índios da região vivem no interior do polígono das secas e, no atual período, as situações mais graves são as dos Xakriabá (cerca de 6000 pessoas), em Minas Gerais; dos Pankararé (1500) e Kantaruré (300), na Bahia; dos Jiripankó (1000), em Alagoas; e dos Kambiwá (1600) e Kapinawá (600), em Pernambuco.
Índios do Oiapoque, Amapá,
conseguem impedir a
nomeação de políticos para a FUNAI local.
Lux Vidal
USP
No final de abril, representantes das etnias Karipuna, Galibi-Marworno e Palikur, das terras indígenas Uaça I e II, Galibi e Juminã, ocuparam a Administração Regional da FUNAI em Oiapoque em protesto à nomeação de um funcionário indicado pelo Senador Gilvan Borges (PMDB-AP). 150 índios, reunidos em assembléia, assinaram um documento, exigindo a exoneração do novo administrador.
Os índios apontavam a não participação das comunidades e de sua Associação, a APIO, no referido processo. Tradicionalmente, as comunidades indígenas da região discutem todas as questões e problemas que lhes dizem respeito de forma coletiva e participativa, através de assemmbléias e reuniões nas aldeias. Os índios conseguiram vencer em Brasília uma "guerra" contra o Senador amapaense. Fizeram o presidente da FUNAI, Sulivan Silvestre, revogar a portaria de nomeação do novo administrador. No seu lugar, os índios das três etnias indicaram para ocupar o cargo o índio Mário dos Santos Caripuna, uma pessoa experiente e altamente respeitada na região.
Boletim da
ABA # 30