No dia 29 de dezembro passado o governo federal demonstrou, mais uma vez, de que pretende levar adiante o seu projeto de revisar e desconstituir os direitos conquistados constitucionalmente pelos povos indígenas no país, em particular o direito à terra e aos seus territórios tradicionais.
Em comunicado enviado às Coordenações Regionais (CRs), Serviços de Gestão Ambiental e Territorial (SEGATs) e Coordenações Técnicas Locais (CTLs), o coordenador-geral de monitoramento territorial da FUNAI instrui aos respectivos responsáveis a não incluir nos planos de trabalho e orçamento para 2022 a execução de atividades de Proteção Territorial em Terras Indígenas (TIs) ainda não homologadas por Decreto presidencial. Com essa instrução, o órgão indigenista deixa parte significativa da população indígena à própria sorte, especialmente aquelas que se encontram em contextos sociais e fundiários caracterizados por tensões, conflitos, violências e desigualdades crescentes.
No caso de crimes ambientais ocorridos em TIs não homologadas, o Comunicado orienta que as informações e notícias que chegarem até essas instâncias deverão ser repassadas à Polícia Federal, ao IBAMA e/ou às secretarias estaduais de meio ambiente. E que no caso de violências contra indígenas, as informações e notícias deverão ser encaminhadas às polícias civil, militar ou federal. Na prática, com estas medidas, o órgão indigenista busca repassar suas responsabilidades para terceiros e se desincumbir de suas atribuições legais de agir diretamente na proteção à vida dos indivíduos, famílias e das comunidades indígenas que aí vivem, e proteção das terras tradicionalmente ocupadas, mas ainda não homologadas pelo próprio Estado. Desse modo, em vez de proteção, a FUNAI acentua as situações de vulnerabilidade e risco dos indígenas da TI Tupinambá de Olivença (sul da Bahia), da TI Tekoha Dje’y/Rio Pequeno (Paraty, RJ) e de outras mais de duas centenas de TIs.
Lembremos de que nos últimos três anos nenhuma TI foi demarcada ou homologada, seguindo o compromisso assumido publicamente pelo presidente da República já em sua campanha eleitoral e reafirmado antes mesmo de tomar posse. Em seguida, foi a tentativa do governo de transferir para o Ministério da Agricultura (MAPA) a responsabilidade por promover estudos de identificação e delimitação, demarcação, regularização fundiária e o registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. A esta se somou a determinação do órgão indigenista de considerar como “Terra Indígena”, para efeitos da emissão da Declaração de Reconhecimento de Limites, somente as TIs homologadas, reservas indígenas e terras dominiais de comunidades indígenas, assim como de estabelecer unilateralmente critérios de indianidade que restringem o acesso de vários povos e comunidades indígenas às políticas públicas específicas. Sem deixar esquecer, ainda, o apoio explícito do presidente da República ao denominado “marco temporal”, ora em análise pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Com a decisão da FUNAI, ora em vigor, de excluir do seu raio de ação as TI não homologadas, o órgão indigenista dá mais um passo no sentido de relegar uma parcela substantiva das populações indígenas e de seus territórios tradicionais no país à sua própria sorte, especialmente aquelas que mais se encontram em situações de vulnerabilidade, violência e risco.
Brasília, 12 de janeiro de 2022.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e sua Comissão de Assuntos Indígenas – CAI
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Anexos:
I – Despacho n. 00023/2021/CP – COAF/PFE-FUNAI/PGF/AGU, de 16 de dezembro de 2021;
II – Ofício Circular Nº 18/2021/CGMT/DPT/FUNAI, de 29 de dezembro de 2021.