A Associação Brasileira de Antropologia, por meio de seu Comitê Gênero e Sexualidade, manifesta repúdio ao pronunciamento realizado pelo deputado federal Nikolas Ferreira no Congresso Nacional, no dia 8 de março de 2023, por ocasião do Dia Internacional das Mulheres.
Nesta oportunidade, o referido parlamentar, utilizando-se de sua prerrogativa institucional, ocupou a tribuna da Câmara dos Deputados para professar publicamente preconceito e discriminação contra mulheres trans e travestis. Em tom de escárnio, colocou uma peruca e afirmou: “Hoje eu me sinto mulher, deputada Nikole. E eu tenho algo muito interessante aqui para falar. As mulheres estão perdendo seu espaço para homens que se sentem mulher”.
Tal pronunciamento acompanha outras declarações transfóbicas anteriormente feitas contra a então vereadora e atualmente deputada trans, Duda Salabert, que foi chamada de “ele” e “homem” pelo deputado Nikolas Ferreira.
Diante de mais um violento episódio da política brasileira, convém lembrar que pessoas transexuais e travestis não apenas “se sentem” homens ou mulheres, mas são homens e mulheres de fato e de direito e o respeito à sua identidade de gênero constitui princípio inalienável à dignidade humana, aí incluídos os direitos da personalidade. Nesse sentido, lembramos que a autodeterminação em relação à identidade de gênero foi reconhecida como um direito pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento realizado em 2018 a partir de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.275).
Ressaltamos igualmente que, do nosso ponto de vista, as falas do deputado configuram-se claramente como crimes em face da decisão do Supremo Tribunal Federal de 13 de junho de 2019. Nela, a mais alta corte do país equiparou homofobia e transfobia ao racismo, crime inafiançável previsto na Lei nº 7.716/1989.
Para além de qualquer consideração de natureza jurídica, é importante ter em conta que são atitudes como as acima elencadas – e sua consequente incitação ao preconceito, repúdio e, no limite, ódio – que perpetuam socialmente a vulnerabilidade de pessoas trans e travestis em nosso país. Tais declarações, portanto, estão longe de serem apenas expressões de ideias pessoais, não sendo possível confundi-las com liberdade de expressão, uma vez que se desdobram em justificativas concretas para a condução dos mais variados tipos de violência contra uma população que apresenta a menor expectativa de vida no Brasil.
Ao longo das últimas décadas, a Antropologia tem registrado tanto a precariedade da vida das pessoas trans e travestis quanto os significativos avanços trazidos por ações simples como a possibilidade de retificação de documentos sem necessidade de laudo psiquiátrico. Tal avanço, como qualquer outro, só é possível mediante mudança na maneira como concebemos as vidas e o direito à autodeterminação dessas pessoas. E, portanto, toda conquista rumo a uma sociedade mais justa e inclusiva é muito sensível ao ambiente político, com graves consequências na vida cotidiana das
pessoas, o que torna inconcebível que condutas criminosas de incitação à transfobia sejam toleradas a partir da ação de governantes ou parlamentares.
Pelo acima exposto, acreditamos que fazer do Parlamento Brasileiro palco de indução e incitação de discriminação contra pessoas em decorrência de sua identidade de gênero é ato passível de cassação de mandato, pois inescapavelmente fere os princípios de decoro parlamentar estabelecidos tanto pelo artigo 55, parágrafo 1º, da Constituição Federal quanto pelo capítulo IV do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados.
Dado que a imunidade parlamentar garantida constitucionalmente não protege contra atos ou falas criminosas, nem isenta a pessoa política de pagar pelos crimes perpetrados, a Associação Brasileira de Antropologia se une às deputadas federais Duda Salabert e Erika Hilton, a outras manifestações no interior do Congresso Nacional, bem como a integrantes do Ministério Público e outros órgãos de justiça, na solicitação de que os atos e discursos transfóbicos de Nikolas Ferreira sejam julgados pelo Comitê de Ética do Congresso Nacional e outras instâncias cabíveis de forma a responsabilizá-lo por sua conduta criminosa.
Brasília, 24 de março de 2023.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e seu Comitê Gênero e Sexualidade
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