A antropologia deve formar autores | ||
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Memória do forum "edição e editoração de Teses acadêmicas". 21º reunião da aba.
Renato Janine Ribeiro
Professor Titular de Ética e Filosofia Política, USP. Participantes:
Renato Janine Ribeiro Coordenador
Cristina Zahar Editora comercial
José Castilho Neto Editor universitário (Editora da Unesp)
Sebastião Pimentel Editor universitário (Editora da Universidade Federal do Espírito Santo)
Carlos Fausto Editor da revista Mana (PPGAS/Museu Nacional/UFRJ)
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1. Comecemos este breve relato de uma intensa discussão, por um fato paradoxal. O forum de que participamos dizia respeito a praticamente todos os participantes do encontro da ABA, já que quase por definição cada pesquisador, desde pelo menos que defenda um mestrado, pretende publicar sua obra. E no entanto, nesta sessão, houve mais gente à mesa do que na platéia. Fique claro que esta não é uma queixa, mas uma questão que nos 1 pareceu importante. O que significa? Pode significar, apenas, que a divulgação tenha sido mal feita 2, ou que nos congressos científicos haja preferência pelas mesas em que se discute a pesquisa propriamente dita, em detrimento daquelas em que a difusão da mesma será abordada, ou, ainda, o que conceitualmente agradará aos antropólogos, que um forum sem nenhum antropólogo previsto 3 possa ter despertado o espírito endogâmico ou endófilo da área. Mas prefiro, em vez destas hipóteses um tanto externas à ocorrência, sugerir simplesmente que o tema desagrada. Não é apenas que ele não interesse, ou interesse pouco: ele incomoda. Saber que o texto da gente vai sair em livro fascina, mas, por isso mesmo, causa problemas. Significa ter que se curvar a regras, a ditames que não são os que acreditamos pertencer à pesquisa. Uma prova adicional de que o tema desagrada: Castilho conta que mais de uma vez, em reuniões públicas a que foi na própria universidade a que pertence sua editora _ a Unesp _, deparou-se com um público também muito pequeno. Daí que o problema não seja circunstancial, da reunião da ABA, mas ocorra, com certa sistematicidade, no meio acadêmico. O problema é estrutural. Os pesquisadores não querem ouvir os editores, eis o fato. Contudo, se o tema incomoda, esta é uma razão a mais para tratar dele _ sem nunca esquecer que a edição (depois talvez do emprego) é o desejo por excelência do pesquisador. Aliás, é por isso mesmo que ela o incomoda: a relação com o editor parece uma coisa ruim, desagradável, porque funciona como um limite externo a tudo o que fazemos. Talvez, aliás, aí esteja a exogamia, ou pelo menos o exterior que ameaça. O editor é quem diz não, ou quem diz que devemos mudar tudo, ou ainda quem edita o livro ou o paper do outro, bem inferior ao nosso, e não o que escrevemos. O editor é quem se converte, quando nos lê, em uma espécie de representante, de porta-voz do mundo externo, extra muros, que contrasta com a reprodução de si mesmo que o campus, o mundo acadêmico, sem cessar efetua. É ruim, quando falamos do mundo, quando nosso discurso o constitui como terceira pessoa, referente que conhecemos a fundo e pretendemos por vezes esgotar, que alguém venha nos cobrar falar ao mundo, que alguém venha nos dizer que não basta o mundo (= a sociedade) ser nosso objeto, precisa também ser nosso destinatário. Em suma: a edição é desejada. E o que se deseja, muitas vezes, causa intenso mal-estar. Pela simples razão de que se deseja a alteridade, aquilo que contrasta conosco, que de nós se diferencia e a nós antagoniza. 2. O que é mais difícil na edição de um texto científico? Cristina Zahar foi a primeira a responder. Sabe, embora isso seja um problema, que teses têm muitas notas de rodapé, referência interminável a fontes, e que isso incomoda o editor, que pede ao autor que reduza esse aparato pesado. Mas, afinal de contas, ela entende que haja notas e bibliografia numa tese. Por isso, o que ela mais estranha é algo cuja razão não entende, pelo menos não entende bem: por que há tanta repetição nos textos científicos! Em outras palavras, as teses são mal escritas. Um fator de tensão entre o editor e o autor é esse: o primeiro, preocupado em publicar um texto, considera o que o leitor quer; o segundo apega-se ao que escreveu. O que fazer com as teses? É consenso que seria bom serem mais bem escritas. Talvez, porém, isto seja muito difícil; Cristina sugere que elas fossem tornadas disponíveis via Internet. Isso implica que a edição em papel fosse reservada a livros, de perfil mais voltado para um público maior, ao passo que as teses em geral seriam acessíveis a todo interessado. Fica em aberto se a sua leitura ou "compra" seria tarifada ou não. Mas a questão essencial, que quase ao final da discussão Cristina levanta, é: por uma política de formação do autor! que poderia, por sinal, passar pelas revistas. É preciso aprender a escrever para um público extra muros. E a importância disso aumenta (Renato) porque cada vez mais o público em geral, extra muros, vai exigir mais da Universidade. Temos sido alvejados, nós que estamos intra muros, muitas vezes injustamente. Mas é justo a sociedade querer saber o que a academia estuda a seu respeito. No caso em particular da antropologia, tão interessada nas relações com o outro, tão preocupada em relacionar o pesquisador com o mundo que ele estuda, isso é decisivo. Mais adiante, falando de Mana, Carlos vai mostrar como funciona a reescrita de um artigo. Mas talvez fosse o caso, nos cursos de pós-graduação, que formam pesquisadores que vão escrever teses, formá-los também como autores (Renato). 3. Discutiu-se o papel dos livros-texto Cristina Zahar lembra que a reprografia, ou o xerox, perturba enormemente a atividade de edição. Ela concorre, entre outros, com o livro-texto. Daí que, em seu entender, é preciso sempre o livro remeter a um público exterior à Universidade. Sebastião Pimentel ressalta a importância do livro-texto _ que por sinal é um dos três eixos da atividade da editora da Universidade Federal do Espírito Santo, que ele dirige (os outros dois são produção acadêmica da própria UFES, ou trabalhos sobre o Espírito Santo). Aliás, lembra Carlos, em certas universidades norte-americanas, para se ter tenure (= para ser professor efetivo) é preciso haver publicado um livro-texto: não se exige apenas a excelência da pesquisa, mas também a capacidade de transmiti-la de maneira adequada aos graduandos. 4. Que papel deve ter uma editora universitária? A essa pergunta de Cristina, que representa uma editora comercial, tanto Sebastião quanto Castilho respondem que suas editoras são auto-suficientes comercialmente, isto é, que não oneram os cofres públicos para editar suas obras. A editora da Unesp, atualmente, somente sustenta as dezenove revistas científicas que edita. Sabe-se que revistas científicas são difíceis de vender e têm alto custo. A Edunesp compõe seu catálogo mais ou menos com 40% de títulos de autores brasileiros e o restante de traduções; são basicamente estas últimas que geram os recursos que permitem subsidiar as revistas. 5. E, a esse propósito, qual deve ser o papel de uma revista científica? Mana conseguiu alto respeito na área, e Carlos Fausto, seu editor, explica por quê. Evidentemente, é deficitária, como todo periódico científico, necessitando por isso de verbas públicas (atualmente, pretende credenciar-se junto ao Ministério da Cultura para conseguir recursos do mecenato privado). O maior custo incorrido é o com tradução, revisão e copidescagem _ mais do que o gasto com papel! A aposta numa boa qualidade gráfica é um fator importante para incentivar bons autores a publicar. Aliás, Mana só publica textos que estejam inéditos em qualquer língua _ assim, Sahlins só publicou nela um artigo que ainda não havia saído sequer em inglês. Para a revista funcionar, é imprescindível ter bons pareceres, e editores atentos a eles. O parecerista criterioso leva o autor a modificar seu texto e mesmo reescrevê-lo, e isso é uma garantia de qualidade da revista. De modo geral, a qualidade é a pedra de toque, que gera um efeito multiplicador: a revista assim consegue colaboradores de qualidade internacional. Para o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, do Museu Nacional, que mantém a revista, esta permitiu enorme salto qualitativo: consolidou laços com autores estrangeiros que nela publicam, ao mesmo tempo que começam, eles, a ler ou citar o que Mana publica. Para a biblioteca do Programa, a revista também é essencial _ através de permuta, chegam quase cem outras revistas sem se ter que pagar assinatura por elas. De modo geral, somente se paga pelas revistas publicadas por editoras comerciais. Finalmente, para o ensino de antropologia no Brasil, Mana tem a vantagem de divulgar mais artigos em português, o que os torna mais acessíveis. 6. Que horizonte se está abrindo para a edição, com a computação e a Internet? A edição eletrônica implode nossos hábitos. Renato lembra que, quando Michel Foucault defendeu seu doutorado, com A História da Loucura na Era Clássica, precisou _ era essa a lei _ imprimir, como livro, uma quantidade de exemplares do trabalho. Isso significa que naquela época, a apenas trinta e poucos anos de nós, não se defendiam teses na França se não se conseguisse um editor, geralmente comercial, que as rodassem em linotipo. Os gargalos que estrangulavam, ou pelo menos continham, a oferta de textos à edição eram inúmeros. Hoje, não. Qualquer um pode entregar um disquete pronto ao editor _ e se acabaram todos os custos de digitação, composição, revisão! E, mais que isso, torna-se possível editar via Internet, isto é, simplesmente disponibilizar na rede um arquivo, que é um artigo, uma tese, um livro. Contudo, isso não resolve os problemas da edição: apenas os modifica, ainda que brutalmente. Um gargalo sempre existe: se não for o da produção física de livros (o do editor tradicional), será o da recepção possível dos mesmos. Diante do crescimento exponencial dos livros disponíveis, isto é, dada a impossibilidade corporal de eu encontrar, nas estantes das livrarias, o que me interessa, passo a depender _ assim como antes dependia da escolha do editor _ de outros mediadores que, se não escolhem por mim, pelo menos triam por mim. Aqui entram as resenhas em journals consagrados, ou mesmo na imprensa de qualidade, e, cada vez mais, os links reputados via Internet. Este ponto se torna decisivo: é preciso cada vez mais compreender os mediadores, jogar com o seu papel. E não foi isso sempre a edição? Editar não é, justamente, tornar disponível? O que sucede é que a edição muda de figura. 7. Será o caso de se chegar a algumas conclusões? Parece-me, relator que acabei sendo, que sim. Tentarei, sob minha responsabilidade, encaminhá-las: a) Há, no plano do simples diagnóstico, que constatar o enorme mal-estar que causa, no meio acadêmico, a questão editorial. Esta é a ponta de um iceberg que se chama a relação do mundo da pesquisa com o seu outro, o seu extra muros, a quem comunica o que faz e fez. Não é possível discutir a questão editorial (= escrever textos legíveis e interessantes) sem abordar a das relações da academia com a sociedade em geral: que responsabilidade temos em relação a ela? Que queremos de nossas teses, que efeitos com elas pretendemos? (Até se pode perguntar se receamos o mundo, e se escrever teses não será um modo de dele nos refugiarmos.) b) Propostas supõem algum diagnóstico. Se achamos que à sociedade deve ser transmitido o conhecimento que sobre ela foi esboçado, a edição é essencial. Mas isso implica que não formemos apenas pesquisadores (autores de dissertações, teses e papers) ou professores (didatas), mas também autores. Melhor dizendo, pelo menos o pesquisador deve ser autor. Isso não se resume em "escrever bem". Exige um aprendizado que pode ser conduzido por pareceristas, quando um artigo seja enviado a uma revista, mas que deveria começar muito antes, por exemplo, com atividades de escrita durante o mestrado, que seriam discutidas em ocasiões especiais. Atualmente, o que se diz sobre as redações dos alunos está pulverizado: em cada curso, o professor, se quiser, comenta o que e como eles escreveram. Seria preciso dinamizar isso, num espaço próprio. c) No caso da Antropologia _ área à qual somente pertencia um dos membros da mesa, o cooptado Carlos Fausto _, revistas e livros são prioritários, como espaços de edição. Há uma tendência a aumentar os órgãos editados, sobretudo com a atual facilidade para imprimir uma revista ou mesmo difundir conhecimentos e idéias via Internet. Em suma, estes caminhos devem, todos, ser explorados, mas um ponto é fundamental: por várias razões, muitos pesquisadores, mesmo bons, têm dificuldade em escrever, ficando assim um descompasso entre a (boa) qualidade de seu trabalho teórico e a (má) qualidade de seus textos. E é por isso que não basta ampliar, por exemplo graças às novas tecnologias, a circulação de trabalhos. Se esses forem enfadonhos, o simples aumento de veículos _ revistas, coleções, Internet _ não os fará ganhar a batalha pelos leitores. E é por isso, mais uma vez, que se torna prioritário os cursos, especialmente de pós-graduação, investirem na formação de autores. Notas 1 Procurei organizar fielmente a discussão. Contudo, quando não está claramente indicado quem falou, respondo eu pelas considerações expendidas, em especial no primeiro e nos dois últimos itens.
2 Não havia cartaz na porta da sala em que ela se realizaria, e o monitor demorou a se convencer de que devíamos ocupá-la _ já que lá se desenvolvia outra atividade. Interessante foi notar, quando lhe mostrei que estava previsto ali nosso Forum, para o horário de "16-18 horas", que ele comentou: "Ah, sim, às 16 horas e 18 minutos".
3 Carlos Fausto, o único antropólogo presente, foi "cooptado" pela mesa ao se perceber que estava na platéia. Com isso, a platéia, que era de três, passou para dois, sendo uma colaboradora da revista Mana e uma amiga da editora Cristina Zahar.
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Boletim
da ABA, nº 31 - 1º Semestre de 1999
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