Projeto Quilombos

 

 

 

ABA-FORD

PROJETO QUILOMBOS: LAUDOS ANTROPOLÓGICOS, CONSOLIDAÇÃO DE FONTES DE CONSULTA E CANAIS PERMANENTES DE COMUNICAÇÃO

ELIANE CANTARINO - COORDENAÇÃO DO PROJETO

 

Este projeto visa gerar as bases de uma sistemática para acompanhamento dos laudos periciais a partir das demandas de comunidades negras rurais, que pretendem em suas ações a aplicação do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988. A consolidação de alguns procedimentos considerados necessários na identificação e reconhecimento das chamadas "terras de preto" e/ou "terras de quilombo", requer sua aplicação sobre comunidades já mobilizadas e constituídas em casos exemplares na medida em que solicitem colaboração dos antropólogos e da ABA nas formas de instruir seus processos para a aplicação do preceito constitucional.

Trata-se de uma demanda nova, para a qual faltam os instrumentos mínimos, mas que pode contar com um importante antecedente visando à criação de uma sistemática adequada. Este antecedente surge dos trabalhos de acompanhamento e crítica antropológica aos processos de regularização de terras indígenas, que têm levado a uma progressiva sofisticação dos instrumentos acadêmicos e estatais de investigação e intervenção.

Para refletir as particularidades deste campo de aplicação do preceito constitucional, faz-se necessário a constituição de um canal permanente de debate sobre a questão dos laudos antropológicos produzidos para identificação e reconhecimento das chamadas "terras de preto" ou "terras de quilombo", que congregue além dos antropólogos outros parceiros institucionais da ABA como a Procuradoria Geral da República, a Fundação Cultural Palmares - MinC e organizações não governamentais envolvidas nestas propostas. O Projeto Vida de Negro (PVN do Maranhão), também apoiado pela Fundação FORD, e a Comissão Nacional de Articulação das Comunidades Remanescentes de Quilombos, constituem parceiros potenciais privilegiados nesta troca de informações e experiências que podem resultar na produção de elementos importantes para argumentação técnica pericial e servir de modelo sobre o qual os laudos poderão se pautar.

Além disso, este projeto pretende levantar elementos de natureza etnográfica através de casos considerados paradigmáticos, que possibilitem definir critérios para uma conceituação de quilombo com o objetivo de instrumentalizar a produção de laudos antropológicos voltados para a consolidação de direitos constitucionais. Deste modo, o conhecimento e articulação de debates sobre as políticas públicas que incidem sobre as comunidades negras rurais e outras populações tradicionais, assim como a utilização da legislação existente enquanto instrumento de sua execução, vem igualmente a favorecer que as propostas oficiais sejam ventiladas e modificadas pelas experiências inovadoras e pelos problemas ocorridos em escala local.

Os Trabalhos Desenvolvidos:

No decorrer de 1997 consolidamos um canal permanente de debate com os antropólogos que realizam pesquisas em comunidades negras rurais e desenvolvemos uma colaboração estreita com a Comissão Nacional de Articulação das Comunidades Remanescentes de Quilombos, que tem solicitado aos órgãos governamentais, principalmente através da Fundação Cultural Palmares - MinC, o reconhecimento de dezenas de comunidades negras rurais mobilizadas pela aplicação do artigo 68 do ADCT/CF-88. No âmbito do projeto ABA-FORD, por solicitação da presidência da Fundação Cultural Palmares (órgão do Ministério da Cultura definido neste projeto como um dos parceiros institucionais da ABA) , feita na ocasião de uma reunião em Brasília (mês de maio) com as lideranças do movimento negro que representam a referida Comissão Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais, elaboramos as bases para execução de um trabalho sobre o Mapeamento e Sistematização das Áreas Remanescentes de Quilombos, que teve o objetivo de contemplar as reivindicações apresentadas para o reconhecimento de dezenas de comunidades negras rurais, indicadas inicialmente em número de cinquenta.

O desenvolvimento da referida proposta de trabalho possibilitou a realização de estudos preliminares para identificação das comunidades negras rurais de acordo com o artigo 68 do ADCT - CF/88. A partir dos relatórios técnicos até agora apresentados pode-se construir uma proposta para identificação e posterior titulação pelo Estado das cinqüenta primeiras comunidades surgidas dos grupos sociais que pretendem em suas ações a vigência do direito atribuído pela Constituição Federal e de um diálogo entre os diversos atores envolvidos.

A realização do trabalho inicial de mapeamento e sistematização dos dados sobre as áreas remanescentes de quilombos em parceria com a Fundação Cultural Palmares - MinC, teve ainda o propósito constitucional de garantir a continuidade das comunidades negras rurais e/ou remanescentes de quilombos enquanto parcelas diferenciadas da população brasileira, conservando o acesso `z terra, que fundamenta as práticas culturais e manejo do meio ambiente, e deste modo, procura atender as disposições do preceito constitucional.

O levantamento de dados foi feito através de trabalho de campo para uma caracterização geral das situações consideradas, o que permitiu relativizar o estoque de informações até agora disponíveis. Na busca de elementos que pudessem dar subsídios para identificação destas áreas como "remanescentes de quilombos" de acordo com o preceito constitucional, sugerimos a adoção de uma definição operacional de quilombo comum ao projeto e baseada em experiências anteriores, como nos casos de Frechal e Jamary dos Pretos, no Estado do Maranhão (vide Almeida, 1996 - Quilombos: sematologia face a novas identidades) e nas orientações estabelecidas em um seminário para capacitação, em maio de 1997, aos membros do Projeto Vida de Negro do Maranhão (PVN-MA), que têm realizado trabalhos de levantamento em campo sobre a situação das chamadas terras de preto naquele Estado, e constituem parceiros também apoiados pela Fundação FORD.

Na definição operacional de quilombo propusemos que fossem considerados os elementos seguintes:

1) Processo de produção autônomo (livre acesso à terra, decisão do que plantar e comercialização independente de qualquer controle externo);

2) Capacidade de organização político-administrativa;

3) Critério ecológico de preservação dos recursos;

4) Auto-definição dos agentes e da coletividade;

5) Grau de conflito e antagonismo;

6) Formas de uso comum; combinação de domínios privados (familiares, domésticos) e públicos.

Os relatórios sobre estas situações, depois de cumprida a fase de ida a campo, que contêm elementos baseados na definição operacional de quilombo proposta, podem servir de guia para estudos que objetivem a formação de processos administrativos para o reconhecimento e identificação das comunidade negras rurais de acordo com o preceito constitucional.

Para realização do trabalho de Mapeamento e Identificação das Áreas Remanescentes de Quilombos, indicamos os antropólogos que têm desenvolvido pesquisas e reflexões sobre esta temática, baseados no canal de debates construído através do projeto ABA-FORD. Em um seminário realizado no Ministério da Cultura no mês de setembro, colocamos a Presidência da Fundação Cultural Palmares em contato direto com os pesquisadores a nível estadual e/ou regional sugeridos para a realização dos trabalhos. Na indicação que fizemos para composição de equipes estaduais setorizadas, privilegiamos a rede de antropólogos com experiência de pesquisa e produção de conhecimento sobre comunidades negras rurais. O número elevado de comunidades e os prazos administrativos dos órgãos governamentais, tornavam imperativa a participação de pesquisadores que pudessem converter para os trabalhos e atualizar para seus objetivos, conhecimentos anteriormente produzidos sobre várias das comunidades negras rurais mobilizadas pelo seu reconhecimento de acordo com preceito constitucional.

Novos trabalhos de campo, que levaram em conta a noção operacional de quilombo proposta, foram realizados nas comunidades negras rurais nos Estados de Goiás, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espirito Santo, Pernambuco e Paraíba. Contamos com a colaboração de alguns membros do Grupo de Trabalho da ABA sobre Terra de Quilombo, como os antropólogos Maria de Lurdes Bandeira, nos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e José Augusto Laranjeiras Sampaio, que possui larga experiência em processos de identificação dos grupos indígena a partir principalmente da região Nordeste do Brasil, o que permite a incorporação e crítica dos procedimentos adotados em relação aos grupos indígenas que constituem, dentro dos objetivos do nosso projeto, um precedente importante para o estabelecimento de sistemáticas adequadas na identificação e reconhecimento das comunidades negras rurais. No caso das chamadas terras de preto do Maranhão, além da colaboração estreita com o Projeto Vida de Negro, desenvolvido naquele Estado, contamos com a contribuição e participação dos antropólogos Maristela de Andrade e Alfredo Wagner Berno de Almeida, que tem refletido criticamente sobre a construção do conceito de quilombo para fins de aplicação da legislação.

A coleta do material etnográfico, tais como genealogias, grupos domésticos, redes sociais, processos políticos, campos de atividades, uso comum do território, articulação entre as esferas comuns e familiares, identidades étnicas e raciais, histórias de vida, memórias coletivas e dramas sociais compartilhados etc, deve ser relacionada a um território étnico determinado. No que se refere a delimitação e reconhecimento dos territórios ocupados por estas comunidades, acompanhamos os trabalhos técnicos de dois agrimensores vinculados ao INCRA e sugerimos a adoção de alguns procedimentos necessários com base nas experiências anteriores das comunidades de Jamary dos Pretos, no Estado do Maranhão, Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba, na Bahia, comunidade de Mocambo, em Sergipe e Castainho, no Estado de Pernambuco, todas já citadas no primeiro relatório enviado à Fundação FORD. De acordo com os parâmetros dos trabalhos realizados nas comunidades citadas, sugerimos que os trabalhos técnicos dos agrimensores deveriam começar logo após a realização dos trabalhos de campo e levantamento dos dados pelos antropólogos e suas equipes. Deste modo, os agrônomos podem ter acesso a informações importantes sobre o território ocupado pelas comunidades, a existência de sítios históricos significativos, áreas de ocupação tradicional, locais de roça, pesca, caça e o processo de territorialização que atinge o grupo. É possível que, em alguns casos, possa haver coincidência na chegada do agrônomo para medição das terras e o período de campo do pesquisador que coleta o material etnográfico. A situação ideal de fazer coincidir os períodos de trabalho de campo do pesquisador e do agrimensor, cumprida em parte na realização dos trabalhos anteriores nas comunidades de Jamary dos Pretos, no Maranhão, Mocambo, em Sergipe, Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba, na Bahia e Castainho, em Pernambuco, precisou ser repensada no caso das cinco dezenas de comunidades propostas. Precisamos definir pela precedência que o trabalho de campo realizado pelo pesquisador deve ter em relação ao levantamento topográfico, devido a importância que determinadas informações sobre o território podem adquirir para o trabalho de delimitação do espaço ocupado pela comunidade. O contato primeiro com o pesquisador pode também desempenhar um papel decisivo na aceitação dos levantamentos topográficos pelos membros das comunidades e a imprescindível articulação entre ambos os trabalhos, no reconhecimento dos seus direitos para efeitos de aplicação do artigo 68° do ADCT/CF-88.

O número elevado de comunidades e a existência de dois agrônomos para atuar de forma conjunta e permanente em todas as áreas, obrigou-nos a pensar nesta solução em termos de articulação e seguimento entre os trabalhos em campo do pesquisador e o agrimensor, quando não é possível a coincidência de datas. De qualquer modo, propomos que os próprios membros das comunidades devam acompanhar diretamente o trabalho realizado pelo agrimensor e participar na indicação dos limites do território por eles ocupado. A situação precedente dos trabalhos de identificação das terras indígenas tem nos revelado os perigos que podem existir nos casos em que o pesquisador (no caso das terras indígenas leia-se o antropólogo como coordenador do grupo de trabalho, composto ainda pelo agrônomo e técnico ambiental ) substitua os membros da etnia na formulação dos limites do território ocupado.

Há outro ponto a destacar. A fase de delimitação topográfica é a mais delicada no sentido dos receios que podem gerar no seio da comunidade (voltaremos a abordar este ponto ao nos referirmos a visita que realizamos à comunidade negra rural de Campinho da Independência, em Paraty, no Rio de Janeiro) e nos casos de conflitos com os confrontantes, visto que os trabalhos de medição do território com auxílio de equipamentos podem vir a deflagrar o aumento da pressão ou renovação das ameaças de violência sobre o grupo . Por isso, sugerimos que estes trabalhos sejam sempre acompanhados pelos representantes da Comissão Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais nos diferentes Estados e regiões.

Os Trabalhos de Survey e Debates em Seminários

1) A comunidade de Santa Rosa, município de Itapecuru-Mirin, no Estado do Maranhão

Neste período de execução do projeto demos continuidade a realização de surveys nas comunidades negras rurais. Na visita à comunidade de Santa Rosa, no Maranhão, fomos acompanhada pelos membros e colaboradores do PVN-MA. As observações in loco serviram de treinamento e orientação para as ações do PVN-MA, na identificação dos elementos que devem ser considerados nos estudos de identificação das chamadas "terras de preto" de acordo com a legislação pertinente. Este survey fez parte de um seminário realizado com o PVN/SMDDH para formação e treinamento dos participantes, no período de 6 à 12 de maio de 1997.

O programa sintético do seminário para formação e capacitação dos membros e colaboradores do Projeto Vida de Negro do Maranhão - PVN e Sociedade Maranhense de Direitos Humanos - SMDDH, que realizam trabalhos de campo sobre as situações das chamadas "terras de preto" daquele Estado, visando a aplicação da legislação pertinente no reconhecimento dos seus direitos étnicos e territoriais, seguiu os tópicos abaixo:

• As comunidades negras rurais e/ou terras de preto e o artigo 68 do ADCT/CF-88.

• Trabalho de campo e pesquisa etnográfica

• Definição de grupo étnico e os estudos em comunidade

• Levantamento e sistematização dos dados de campo sobre as terras de preto e/ou comunidades negras rurais

A matéria exposta foi objeto de debate por cada um dos participantes ao confrontar os conceitos e problemas apresentados à sua experiência de vida e trabalho com as comunidades negras rurais. O survey realizado na comunidade de Santa Rosa, no Município de Itapecuru - Mirim, com os participantes do seminário serviu de treinamento em campo na aplicação e compreensão de uma definição operacional de quilombo.

Período: 6-12 de Maio 1997.

2) A Comunidade de Campinho da Independência , município de Paraty, no Estado do Rio de Janeiro.

Nesta comunidade houve muita resistência à realização dos trabalhos de delimitação topográfica pelos agrônomos a serviço da Fundação Cultural Palmares-MinC. A reação não era de todo imprevisível, já que a comunidade sofria muita pressão e expectativa devido à possibilidade de titulação da área pelo Governo do Estado no dia 20 de novembro, sem que tivesse um consenso entre eles sobre a forma de titulação: individual ou coletiva e sua importância em relação a outros instrumentos, como o processo de usucapião impetrado por um grupo de moradores. A antropóloga Neusa Gusmão, que tem anos de trabalho juntoà comunidade, havia advertido à Fundação Cultural Palmares sobre as divisões internas e o faccionalismo fomentado por uma intervenção de forma clientelística de políticos. Neste contexto, deslocamo-nos para a área acompanhada de um representante da Comissão Nacional de Articulação das Comunidades Remanescentes de Quilombos e uma funcionária dos quadros da Palmares. Após seis horas contínuas de reunião com moradores da comunidade, na paróquia de Campinho da Independência, em Paraty, em que fomos solicitados a dar explicações sobre a aplicação do preceito constitucional e responder as dúvidas formuladas sobre a realização dos memoriais descritivos das áreas como parte integrante dos procedimentos de identificação dessas comunidades , decidimos não criar falsas expectativas ( concordamos sobre as dificuldades na aplicação do artigo 68 pela falta de sua regulamentação infra-constitucional ) e destacar que este trabalho de mapeamento e identificação das comunidades indicadas pela Comissão Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais não é imposto de fora para dentro e só pode ser realizado pela vontade e aceitação do grupo. Caberia, portanto, a eles decidir sobre sua realização, como de fato o fizeram, ao escolher uma comissão de moradores que percorreria as divisas da área assinalando os marcos para os topógrafos. Contudo, não desejavam ser fotografados pelo profissional que se encontrava na área por solicitação da Fundação Cultural Palmares-MinC. O receio da fotografia se deve de que têm sido procurados por fotógrafos de jornais e televisões com visões arbitrárias do que seja uma comunidade remanescente de quilombo, definida pelo "primitivismo" ou "tradicionalismo" das suas práticas culturais, sem levar em conta os sinais diacríticos que permitem a construção de uma identidade étnica pelo grupo. Diante da forte resistência da maioria dos membros do grupo, o representante da Comissão Nacional de Articulação das Comunidade Negras Rurais resolveu assinalar a desvinculação entre os dois trabalhos - topográfico e fotográfico - para garantir que os agrônomos pudessem realizar a delimitação topográfica, de acordo com a visão do grupo sobre seu território e assim garantir que o possível decreto de desapropriação pelo Governo do Estado, em 20 de novembro, atendesse aos interesses do grupo de moradores de Campinho da Independência. Conversei posteriormente com o fotógrafo, que aceitou muito prudentemente os limites impostos e voltou a área para acompanhar os serviços topográficos. No final, os membros da comunidade pediram-lhe desculpas e convidaram-no para voltar assim que pudesse, para fotografá-los. Este desfecho chamou nossa atenção para um fato: o tempo necessário que se precisa "perder" com estes grupos num trabalho mais permanente e amiudado, em contraposição às exigências que os recursos escassos e as necessidades institucionais de órgãos governamentais impõem através de prazos muito exíguos.

3) A Comunidade de Porto Coris, município de Leme do Prado, no Estado de Minas Gerais.

Participamos da audiência pública realizada no dia 22/06/97, no município de Leme do Prado, sobre a construção da Usina Hidrelétrica de Irapé, na região do Alto Jequitinhonha, Nordeste do Estado de Minas Gerais. Por solicitação da comunidade negra rural de Porto Coris e de organizações de apoio como a não governamental Campo Vale e professores da Universidade de Lavras, representamos a presidência da Fundação Cultural Palmares/MinC na intervenção feita em plenária. Nesta ocasião, nos manifestamos sobre as pretensões da comunidade de Porto Coris quanto ao seu reconhecimento em sintonia com o artigo 68 do ADCT da Constituição da República. Diante das inúmeras e emocionadas intervenções em plenária dos membros das comunidades rurais atingidas pelo projeto de construção da barragem de Irapé, destacamos que no caso de Porto Coris, comunidade rural de exclusividade negra, tornava-se necessária uma apreciação mais específica e aprofundada dos seus direitos garantidos constitucionalmente de acordo com os artigos 68 do ADCT e artigos 215/216 da CF-88.

O técnico da CEMIG responsável pela elaboração do Relatório de Impacto Ambiental - EIA-RIMA, em sua comunicação oficial referiu-se à comunidade de Porto Coris e comentou que diferentemente do estudo realizado pelo Prof. Eduardo Ribeiro da Universidade de Lavras, a princípio não considerava Porto Coris como uma comunidade "remanescente de quilombo", porém no caso de qualquer manifestação favorável da Fundação Cultural Palmares em relação a este reconhecimento, após novos estudos de campo, seus direitos seriam respeitados.

Após a Audiência Pública fizemos contatos com membros da comunidade negra rural de Porto Coris, que solicitaram nossa mediação no sentido de uma intervenção direta da Fundação Cultural Palmares, através da realização de novos estudos técnicos que possibilitassem a defesa dos direitos que pleiteiam com fundamento no artigo 68 do ADCT da CF/88.

4) A Comunidade Negra Rural de Rio das Rãs, município de Bom Jesus da Lapa, no Estado da Bahia.

Nos dias 27 e 28 de junho de 1997, acompanhamos audiência judicial sobre Notícia Crime realizada no Fórum de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, contra quatro membros da comunidade negra rural do Rio das Rãs. Lá estávamos como antropóloga e coordenadora do Projeto Quilombo desenvolvido através da Associação Brasileira de Antropologia, com o apoio da Fundação FORD do Brasil. Tínhamos por objetivo acompanhar, do ponto de vista dos agentes sociais, os trâmites legais e nossa participação consistiu na tomada de depoimentos sobre os fatos em questão, além de uma visita realizada à área rural onde teriam se dado as ocorrências denunciadas. Através da observação direta, assim como do sentimento manifesto de medo e constrangimento compartilhado pelos membros da comunidade, procuramos descrever as práticas de poder que têm se constituído numa ameaça concreta e crescente à sua existência tanto física , quanto social e cultural. A partir deste relatório, enviado na íntegra à Fundação Ford, apresentaremos no âmbito da ANPOCS - 98 a comunicação Identidades Étnicas e Dramas Sociais, no GT Relações Raciais e Etnicidade.

5)Seminário na Câmara dos Deputados (Congresso Nacional) sobre Terra de Quilombo: subsídios para elaboração do parecer do relator deputado Luís Alberto no projeto de lei para regulamentação do artigo 68 do ADCT/CF88. Brasília - DF - 20/05/97.

Nossa comunicação consistiu em abordar criticamente o uso dos termos "remenescente" e "resquício", assim como a definição senso comum das comunidades negras rurais como isolados sociais e culturais, naturalizadas face a outros grupos e parcelas diferenciadas da população brasileira. Ao invés disso, deve-se atribuir às comunidades negras rurais e/ou "remanescentes de quilombos" o papel de grupo étnico, como elemento fundamental formador do chamado processo civilizatório nacional.

6) V Congresso Afro-Brasileiro -

a) Coordenação da Mesa Redonda "Quilombos: Implicação Conceitual no Reconhecimento dos Direitos das Comunidades Negras. Instituição Organizadora: Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (CEAO/UFBA). Data: 17-20 de agosto de 1997, em Salvador, Bahia.

Apresentação da Temática da Mesa Redonda e de seus expositores pela Coordenação:

Na abertura dos trabalhos, gostaria de destacar que o termo terra de quilombo e/ou remanescente de quilombo tem sido atualmente usado pelos próprios membros das comunidades negras rurais, organizações de mobilização e defesa dos movimentos sociais e agências governamentais para designar o pertencimento étnico dos grupos que são caracterizados como de exclusividade negra, originários da escravidão e da resistência nos chamados quilombos ou mocambos.

Ainda que tenha um conteúdo histórico o termo quilombo vem sendo utilizado para designar a situação presente de segmentos negros em diferentes regiões e contextos do Brasil, que em suas ações pretendem a vigência do direito atribuído pela Constituição Federal no artigo 68 do ADCT, CF-88, que diz: "aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos definitivos".

Em muitos dos casos observados, os grupos que se definem legalmente como "remanescentes de quilombos", vivem em territórios separados no alto curso dos rios ou em povoados situados próximos das matas (casos do Pará e Maranhão) e praticam um isolamento defensivo diante da entrada de estranhos em suas comunidades. Mas não devem ser vistos por isso como isolados sociais ou culturais. A identidade desses grupos não é definida isoladamente, mas em um contexto integrado à chamada modernidade e a processos considerados de globalização. Este é o caso dos chamados "remanescentes de quilombos" do rio Trombetas e Erepecuru, no Estado do Pará, com o estabelecimento de uma indústria de extração mineral (bauxita) e ações de vigilância e controle realizadas pelo IBAMA, através de uma política de preservação ambiental, que tem sido vivida pelas populações negras do Trombetas como um cercamento progressivo sobre suas terras e reservas naturais de alimentos disponíveis nos rios, lagos e florestas. Em outra situação como do Vale da Ribeira (Itamatativa), em São Paulo, a identificação étnica emerge em um contexto de luta em que resistem às medidas administrativas relacionadas a um projeto de construção de barragem na região, através de uma mobilização política pelo reconhecimento do direito às suas terras.

Nos casos de centenas de povoados das chamadas terras de preto do Maranhão, como é o caso de Jamary dos Pretos, já reconhecido pela Fundação Cultural Palmares de acordo com a legislação, e comunidades consideradas de exclusividade negra situadas no Nordeste do Brasil, como Rio das Rãs na Bahia, Castainho em Pernambuco, Mocambo em Sergipe, Malungo na Paraíba e Mimbó no Piauí, , há mecanismos de grilagem e situações de conflito a partir das tentativas de invasão de suas terras por fazendeiros e grandes empreendimentos agro-pecuários, com graves ameaças aos seus moradores. Esses eventos costumam assumir aspectos dramáticos e é nesse contexto de relações de poder, em que a reprodução de suas práticas culturais, o acesso à terra e aos recursos ambientais, encontram-se ameaçados, que a metáfora do quilombo adquire significação e valor estratégico, para os grupos que se definem por uma procedência histórica comum e lutam pelo reconhecimento do seu direito à propriedade das terras que ocupam através da aplicação do artigo 68 do ADCT da Constituição Federal.

Ao situar a temática desta mesa, pretendo ainda registrar que a escolha de seus expositores teve por objetivo privilegiar uma abordagem etnográfica, que parece mais relevante no caso presente de constituição ou atualização de sujeitos coletivos unidos por sentimentos de pertencimento e destino comuns. Há muitos outros pesquisadores que vêm desenvolvendo trabalhos de campo sobre este tema e espero que vários deles aqui presentes sejam contemplados com as apresentações e debates. A participação do Prof. João Pacheco de Oliveira como debatedor nesta mesa redonda sobre quilombos tem o objetivo de incorporar os debates e ações dos antropólogos travados no campo indigenista que podem servir de modelo para as situações mais recentes de luta pelo reconhecimento de direitos constitucionais, como no caso dos grupos classificados legalmente como "remanescentes de quilombos". No texto "A Viagem da Volta" escrito para o Atlas das Terras Indígenas do Nordeste o Prof. João Pacheco oferece uma linha de orientação importante para compreender que "os elementos de cultura dos grupos dominados (como indígenas, camponeses ou negros descendentes de quilombos) podem ter uma outra forma de existência, inteiramente ignorada ou mesmo clandestina face as tradições e saberes dominantes no âmbito da nação ou da região".

Por fim, o tema desta mesa redonda não constitui simplesmente uma opção teórica. Ele nos é sugerido pelos grupos sociais em nossa prática de pesquisa e neste caso, compartilhamos da máxima de que o antropólogo deve seguir o que encontra na sociedade que escolheu estudar.

b) "Remanecentes de Quilombos do Rio Erepecuru: o lugar da memória na construção da própria história e de sua identidade étnica". Resumo: os grupos que se definem legalmente como "remanescentes de quilombos" e vivem em territórios separados no alto curso do Rio Trombetas e seu Afluente Erepecuru, praticam um isolamento defensivo diante da entrada de estranhos em suas comunidades. É preciso, portanto, considerar as dificuldades crescentes de fazer pesquisa de campo antropológica, e por extensão laudo antropológico, nas situações em que parcelas e grupos da população lutam pelo pleno reconhecimento do seu status legal. (Este trabalho encontra-se no prelo : "Remanescentes de Quilombos " do Rio Erepecuru : o lugar da memória na construção da própria história e de sua identidade étnica. In : Múltiplas faces da tradição Afro-Brasileira. Volume 1. Organizadores : Jeferson Bacelar e Carlos Casoso. Salvador / São Paulo: Dínamos Editora. CEAO-UFBA.1998. Porém, uma versão digitada foi entregue ao representante da Associação dos Remanescentes de Quilombos de Oriximiná, Estado do Pará, que é morador da comunidade de Jauari, no rio Erepecuru, em luta juntamente com outros agrupamentos residenciais deste afluente do Trombetas pelo reconhecimento dos seus direitos territoriais.)

7) No âmbito deste projeto organizamos na XXI Reunião Brasileira de Antropologia, em Vitória, Espirito Santo, realizada no período de 05-09 de abril de 1998, o Grupo de Trabalho sobre Terra de Quilombo, com o objetivo de apresentar subsídios importantes para a reflexão sobre a conceituação de Terras de Remanescentes de Quilombos, a sistemática administrativa para sua implementação e o papel do antropólogo neste processo. A partir das comunicações e debates estamos organizando uma publicação sobre o tema com apoio do projeto ABA-FORD.

8) No âmbito do Seminário Nacional sobre o tema "O Poder Público e os Direitos das Comunidades Quilombolas", realizado em São Luís do Maranhão pelo Projeto Vida de Negro/SMDDH e Centro de Cultura Negra/MA, no período de 17 e 18 de setembro/98, com a participação da Comissão Nacional Provisória de Articulação dos Quilombos Brasileiros, promovemos uma Reunião Nacional Sobre Terras de Quilombos no Brasil, como parte das atividades e seminário final do Projeto ABA-FORD. Esta reunião contou com a presença de antropólogos que fazem parte da rede de colaboradores do projeto ABA-FORD, da equipe de pesquisadores do Mestrado de Políticas Públicas da UFMA, coordenada pelos professores Alfredo Wagner Berno de Almeida e Maristela de Andrade, e alguns membros da Sexta Câmara da Procuradoria Geral da República. A partir de uma reflexão sobre os procedimentos administrativos e os relatórios de identificação elaborados sobre as comunidades negras rurais remanescentes de quilombos, foram formuladas questões e encaminhamentos que serão divulgados em publicação organizada pelo projeto ABA-FORD, com edição prevista para dezembro de 1998.

Os Resultados do Projeto

Os trabalhos de mapeamento e identificação das áreas remanescentes de quilombos contaram para a sua implementação com subsídios governamentais da Fundação Cultural Palmares - Ministério da Cultura. Participamos da fase de elaboração da proposta e acompanhamos a execução dos trabalhos a partir dos canais de comunicação construídos com antropólogos, pesquisadores, movimento negro, lideranças das comunidades negras rurais e organizações não-governamentais no âmbito do projeto ABA-FORD. A construção de uma rede de cooperação estreita entre estes diferentes parceiros deve contribuir decisivamente com informações importantes sobre as comunidades negras rurais. Tais informações podem constituir um banco de dados atualizável de forma constante, o que permite orientar futuras ações conjuntas no sentido de contemplar os direitos constitucionais das comunidades negras rurais. Deste modo, os trabalhos de campo realizados pelos antropólogos e suas equipes no mapeamento e identificação destas comunidades que se definem legalmente como remanescentes de quilombos, constituem uma fonte preciosa para o aprofundamento do acervo de dados compulsados. A presença do antropólogo junto aos membros destas comunidades tem possibilitado,para além das divisões, facções e grupos existentes o acesso à chamada "região interior", onde as visões e práticas não oficiais, veiculadas no desempenho para o público externo, podem emergir. Isto permite a construção de um conhecimento mais de dentro, que possa relativizar noções baseadas em julgamentos arbitrários e a percepção dos fatos a partir de uma outra dimensão que leve em conta o assim chamado ponto de vista do nativo.

A rede de cooperação entre os antropólogos tem permitido também a construção de bases etnográficas mais sólidas no reconhecimento dos direitos das comunidades negras rurais. Ao finalizar este relatório podemos considerar que atingimos um dos principais objetivos deste projeto, ao se construir uma rede de informação e apoio às comunidades negras rurais que envolve os antropólogos, organizações não-governamentais diretamente envolvidas na questão do reconhecimento dos direitos constitucionais, como o Projeto Vida de Negro - PVN do Maranhão e Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos, representantes do movimento negro e das comunidades negras rurais articulados em uma Comissão Nacional.

Gostaríamos de agradecer a diretoria da ABA, gestão 1996-1998, assim como a atual diretoria, pela oportunidade que nos ofereceram ao assumir de forma institucional este projeto de interesse da comunidade antropológica voltada para o reconhecimento da diversidade étnica existente no país.


Boletim da ABA # 30