Governo Federal entrega à própria sorte indígenas isolados em situações de vulnerabilidade e risco

A Associação Brasileira de Antropologia vem a público manifestar a gravidade da situação do grupo indígena isolado habitante da Terra Indígena Ituna/Itatá, localizada nos municípios de Altamira e Senador Porfírio, no estado do Pará.

A restrição de acesso e uso do território por não indígenas foi decretada pela portaria nº 38/PRES/FUNAI, de 11 de janeiro de 2011, devido à evidência da presença de grupos indígenas isolados, e para que fossem realizadas pesquisas e expedições de levantamento de informações em campo por indigenistas da FUNAI de modo a subsidiar a identificação do grupo isolado e a demarcação e proteção da terra indígena. Desde então, a portaria vem sendo renovada. Em 25 de janeiro último expirou o período determinado na última renovação, e até o momento, não foi promulgada nova portaria de restrição de uso da terra indígena. 

Em “Nota de esclarecimento da FUNAI sobre a área denominada Ituna Itatá (PA)”, publicada dia 28/01/2022 em seu site, o órgão toma a seguinte posição oficial: “a FUNAI entende que não há elementos que justifiquem a edição de uma nova portaria de interdição da área. Além disso, cabe ressaltar que os vestígios encontrados ao longo dos anos não resultaram em confirmação da presença de indígenas isolados na área.” 

Ao contrário do que afirma a nota oficial, estudos anteriores indicam fortemente a presença de isolados na área. Como mostra o relatório produzido pelo Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi): “A interdição da área que deu origem à TI Ituna/Itatá é condicionante no processo de licenciamento a UHE Belo Monte. O estudo do “componente indígena” de Belo Monte, entregue oficialmente ao Ibama em abril de 2009, reconheceu os fortes indícios da presença de índios isolados (…). [F]oi levantada a necessidade de criação de uma Área Protegida na região, de forma que, para as instituições federais e estaduais envolvidas com o Programa de Desenvolvimento Sustentável do Xingu, que inclui Incra, Ibama, ICMBio, IBDF, Eletronorte, Casa Civil, ANA, e outras, houve consenso de que a região deveria ser preservada por meio de sua interdição administrativa, conforme atas das reuniões do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável da Bacia do Xingu (PDRS Xingu).”[1]

Conforme apurou o jornalista Ruben Valente, um relatório interno produzido por uma equipe da FUNAI, que entre agosto e setembro de 2021 realizou expedição na região, afirma que “existem indícios fortíssimos de que esse complexo de terras indígenas do Médio Xingu abriga um ou mais povos isolados, além de que esses mesmos indícios apontam para a Terra Indígena Ituna/Itatá como de sua ocupação tradicional, mostra-se necessário, sim, retomar os trabalhos de localização que haviam sido interrompidos no interior da TI Ituna/Itatá por questões de segurança no ano de 2016″. O relatório recomenda ainda “a publicação de nova portaria de restrição de uso compreendendo a área integral da Terra Indígena Ituna/Itatá para aprofundamento dos estudos de localização de indígenas isolados”.[2]

Ao não renovar a portaria da restrição de uso, a FUNAI deliberadamente entrega à própria sorte os indígenas isolados, os deixando completamente vulneráveis ao contato com não indígenas. Não há dúvidas de que tal contato é letal para os isolados: para além da ameaça do coronavírus, tais grupos não possuem defesa imunológica para quaisquer outros agentes patológicos aos quais serão expostos através da presença de não indígenas em seu território. 

Mas essa não é a única ameaça. Sabemos que a negação da presença dos povos indígenas em seus próprios territórios tem sido usada como arma de guerra no nosso país. Ao longo de nossa história, grileiros, posseiros, e assassinos a serviço das frentes de expansão os exterminaram ou expulsaram de seus territórios. Foi assim que centenas de massacres e genocídios ocorreram antes mesmo que esses grupos ficassem conhecidos pela sociedade nacional. 

A pressão do desmatamento e da ocupação ilegal da terra indígena Ituna/Itatá vem escalando de maneira avassaladora. É também muito grave que na nota oficial mencionada acima a FUNAI admita que foi discutido um documento sigiloso (o relatório da expedição) com um parlamentar que declaradamente apoia o processo de invasão, grilagem e desmatamento da terra indígena. Levantamento feito sobre cadastros ambientais rurais (CARs) sobrepostos à terra indígena identificou 223 CARs registrados no interior de Ituna/Itatá, dos quais 10 CARs correspondiam a glebas com dimensão inferior a 100 hectares, 13 CARs a glebas no intervalo entre 100-300 hectares, 125 CARs a glebas com mais de 300 hectares e 75 CARs a glebas com dimensão superior a 1.000 hectares[3]. Ituna/Itatá é ainda uma das terras indígenas mais desmatadas do país nos últimos 3 anos[4].

A nota oficial e a absurda decisão da FUNAI de não renovar a portaria de restrição de uso da terra indígena Ituna/Itatá e permitir a sua ocupação e devastação vai frontalmente contra tudo aquilo que deveria ser seu papel institucional, e contra a política brasileira de proteção aos povos indígenas isolados estabelecida em 1988. Ao declarar falaciosamente a não existência desse povo indígena, a Funai antecipa o seu genocídio. 

Brasília, 31 de janeiro de 2022.

Associação Brasileira de Antropologia – ABA e sua Comissão de Assuntos Indígenas – CAI

Leia aqui o PDF da nota.


[1] https://povosisolados.files.wordpress.com/2020/11/relatorio-opi-ti-ituna-itata.pdf  

[2] https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2022/01/28/senador-terra-indigena-para-isolados-portaria.htm

[3] https://www.greenpeace.org/brasil/ituna-itata-uma-terra-indigena-da-amazonia-tomada-por-ganancia-e-destruicao/

[4] https://www.greenpeace.org/brasil/blog/ituna-itata-84-do-desmatamento-registrado-na-terra-indigena-ocorreu-nos-ultimos-3-anos/https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/desmatamento-dispara-em-ituna-itata-terra-indigena-com-presenca-de-isolados-no-para

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