Resenha
Arqueologias urbanas. Memória do mundo

(Prêmio Pierre Verger de Vídeo Etnográfico _ ABA 1998)


 

Sandra de Sá Carneiro

Antropóloga. Prof. do Instituto

de Filosofia e Ciências Humanas

da UERJ

Diretoras do Vídeo

Premiado

Ana Luiza Carvalho Rocha e

Maria Henriqueta Creidy Satt

Produção

Brasil; 1977, 30 m., NTSC, cor


 

O filme inicia com uma frase que repercute na sua construção: "O passado não passa, se move". Retirada de uma das primeiras narrativas apresentadas, essa frase carregada de simbolismo parece expressar também o ponto de vista das diretoras.

A história da colonização de Porto Alegre é reconstruída a partir das lembranças dos pioneiros, que, oriundos de vários países, chegaram ao local para "povoar", "ocupar", "dar vida" ao Porto. O filme conjuga as narrativas de oito personagens, cujos nomes só são revelados no final. Conjuga também duas perspectivas: a da história da cidade de Porto Alegre, mais especificamente a partir de dois símbolos _ o Porto e o Mercado _, e a das histórias de vida dos narradores. Assim, João, João Fernandes, Luiz, Cláudio, Célia, Ari, Carlos e Antônio são as fontes para a reconstrução de uma história exterior e interior. Através de seus relatos eles articulam reminiscências enquanto testemunhas e participantes da história da cidade. A memória dos informantes é pontuada pelas imagens antigas da cidade, que aparecem como que ancorando a imaginação nos fatos vividos coletivamente.

O Porto e o Mercado são o locus da memória coletiva, símbolos da confluência dos diferentes mundos, dos diferentes países. Um dos personagens vai percorrendo o Mercado, contando sua história e lembrando que "todos os fantasmas de Porto Alegre habitam o Mercado ... não existe uma pessoa que não tem história no Mercado". Ele afirma: "quero morrer no Mercado". E diante da ameaça de acabarem com esse espaço, ele conclui: "terminar com o Mercado é terminar com a história", a história da cidade e de seus moradores, que o filme tão bem mostra segundo a perspectiva daqueles que a vivem.

O que emerge é um jogo fascinante de espelhos, entre os narradores e as coisas narradas, entre os fatos passados e a narração desses fatos _ a chegada ao Porto, e a constituição da cidade _ atravessada pela história de como se fixaram no local. Transformados em arqueólogos urbanos, os narradores escavam e revolvem o passado, rememorando os acontecimentos. Os relatos são transcritos como imagens, com sons e cores, captados em sua originalidade pela câmera. A cidade prospera, chega o automóvel, chegam os arranha-céus, não há tanto lugar para os fotógrafos lambe-lambe, que registraram em um determinado momento de suas vidas os "progressos individuais", "retratados" para as famílias de origem, com a primeira roupa nova e outros símbolos da prosperidade. O filme é a narrativa dessas narrativas, que as diretoras incorporam, apresentando-as tanto na dimensão afetiva como cognitiva, e tomando-as como vias de acesso para a história objetiva de Porto Alegre ao mesmo tempo que para a história subjetiva desses personagens.

Num cruzamento extremamente rico, as narrativas dinamizam as imagens apresentadas e vice-versa. As reminiscências vão aflorando, ganhando vida nas paisagens, nos contornos, nos interstícios da vida e da cidade, fazendo dialogar o velho e o novo, a tradição e a modernidade. Com a câmera, movem-se as imagens, os personagens e as histórias de vidas; com o processo de urbanização, move-se a cidade. Na trama, público e privado se misturam; as imagens e as narrativas vão se sobrepondo, se cruzando, trançando as redes de significados culturais. Porto Alegre se moderniza e com isso a paisagem vai se transformando, novos atores sociais ganham as ruas, o mercado, a cidade.

As mudanças da cidade são acompanhadas pelas mudanças na vida pessoal. Na evolução dos meios de transporte, carroça, tração animal, trem, bonde são substituídos pelo automóvel no seu acelerado desenvolvimento. Fatos marcantes, como a construção e reconstrução do mercado, a enchente ocorrida em l941, fizeram mudar o cenário. A dinâmica da vida no Cais do Porto, antes frequentado por estivadores, marinheiros, carvoeiros, donos e trabalhadores de engenho, hoje já não tem a mesma efervescência; hoje a paisagem é dominada por novos atores sociais. Antes havia tantos navios aportados que, segundo um dos narradores, mais parecia plantação de navios, navios de todo o mundo.

A direção precisa não constrói apenas a trama, ligando o que é ao que foi, o passado ao presente, a tradição à modernidade; apresenta pessoas de carne e osso, fortemente individualizadas, compondo os personagens cujas biografias se cruzam com a história da cidade ao longo do filme. A paisagem da cidade se confunde com a paisagem das histórias de vida onde "os destinos se cruzam". Ninguém escapa ao destino, como é lembrado por um narrador, e é no tecido da cidade que ele também se tece. Os narradores travam um diálogo consigo mesmos, realçando o papel que a imigração teve na história local. O filme aborda, dessa forma, os mecanismos sociais da memória como produtora de sentido de vida, mostrando no caso a importância dos pioneiros da cidade, os atores que originalmente vieram ocupar Porto Alegre _ imigrantes portugueses, espanhóis, italianos, ciganos, etc. Todos cruzando e cumprindo seus destinos.

O fato histórico do processo de imigração e as suas condições sociais perpassam os relatos através dos quais são reveladas as vicissitudes pelas quais passaram os imigrantes em Porto Alegre. O fio que parece unir o discurso de todos é no sentido de que, apesar das adversidades, eles "cumpriram seus destinos" _ o trabalho e o esforço foram recompensados. A imigração era uma esperança e um desafio, e eles prezam a idéia de que, apesar de todas as dificuldades, conseguiram "vencer". Por outro lado, a idéia da perda de certos componentes do passado, relacionada ao processo de modernização da cidade que redefine as relações sociais, é dolorosa, e a passagem do tempo se encarrega de transferir esses componentes para a dimensão de uma lembrança preciosa que eles alimentam e que os alimenta.

Dizer simplesmente que a preservação da memória da história de Porto Alegre inspirou a realização do filme, seria desmerecer o trabalho criativo e a dimensão da pesquisa etnográfica tão bem retratada através da "descrição densa" que as diretoras realizam, entre a construção de uma narrativa em que se registram as principais etapas da colonização da cidade e uma análise das condições de vida dos personagens.

O filme nos permite reconstruir as lembranças dos personagens a partir dos próprios meios pelos quais elas se fixaram, estabelecendo uma correlação entre memória e vida, de uma perspectiva da sobrevivência humana e dos mecanismos que asseguram a rotina da vida social. Na Porto Alegre de hoje, não mais habitada pelos marinheiros, estivadores, e carvoeiros do passado, entram em cena novos personagens _ a lógica do mercado atinge e modifica o Mercado. No entanto, como já nos disse aquele narrador, os fantasmas de Porto Alegre habitam o Mercado e não existe uma pessoa que não tenha história ali ... É assim, que, ao percorrer aquele espaço referencial, ele vai também ladrilhando e reconstruindo a história da cidade em constante transformação. E nos mostrando como é que o passado não passa e sim se move, guardando a memória do mundo.

 

 
Boletim da ABA, nº 31 - 1º Semestre de 1999
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