Comissão de Direitos Humanos

MEMBROS INTEGRANTES DA COMISSÃO: ANA LÚCIA E. F. VALENTE - UFMS; CLAUDIA FONSECA - UFRGS; LUIZ EDUARDO SOARES - UERJ/IUPERJ; LUIZ MOTT - UFBA; LUÍS ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA - UnB; PEDRO BODÊ DE MORAES - UFPR; ROBERTO KANT DE LIMA - UFF - PRESIDENTE; SERGIO ADORNO - NEV/USP; THEOPHILO RIFIOTIS - UFSC

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I - APRESENTAÇÃO

Roberto Kant de Lima

UFF - Presidente

Logo após a realização de nossa Reunião bianual em Vitória, ES, fui surpreendido com um telefonema de nossa Presidente, convidando-me para presidir uma Comissão de Direitos Humanos criada pela atual gestão de nossa Associação. Embora desgastado com o excesso de trabalho que os minguados e congelados salários nos tem imposto para garantir nossa reprodução social e intelectual, decidi aceitar a incumbência, pois ela representava uma oportunidade única de aproximação efetiva com a gestão de minha associação profissional que não só me proporcionaria maior interação com ela e com meus colegas, como também de colaborar para expandir a visibilidade de uma área de interesse profissional à qual eu e outros colegas vimos nos dedicando, de uma forma ou outra, já há alguns anos.

A idéia era produzir, em primeiro lugar, um inventário das atividades realizadas por associados em torno de temas que envolvessem o acesso a direitos e a construção e explicitação de identidades públicas por parte de segmentos de nossa sociedade, excluindo-se os interesses pela terra e pelas sociedades indígenas, representados em outras duas comissões criadas concomitante e paralelamente. Tratava-se, portanto, de abrir um outro escaninho na classificação profissional, reconhecimento louvável de que, a par das áreas tradicionais de atuação dos antropólogos, no Brasil, outros espaços fluidos já estavam a merecer institucionalização. Este inventário, ao final dos dois anos de gestão da Diretoria e de duração da Comissão, originaria, no mínimo, um catálogo das atividades dos associados vinculadas a esta problemática. Outros produtos, no entanto, não estavam descartados, como encontros nacionais e internacionais para discussão de temáticas comuns e agenciamento de recursos que fossem destinados à pesquisa e publicização de seus resultados. Entretanto, no primeiro momento, haveria que produzir um texto a ser publicado em nosso Boletim, a ser entregue até 31 de agosto do corrente.

Juntamente com o convite para presidir a comissão vieram algumas sugestões para sua composição, todas acatadas por mim, dada a sua relevância e pertinência. A estas juntei algumas outras indicações, advindas umas, de consultas a colegas mais experientes, outras, de meu próprio conhecimento pessoal. Todas foram também aceitas pela Diretoria, que apenas cuidou de que todos pertencessem aos quadros da associação, condição indispensável para integrar a comissão. Finalizadas as consultas para a composição da comissão, chegamos a um número satisfatório de componentes, que garantiu à comissão a possível representatividade regional e a heterogeneidade de posições essencial ao desenvolvimento deste tipo de trabalho em uma associação profissional composta por pessoas e posições distintas e diversificadas. Por isso mesmo, um encontro preliminar seria desejável, mas a exigüidade de tempo e de recursos impossibilitou sua realização, que seria, em nosso caso, essencial para estabelecer formas e condições de funcionamento da comissão, assim como consenso mínimo sobre sua pauta de atuação, haja visto a novidade de nossa interação institucional. Assumindo, então, o papel de coordenador, solicitei sugestões de procedimento aos colegas, expondo, inicialmente, meu ponto de partida para analisar a questão, já explicitado na ocasião da formulação do convite para presidir a comissão.

Assim, dessa perspectiva - a de um antropólogo bacharel em direito - a primeira questão a ser abordada seria a discussão da perspectiva antropológica em relação ao conceito de direitos humanos, cujo contexto universalista é indiscutível. Dada minha experiência profissional com pescadores, polícias e justiças criminais, parecia-me que tal perspectiva, de cunho eminentemente humanístico e juridicizante, em especial no Brasil, se colocava em confronto com um tipo de prática profissional encontrável em nosso meio e que tem-se voltado, sistematicamente, contra propostas de universalização de modos de vida, por considerá-las, em princípio, canais de imposição de valores e processos de colonização cultural. Mais, as propostas vinculadas à implantação de uma política de direitos humanos em nossa sociedade têm-se pautado por seu caráter idealizado, algumas vezes contribuindo para construir verdadeiros engessamentos preconceituosos de certas categorias por parte dos envolvidos - como é o caso da verdadeira fobia que a categoria direitos humanos suscita na policia do Rio de Janeiro - opondo-se ao papel que tradicionalmente a antropologia tem cumprido na sociedade brasileira, ao explicitar as diferenças entre os vários segmentos que a constituem e as relações de poder embutidas nas grandes racionalizações sobre a cultura e a sociedade. Assim, não me parecia muito eficaz a estratégia de buscar a adesão da população a um ideário que parece ir contra sua experiência sensível, fenômeno tão bem intuído por Lévi-Strauss em seu inesquecível Raça e História, ao analisar criticamente os fundamentos sociológicos do racismo: como afirmar às pessoas que elas são iguais, se elas se percebem diferentes?

Na oportunidade, um dos membros da comissão, Luiz Eduardo Soares, sugeriu que um bom começo seria que todos procurássemos produzir um curto texto onde expressássemos nossas preocupações e nosso entendimento dos problemas suscitados pelo tema. Solicitei, então, a todos os demais componentes que me enviassem esta contribuição, ao final de um certo prazo, que deveria ser compatível com aquele da entrega deste documento à ABA.

Como costuma acontecer nesses casos, houve diversas respostas a essa metodologia. Ao final, três colegas produziram, tempestivamente, textos razoavelmente elaborados, um enviou exemplares de textos que registram sua militância efetiva em relação a determinada minoria e outro, um rico elenco de questões, possibilidades e sugestões. Os demais não puderam, ou não quiseram, nessa fase de nossos trabalhos, se manifestar.

Acredito que a primeira idéia era discutir os textos com o auxílio da internet para chegarmos a um consenso sobre o que fazer com as idéias lançadas. Entretanto, mesmo tendo sido os textos distribuídos, não houve tempo hábil para tal. Restava-me, então, dada a exigüidade de prazo, tomar uma decisão quanto ao aproveitamento do material. Decidi tecer comentários sobre o mesmo e reproduzir os textos mais elaborados, em consideração ao trabalho dos colegas. Espero que em breve possamos sintonizar melhor nossas questões e esclarecer nossas diferenças, para benefício de todos aqueles que estão envolvidos nessa problemática. O percurso institucional é novo e requer engenho e arte para que não se firam suscetibilidades, cerceando manifestações legítimas

O exame do material enviado pelos membros da comissão, pela sua heterogeneidade, anuncia a riqueza do debate que está por vir. Embora todos concordemos com a possibilidade e a necessidade de democratizar as relações sociais em nosso país, diferem as vias de acesso a esse resultado. De um lado, teoricamente, temos a afirmação de que os direitos humanos são um instrumento imprescindível à democratização da sociedade e que seu caráter universalista, paradoxalmente, poderia servir não para homogeneizar valores, mas para garantir o direito à diferença de segmentos distintos da sociedade; de outro, constatações empíricas que mostram que o processo de internalização de valores democráticos, em nossa sociedade, passa pela possibilidade de eles serem traduzidos para a nossa linguagem social, implicitamente fundada na naturalização da desigualdade.

Assim, temos três contribuições - de Luís Roberto Cardoso de Oliveira, de Luiz Eduardo Soares e de Ana Lúcia E.F. Valente, que apontam no sentido da necessidade de promover eficazmente uma política de direitos humanos, que não estaria em contradição com as tradicionais práticas de nossa disciplina: me eximo de comentá-las por estarem abaixo transcritas. Mas também recebemos outras, que enfatizam as dificuldades e obstáculos encontrados para sua promoção.

Uma dessas últimas reflete a prática em defesa de determinada minoria - como é o caso dos números 33 e 37 do "Boletim do Grupo Gay da Bahia", enviados por Luiz Mott - cujas publicações tem por objetivo denunciar violações de Diretos Humanos sofridas por homossexuais. O número 37 contém "o mais completo dossier até hoje produzido no país sobre a Violação dos Direitos Humanos e Assassinatos de Homossexuais registrados no Brasil em 1997." Após criticar as estatísticas vigentes, baseadas em registros que não tipificam os crimes de ódio contra homossexuais, nem registram as orientações sexuais das vítimas, muitas vezes ignoradas pela polícia ou ocultas por seus familiares, o Boletim também denuncia que a intolerância e a violência anti-homossexual, expressa na violação de seus direitos humanos (140 casos em 97 contra 12 em 96) e assassinatos de gays, lésbicas e travestis (126 em 96 para 130 em 97), estão aumentando em freqüência, selvageria e impunidade, colocando o Brasil, segundo o relatório da Anistia Internacional de Junho de 1997, na triste condição de campeão mundial de assassinato de gays, lésbicas e travestis, equiparado ao Irã, Turquia, Zimbábue e Iraque, vergonhosos destaques mundiais da homofobia (p.2).

O Boletim também destaca o fato de que o Projeto de Parceria Civil Registrada provocou um "verdadeiro pânico homofóbico", resultando em organização de cruzada contra o reconhecimento legal da igualdade de direitos dos homossexuais. O texto destaca também que se certas declarações feitas contra os homossexuais fossem feitas contra outras minorias - como negros, judeus, protestantes, etc. - teriam provocado comoção nacional e prisão dos faltosos; mas como são contra homossexuais, a opinião pública acha graça e a homofobia ganha foros de normalidade (p.2). Os objetivos da divulgação, segundo o Boletim, são: (1) documentar e denunciar o quão violenta é a discriminação anti-homossexual em nosso meio; (2) sensibilizar as autoridades para investigar, prender, julgar e punir exemplarmente os que violam os direitos humanos dos homossexuais, tratando a discriminação sexual com o mesmo rigor do racismo; (3) sensibilizar a sociedade e as entidades de defesa dos direitos humanos a serem mais solidárias com os homossexuais, defendendo-os quando vítimas de qualquer tipo de violência; (4) mobilizar os gays, travestis e lésbicas para que se protejam mais contra a violação de seus direitos de cidadania, denunciando e lutando para que seja cumprida a constituição Federal quando diz: "Todos são iguais perante alei, sem distinção de qualquer natureza... sendo objetivo fundamental da República promover o bem de todos, sem preconceitos e quaisquer formas de discriminação (Art.3/5)" (p.3).

Claudia Fonseca, em intervenção informal, nos traz reflexões sobre o uso da noção de "direitos humanos" no Brasil. Lembra que a idéia de direitos humanos é muitas vezes acionada para assinalar uma insatisfação com trâmites jurídicos locais. É o caso clássico de presos políticos, o menos clássico de sociedades indígenas, e o inteiramente novo de vítimas de violência doméstica . A noção de uma justiça supra-estatal, internacional, tem um papel inegável a desempenhar na proteção de direitos civis. Entretanto, nem em um mundo globalizado, terá a mesma eficácia do que um sistema nacional adequado para promover os direitos de cidadania. Assim, trabalhando com a tensão entre o ideal igualitário e a realidade da diferença que perpassa a sociedade brasileira, entre a arrogância totalitária (que desqualifica tudo que é diferente) e a complacência paternalista (que aceita a diferença como parte da ordem natural), Fonseca coloca a pergunta: qual a contribuição da Antropologia para a justiça social no Brasil?

Engajando a reflexão antropológica em medidas práticas à procura deste ideal, coordena uma equipe de pesquisadores (NACI) que trava parcerias com diferentes agentes sociais para pensar temas concretos - os conselhos tutelares da criança, a adoção internacional, a institucionalização de adolescentes infratores. Examina situações em que a legislação moderna, em nome de ideais aparentemente inquestionáveis, produz efeitos contrários aos almejados; relata como mecanismos legais de proteção a segmentos discriminados da sociedade se tornam instrumentos de opressão para outros setores, mais discriminados ainda. Finalmente, sugere a relevância de outras lógicas jurídicas, consuetudinárias, que em nosso sistema - de tradição romana, idealista - não recebem atenção.

De minha parte, em meu trabalho cotidiano, tenho procurado tornar explícitos os paradoxos embutidos em nosso sistema de justiça criminal e segurança pública, que reúne instituições próprias de sociedades de estrutura hierarquizada e de formato igualitário em uma mesma legislação, a ser seguida contraditória e esquizofrenicamente pelos operadores envolvidos, numa reprodução jurídica do dilema brasileiro de que nos falou DaMatta. O exemplo mais gritante desta "distonia cognitiva" é a chamada prisão especial, instituição que prevê tratamento diferenciado para aqueles que têm alguns sinais de distinção - como instrução superior, entre outras opções - mesmo que tenham sido co-autores em crimes comuns que envolveram outros participantes, os quais não tem direito a esses privilégios. Configura-se, desta forma, tratamento desigual a pessoas desiguais, reproduzindo a tradição das Ordenações do Reino de Portugal, em que até mesmo as penas diferiam em razão da pessoa (ratio personae). Ou seja, para cumprir a lei, a polícia e a justiça criminal devem discriminar entre os infratores, em paradoxal confronto contra o que dispõe nossa Constituição. É evidente que se este dispositivo continua inscrito em nossas leis atuais - na verdade nunca se cogita de extingui-lo mas, pelo contrário, de ampliá-lo; cada vez mais categorias sociais e profissionais tentam nele se incluir, inclusive diretores de sindicatos - , é porque encontra algum fundamento em nossas práticas e representações cotidianas, tanto das elites, como das camadas populares. Essas práticas se refletem no fato de que no Brasil contemporâneo só encontramos masmorras, cadeias, depósitos de presos, apenas rotulados formalmente como penitenciárias e presídios, pois as "pessoas de bem", quando cometem algum "deslize", são recolhidas separadamente daquilo que Oliveira Vianna uma vez denominou de "baixo povo".

Ora, como se quer que esses mesmos operadores ajam de maneira igualitária nas ruas, implementando e universalizando a aplicação de "direitos humanos", se eles próprios não se sentem detentores dessas "prerrogativas"? Se a própria lei não os trata assim? Este exemplo, tirado entre muitos outros pelo absurdo de seu fundamento legal, demonstra que não basta reformar legislações ou ensinar direitos humanos aos chamados operadores da segurança pública, nem rotulá-la de "segurança cidadã" ou de "polícia comunitária".

Por outro lado, tenho coordenado trabalhos de consultoria e assessoria para criação de Reservas Extrativistas de Pesca Marítima pelo IBAMA, assim como para avaliação e acompanhamento da elaboração e execução de seus Planos de Utilização. Trata-se, teoricamente, de fazer a etnografia de procedimentos de administração de conflitos aparentes quando ocorre a explicitação da identidade pública de um segmento da sociedade que se organiza e reproduz localmente, e que tem tradição secular de estar submetido e de reagir a extremos mecanismos de controle repressivo - pelos colonizadores, pela Marinha, pelos fiscais federais, etc.

Em todos esses casos, verifica-se a necessidade de promover um programa de desconstrução desse modelo esquizofrênico, para que o implícito se torne explícito e possamos com ele lidar adequadamente, formulando nossas opções de forma responsável e autônoma. Na minha opinião, esta é um das tarefas próprias de uma Comissão de Direitos Humanos de uma associação de antropólogos: tornar explícito o implícito, tarefa que nos tem cabido no exercício cotidiano de nossa profissão..

II - PROPOSTAS DA COMISSÃO(?):

Como disse anteriormente, não tive disponibilidade para realizar uma reunião, nem real, nem virtual, que proporcionasse o debate entre as diversas correntes representadas na Comissão e que pudesse produzir algumas propostas consensuais. Entretanto, alguns membros, como Claudia Fonseca e Ana Lúcia Valente fizeram, espontaneamente, referência à necessidade de maior integração com operadores jurídicos, tarefa a que, coincidentemente, tenho me dedicado profissionalmente nos últimos dois anos. Desta experiência tenho aprendido que a aparente diversidade desses operadores esconde uma homogênea representação sobre a ineficácia de controles preventivos da ordem social. Essas representações têm-se reproduzido acriticamente, tanto em função do caráter dogmático do ensino do direito como da ênfase no adestramento presente no ensino militar, em especial nos seus escalões inferiores.

Como tenho insistido, a forma de socialização acadêmica é fundamental para o produto que se deseja obter. Nesse caso, apesar das sucessivas aproximações que algumas dessas instituições - em especial, a polícia militar - têm realizado com a universidade, a grande maioria ainda não ultrapassou o nível da cooptação, que beneficia esta ou aquela facção com o recurso dessa aliança. Por outro lado, a esquizofrenia do confronto entre os valores veiculados impositiva e explicitamente nas salas de aula, vinculados a preceitos igualitários, individualistas e universalizantes e uma prática hierárquica, personalista e particularizante, inscrita tanto na lei como nas representações da sociedade, produz um efeito perverso: por um lado, a aceitação inevitável, obediente e explícita das preleções e, por outro, a rejeição, na prática cotidiana, a todo o conhecimento formalmente assimilado, como estratégia para garantir a própria sobrevivência dentro da instituição, que passa a se reproduzir autonomamente, de forma tradicional, utilizando mecanismos informais, velhos conhecidos dos antropólogos e que neutralizam todas as tentativas formais de intervenção externa.

Assim, essa interação entre os antropólogos e os operadores jurídicos e de segurança pública somente terá proveito para as partes envolvidas se os operadores estiverem dispostos a escutar os antropólogos e os antropólogos, a escutar os operadores. Como diz e repete há muitos anos nosso decano, Professor Luiz de Castro Faria, nossa tradição jurídica é auto-fundante, reproduz-se através de técnicas escolásticas de transmissão e carrega consigo referências de nosso pensamento social mais elitista. Uma das maiores dificuldades que se tem em conversar com esses operadores é superar-lhes a socialização, desconstruir sua lógica, mesmo no caso daqueles que se aproximam seriamente, para se profissionalizar como antropólogos: eu que o diga! Penetrar nesse mundo, compreender suas categorias e iniciar uma conversa produtiva, em termos aceitáveis por nossas regras acadêmicas, aí está nosso maior desafio. E esta tarefa, como sempre, talvez nos auxilie a aprender um pouco mais sobre nós mesmos, o que certamente nos tornará mais esclarecidos e tolerantes com as limitações prórpias de nossa profissão.

Praticamente, aproximações e parcerias poderiam ser tentadas, com ou sem o apoio de entidades internacionais, governamentais ou não-governamentais, voltadas para explicitar e compreender os contextos culturais em que os direitos humanos são instituídos e violados. Por outro lado, seminários de esclarecimento para antropólogos, mas também para cientistas sociais e para o público interessado, em geral, poderiam ser organizados, assim como coletâneas de textos e vídeos - bem como outros produtos da parafernália telemática - voltados para esclarecer a população não só sobre a possibilidade de por em prática seus direitos, como também para o efeito negativo que suas práticas discriminatórias cotidianas têm na implementação dos direitos de todos. Finalmente, há o desafio de auxiliar a viabilizar novos direitos, promovendo e valorizando o reconhecimento oficial de regras e costumes locais, como é o caso das discussões que tenho acompanhado em torno da implantação e desenvolvimento das Reservas Extrativistas de Pesca Marítima do IBAMA, já mencionadas.

Havendo recursos, materiais e humanos, poderíamos integrar novos dados a bancos de dados já existentes e montar um site de referência com informações diversificadas sobre a questão, desde denúncias de violações de direitos humanos até bibliografias e cursos existentes sobre o assunto. Também devemos nos perguntar quais são, mais especificamente, as questões relacionadas aos direitos humanos que nossos associados julgam importantes, quem são esses colegas e com quem estão envolvidos nessas questões, qual a sua afiliação institucional, etc. Essas e outras iniciativas serão discutidas no âmbito da Comissão, mas desde já convidamos os associados a enviar sugestões para nossos endereços acima indicados, ou para a home-page da ABA

III - ANEXO

A seguir, transcrevo os textos recebidos, a que fiz referência:

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ALGUMAS PALAVRAS SOBRE DIREITOS HUMANOS E ANTROPOLOGIA

Luiz Eduardo Soares

(Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ e Professor do IUPERJ)

O tema é muito importante e desafiador, seja no plano prático-político, seja no plano teórico. A vocação "astronômica" da antropologia, celebrada e celebrizada por Lévi-Strauss, remete, aqui, a dois horizontes de significação: por um lado, à nossa sensibilidade crítica e relativizadora, que opera deslocamentos, recontextualizações e descentramentos; por outro lado –e não sem ironia—, à nossa tendência a olhar para longe, para o alto, tropeçando, por vezes, no trivial, no contingente e imediato, nas determinações da política e da vida prática.

Claro que há contratendências, por assim dizer: a preocupação intelectual com as inscrições capilares das micro-estruturas, reencenadas nas interações sociais primárias; ou a obsessão narcisista dos autores chamados pós-modernos, excessivamente voltados para o sentido da própria atividade e do próprio discurso.

Talvez a presente reflexão seja possível, com suas ambigüidades, porque parte do reconhecimento da legitimidade e da relevância estratégica de ambas as tendências, em nossa subcultura antropológica, focalizando exatamente o ponto de confluência e/ou de afastamento: (1) os direitos humanos, para os antropólogos contemporâneos, são a expressão etnocêntrica das pretensões hegemônicas de formações culturais específicas, apoiadas em instituições, Estados e alguns aparatos de poder; (2) constituem instrumento indispensável de luta política democrática e momento especialmente significativo do processo civilizatório.

Ambas as leituras são verdadeiras e compatíveis com as melhores tradições da Antropologia, em cujo quadro convivem a desconstrução do humanismo, herdeiro das filosofias iluministas e da axiologia judaico-cristã, e a percepção crítica das relações de poder, nas quais opressões históricas se exercem, reproduzindo as condições para a afirmação de valores e ideologias obscurantistas. Mais uma vez, a recusa do iluminismo e de seu legado retórico, pleno de alusões ao progresso e à evolução, ao conhecimento e à ciência, convive com a recusa do obscurantismo e da exploração reacionária. Como, sem contradições insuperáveis, falar em obscurantismo e repelir o ideário das Luzes, falar em exploração reacionária e rejeitar a ideologia evolutiva do progresso? De que modo a antropologia propicia o ambiente para esse convívio paradoxal e bizarro?

A antropologia nos ensinou a pensar nossos próprios valores como partes constitutivas de nossa cultura, ela mesma sujeita a condicionantes históricos e a circunscrições sociais bastante delimitadas. Em o fazendo, nos autorizou a lançá-la contra si, cobrando-lhe consistência e lhe impondo a renúncia a epistemologias essencialistas, das quais o estruturalismo talvez tenha representado a versão mais sofisticada e ousada. Lançar o veneno corrosivo da crítica relativizadora contra a disciplina e seu discurso-padrão implica desnudar o caráter histórico, datado, culturalmente limitado da antropologia e do relativismo.

Em o fazendo, corremos o risco de jogar o jogo ocioso da especularidade narcísica, caso derivemos do círculo de giz cético a condenação ao silêncio, à ataraxia ou à simples adesão ao senso comum. Mas, por outro lado, criamos condições para um salto qualitativo de grande interesse, se soubermos extrair da situação paradoxal uma outra lição, bem mais positiva e de amplos efeitos práticos. Seria possível resumi-la nos seguintes termos: (1) a tradição da antropologia, por sua riqueza, sintetiza valores e perspectivas iluministas e românticas, conforme já nos havia ensinado alguns mestres da disciplina, como Roberto DaMatta; (2) tal como leio essa polaridade exemplar, poderia concluir que a antropologia reencena, no drama cultural de nosso tempo, o arcaico dilema do ceticismo, para o qual defendo a solução pragmática, cuja interpretação, no contexto do quadro que descrevo, assim se descreveria: (2.1) a contradição de que participamos é insuperável e só a poderíamos descartar se nosso jogo de linguagem fosse capaz de apontar o limite, o horizonte, o que só ocorre a posteriori, quando a problemática já foi ultrapassada; (2.2) no entanto, a natureza agonística, trágica, aporética e insuperável de nosso contexto, segundo a descrição que privilegiei, ao invés de impedir posicionamentos práticos e discursivos, ou prático-discursivos, apenas afirma a inexorabilidade do caráter valorativo e pragmático-político dos posicionamentos; (2.3) a conclusão assinalada no item anterior é possível, na medida em que se recuse a metafísica fundacionalista, em cujos termos o conhecimento e o valor só poderiam formular-se e mobilizar-se, legitimamente, se estivessem fundados na Razão ou na essência dos objetos pertinentes, aos quais se dirigem as ações e/ou os discursos em questão.

Segue-se o argumento, com o qual encerro essa breve reflexão introdutória: parece-me perfeitamente possível e desejável que os antropólogos defendamos os direitos humanos tais como consagrados pelos documentos da ONU, mantendo-nos abertos, evidentemente, para postulações específicas de grupos sociais que critiquem determinados princípios, os quais teriam de ser objeto de discussão, em cada caso específico, respeitadas as especificidades de cada contexto, sendo inócua a procura de leis universais de validade ilimitada (aliás, o cientista político James Fishkin já demonstrou que nenhum princípio está livre de gerar efeitos perversos que contrariem suas intenções originais). Comparando os efeitos sociais associados a posturas favoráveis e desfavoráveis aos direitos humanos, parece-me claro que, no Brasil, hoje, e em nosso mundo contemporâneo, são provavelmente menores os custos do etnocentrismo, nas mais diferentes esferas, do que os custos da crítica relativista. O ideário democrático, ligado a concepções evolucionárias, ainda não foi substituído por um pacote retórico-ideológico-cognitivo menos problemático e menos sujeito a produzir efeitos indesejados. A díade tensa, ambígua e conflitante, igualdade-liberdade, ainda representa, para nós, a meu juízo, a referência mais adequada para a descrição de um princípio de justiça, sem o qual não encontramos, em fins do século XX, sentido para a vida coletiva. Nosso ultraje, nossa indigência, nossa violência colonial-etnocêntrica ainda são, comparativamente, os menos graves, dada a abertura de nossa linguagem democrática, de nossas fantasias utópicas e de nossas instituições políticas democráticas para a diversidade e para nossos próprios limites, o que condiciona nossa disposição para a autocorreção e a mudança. Inclusive, eventualmente, nesse caso que nos ocupa. As alternativas reais ao credo democrático são piores que este, assim como o são as práticas reais do Ocidente "progressista, liberal, moderno e civilizado", em nome de ideais nobres. Por isso, os direitos humanos são instrumentos também e sobretudo de luta política no próprio Ocidente e contra as máscaras pseudo-democráticas que inventamos, sob a forma de discursos e/ou instituições. Também por isso, os direitos humanos são a bandeira ideológica insuperável de nosso tempo. Se tivermos dúvida, sugiro que nos esqueçamos da filosofia e ouçamos o rádio, a TV, os vizinhos, e os políticos que fazem demagogia com o medo popular. Rapidamente nos daremos conta de que lado estamos. Os detratores públicos dos direitos humanos apontarão para nós, como inimigos perigosos, e nós compreenderemos, de imediato, que essa guerra não admite hesitações, ainda que as dúvidas sejam necessárias e positivas, em outro plano.

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DIREITOS HUMANOS E ANTROPOLOGIA

Luís R. Cardoso de Oliveira

Antropologia/CEPPAC/UnB

Creio que qualquer pronunciamento da ABA sobre direitos humanos deve procurar conjugar o tema com a perspectiva da disciplina, e é deste ponto de vista que articulei as idéias que se seguem. Nas últimas duas ou três décadas a área de interseção entre as noções de direitos humanos e de cidadania tem se expandido de maneira sistemática e cada vez mais acentuada. Seja devido à ampliação da noção de direitos de cidadania e do espectro de relações que ela passou a englobar, seja porque a intensificação das relações internacionais em escala intercontinental e a ameaça do potencial de destruição atômico, assim como o surgimento de uma consciência ecológica através do enfrentamento dos problemas relativos à preservação do meio-ambiente, deram lugar e concretude à idéia de interesses humanos compartilhados no âmbito do planeta. Paralelamente a este desenvolvimento, ainda que de forma mais ou menos conectada a ele, começou a ganhar visibilidade um movimento de afirmação de direitos de natureza um pouco diferente mas facilmente articulável a temas e preocupações tradicionais da antropologia. Estou me referindo às demandas de reconhecimento — ou à "política de reconhecimento" de que nos fala Charles Taylor — as quais têm sido associadas à problemática do multiculturalismo, aos conflitos ou reivindicações de cunho nacionalista, e aos direitos das minorias de uma maneira geral.

Se, por um lado, as demandas de reconhecimento supõem ou defendem o respeito aos direitos básicos de cidadania, isto é, procuram assegurar o acesso das minorias aos mesmos direitos de cidadania (políticos, civis e sociais) compartilhados pelas maiorias, por outro lado, afirmam a necessidade da singularidade das minorias ser reconhecida como um valor. Trata-se da importância de se reconhecer o mérito da peculiaridade do grupo ou segmento social em pauta, cuja eventual desconsideração se constitui numa agressão de cunho moral, mas que não deixa de se traduzir num desrespeito à (direitos de) cidadania. Taylor tem caracterizado as demandas de reconhecimento como um desdobramento do processo de transformação da noção de honra em dignidade e que, tendo provocado inicialmente um movimento em direção à universalização de direitos (aqueles que nos habituamos a associar à cidadania), acabou desembocando num segundo movimento marcado pela afirmação de uma identidade autêntica, tanto no plano individual como no coletivo. Além de reivindicar o direito ao exercício de um interesse ou à manifestação de formas de vida não universalizáveis, as demandas de reconhecimento requerem que as maiorias, ou que os interlocutores daqueles que apresentam a demanda, atribuam ou sejam capazes de expressar um valor positivo em relação as peculiaridades do grupo demandante. Ou seja, as demandas de reconhecimento exigem o estabelecimento de ao menos um mínimo de dialogia entre as partes, e não pode ser satisfatoriamente equacionada no plano legal. Pois, ao lado da obediência a um dever (legal ou moral), a prática do reconhecimento supõe a internalização de um valor.

Neste contexto, me parece que nossa Comissão de Direitos Humanos deveria dirigir seus esforços para a área de confluência entre a problemática do respeito aos direitos universalizáveis de cidadania, e das demandas de reconhecimento de singularidades sócio-culturais. Em outras palavras, creio que devemos nos preocupar em contribuir para a eliminação de práticas discriminatórias de qualquer tipo, assim como para o esclarecimento ou divulgação do valor intrínseco contido nas formas de vida cultivadas pelas minorias, na medida em que estas representam e/ou podem ser percebidas como uma manifestação da humanidade que todos compartilhamos. Sei que esta breve exposição do problema não vai além da definição de alguns princípios básicos, e reconheço ainda não ter muita clareza sobre exatamente como estas idéias poderiam ser implementadas no âmbito da Comissão. Entretanto, acho que a direção de nossas preocupações deveria ser mais ou menos esta.

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A PROPÓSITO DA COMISSÃO DOS DIREITOS HUMANOS DA ABA

Ana Lúcia E. F. Valente

UFMS

Não pretendo negar que qualquer proposição que intente discutir a temática dos direitos humanos (DH) pode, imediatamente, despertar uma sensação de déja vu. Creio que, em parte, isso se deva à conotaçào que a história da luta em defesa dos DH assumiu no Brasil. Afinal, como se sabe, em que pese o fato de ser extenso o rol de violações dos DH na história brasileira e de que subjazem inúmeras formas de desrespeito à vida, foi por ocasião da ditadura militar que as iniciativas para garantir a integridade física e da vida dos presos políticos ganharam projeção. Neste momento, também a luta pela reconquista das liberdades democráticas constava na pauta dos grupos de defesa dos DH.

Muitas vezes esses grupos foram inspirados por um marxismo ingênuo que, negando a interpretação de cunho liberal de que a "lei deve atender a todos", desconsideraram a instância jurídica, o campo do direito, como espaço possível com instrumentos à disposição para a sua luta. Contudo, limites à utilização desses instrumentos de fato existiam (e existem!): a falta de regulamentação de normas constitucionais e a ineficácia de mecanismos previstos em lei ante uma "cultura" da magistratura que inviabiliza a rapidez de julgamento de questões. Esse, por exemplo, é o caso do habeas corpus, em geral concedido após a autoridade coatora prestar informação sobre o coagido, quando então qualquer medida de proteção pode ser tardia.

Já em outra conjuntura política, reduzidas as violações aos DH provocadas pelo "regime de exceção", a chamada transição política e as resistências de diferentes ordens impuseram novas demandas à defesa destes direitos, nem sempre respondidas com ações eficazes e organizadas sob o rótulo de DH e sem o mesmo apelo dos meios de comunicação. Nessa perspectiva, a promulgação da Carta Magna de 1988 foi um desses momentos em que as várias lutas que vinham sendo gestadas pelos direitos dos trabalhadores e das minorias convergiram e avançaram.

No que diz respeito aos negros, por exemplo, resultante de um processo de discussão de militantes e estudiosos da questão interétnica, especialmente antropólogos que se dedicam à temática, a constituição definiu o racismo como crime inafiançável e imprescritível. Porém, mesmo depois de definidos os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor pela lei 7.716, deve-se considerar que, ainda, a tipificação desse crime é problemática. Para garantir o respeito aos seus direitos, muitos negros valem-se da estratégia de obter respaldo no Código Penal, no qual crimes como constrangimento ilegal, calúnia e difamação estão previstos. De qualquer maneira, o acesso à justiça continua estreitamente relacionado aos níveis de renda e escolaridade da população brasileira, o que parece ratificar o tratamento oferecido aos negros e outros segmentos discriminados como cidadãos de segunda categoria.

Dez anos depois, a ausência de regulamentação de muitos artigos da "Constituição cidadã", a manutenção e a agudização de um quadro social que tem penalizado amplas parcelas não só da população brasileira mas da mundial, por si, justificam a continuidade da luta pelos DH. Não fosse por isso, a "aparência da mesmice" na discussão sobre os DH se desfaz completamente, quando se resgata o contexto histórico do surgimento desta preocupação em termos universais. Nesta perspectiva, somos obrigados a admitir seu caráter ainda jovem,. de apenas 50 anos.

Se a discussão sobre os direitos do homem inicia-se no século XVIII, com o ordenamento jurídico dos Estados e, no século XIX, toma corpo, com o estabelecimento da ordem burguesa, cujo marco de maior expressão foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, uma das conquistas da Revolução Francesa, é somente em 1948, com o término da Segunda Guerra Mundial que, criada a ONU, os DH passaram a fazer parte da agenda internacional.

Com base na Declaração Universal, a aprovação do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e de outros textos importantes, em 1966 os DH deixaram de ser assunto de responsabilidade interna e exclusiva aos Estados. Nesses pactos internacionais, em vigor desde 1976 - mais uma vez demonstrando o pouco tempo de existência dessa preocupação - é definido o direito à autodeterminação:

"Todos os povos tem o direito à autodeterminação. Em virtude deste direito estabelecem livremente a sua condição política e determinam, outrossim, seu desenvolvimento econômico, social e cultural"(Apud Goffredo, 1989: 89).

Desse modo, são consubstanciados o caráter universal e singular dos direitos humanos. Nessa perspectiva, recoloca-se, nessa discussão, o problema central da antropologia: "pensar a humanidade enquanto uma coisa só, formada por seres que compartilham uma mesma e única natureza, de um lado e, de outro, compreender e definir essa natureza humana em relação à diversidade sócio-cultural produzida como sua marca distintiva e necessária" (Lopes da Silva e Grupioni, 1995:17).

Em outra oportunidade, contrapondo-me à proposta de uma "antropologia da transcendência", sugerida por Velho, que defendia a revalorização do não cotidiano como estratégia de transformação do niilismo e do narcisismo antropológicos (Velho, 1991:129), i.e., transformação das perspectivas que exacerbam o relativismo, o elogio da diversidade e a valorização do cotidiano nas análises antropológicas que aderiam a um discurso "arrombador de portas abertas" (1991:121), defendi uma antropologia de alcance universal, que não deve abrir mão de uma característica que dirige nossos trabalhos: a busca constante de dados empíricos que caracterizem o cotidiano de grupos estudados. Isso sem se furtar ao compromisso científico de inserir tais micro-realidades num contexto mais amplo de compreensão (Valente, 1997).

Por ter incorporado, no texto mencionado, reflexões de autores europeus sobre a necessária articulação do universal e do singular, muitas de cunho pragmático porque relacionadas com táticas políticas a serem desenvolvidas na estratégia da transformação social, permito-me, nos próximos parágrafos, segui-lo literalmente.

Já não basta afirmar a pluralidade do universal, mas é preciso buscar respostas para as possibilidades de articulação dos valores universais e das especificidades culturais. Não se trata mais de apenas pensar a construção de sociedades democráticas, mas de salvaguardar os seus princípios como prática e como idéia, posto que a "democracia está à prova, lá mesmo onde se acreditava que estivesse solidamente instalada" (Wieviorka, 1993:10). Isto porque desafiam-na o nacionalismo, o populismo, a etnicidade, o racismo, as violências urbanas, a exclusão e a grande pobreza que marcam a nossa época. Como diagnostica Touraine:

"O estado nacional (...) que era sobretudo um conjunto de mediações entre a unidade da lei ou da ciência e a diversidade das culturas, se dissolveu no mercado ou, inversamente, se transformou em um nacionalismo identitário, intolerante, que desemboca no escândalo da purificação étnica e condena as minorias à morte, à deportação, à violação ou ao exílio. Entre a economia mundializada e as culturas agressivamente fechadas sobre si mesmas e que proclamam um multiculturalismo absoluto pleno de recusa do outro, o espaço político se fragmenta e a democracia se degrada; (1994:10).

Nos termos explicitados por Wieviorka, as respostas que devem ser buscadas, como enunciei acima, referem-se à seguinte interrogação: "é possível rearticular a razão e a cultura, o universal e os particularismos, não viver num universo pós-moderno no qual as tribos se esbarrariam ou se enfrentariam, enquanto que as estratégias das grandes empresas, passando por sobre a cabeça dos Estados, viveriam sem comunicação com a forças tribalizadas das sociedades por toda a parte atomizadas e individualistas? (1994:111).

Para Giraud a crise de legitimidade e de identidade nacional poderá ser enfrentada na invenção de novas modalidades de regulação social e política, de novas formas de exercício da democracia. Trata-se de ver se "é possível emergir um ‘novo modelo republicano’ que permita conjugar o singular, o particular e o universal, ao invés e no lugar da disjunção atual dessas realidades, e que constituiriam uma via mediana entre assimilacionismo e pluralismo"(1994:120). A conjunção do singular, do particular e do universal que se trata de realizar no novo modelo de integração supõe idealmente que cada um se reconheça, para além das diferenças individuais e de grupo, numa visão política comum porque a democracia não é possível senão quando um direito comum regula a coexistência das liberdades individuais e particulares.

Ou ainda, para Gosselin, "o ‘direito à diferença’ não pode constituir-se em fundamento do estado de Direito se ele não é ligado ao que chamaria de um pacto de cidadania". Assim, "o apelo aos valores universais, em primeiro plano dos quais a unidade do homem - que funda os limites do relativismo cultural - permite assim, suscita e mesmo exige, uma pedagogia dessa relatividade, um aprendizado das diferenças. Fora dessa afirmação ética, como ser partidário de uma ‘sociedade pluricultural’ sem renunciar ao Estado de Direito?" (1994:133-134). Ou, "como ser partidário de um mundo rico de suas diferentes culturas sem renunciar à identidade mesma do homem, à sua igualdade na dignidade?"(1994:137).

Assim, entendo que a Comissão de Direitos Humanos da ABA, sem abandonar o campo de estudo da antropologia, pode desenvolver um trabalho rico, em particular no diálogo com a instância jurídica; com o campo do direito propriamente dito, nem sempre sensível à articulação necessária entre direitos universais e os direitos à autodeterminação, à diferença. Não deixa de ser uma tarefa árdua e complexa, na medida em que é terreno atravessado por conflitos, contradições e ausência de consenso. Contudo, essa discussão deve ser enfrentada.

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Referências Bibliográficas:

GIRAUD, Michel - La démocratie entre universel et particulier. In Gabriel Gosselin, Henri Ossebi (dir.) Les Sociétés pluriculturelles. Paris, L’Harmattan, 1994: 115-129

GOFFREDO, Gustavo Sénéchal de - Direitos Humanos e nova ordem econômica internacional: a trajetória do terceiro mundo. In Antonio Carlos Ribeiro Fester (org.), Direitos Humanos - um debate necessário. São Paulo, Brasiliense, 1989.

GOSSELIN, Gabriel, OSSEBI, Henri (dir.) Les Sociétés pluriculturelles. Paris, L’Harmattan, 1994.

GOSSELIN, Gabriel - Les ambigüités du droit à la difference. In Henri Gosselin e Henri Ossebi, op.cit.: 131-140

LOPES DA SILVA, Aracy & GRUPIONI, L.D.B. - A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1o. e 2o. graus. Brasília, MEC/MARI/UNESCO, 1995.

TOURAINE, Alain - Quést-ce que la démocratie? Paris, Fayard, 1994

VALENTE, Ana Lúcia E.F. - Por uma antropologia de alcance universal. Cadernos Cedes. Campinas, 43: 58-74, 1997.

VELHO, Otávio - Relativizando o relativismo. Novos estudos Cebrap. São Paulo, no. 19:120-130, março/1991.

WIEVIORKA, Michel - La démocracie à l’épreuve - nationalisme, populisme, ethnicité. Paris, La Découverte, 1993.

____________________ - La nouvelle question urbaine en France. In Gabriel Gosselin e Henri Ossebi, op. cit.: 103-114

 


Boletim da ABA # 30