A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), por meio de seu Comitê Gênero e Sexualidade, manifesta seu repúdio ao parecer realizado pelo deputado Pastor Eurico (PL-PE) sobre o Projeto de Lei 580/2007, de autoria do então parlamentar Clodovil Hernandez. Tal parecer foi apresentado na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF) da Câmara dos Deputados, no dia 29 de agosto do corrente ano.
Proposto em 2007, o referido PL busca, alterando o Código Civil, reconhecer, para fins patrimoniais, a possibilidade de conformação de união homoafetiva entre pessoas de mesmo sexo. É importante frisar que essa proposição legislativa, portanto, foi apresentada em um contexto de relativa lacuna jurídica na garantia de direitos familiares e sucessórios para a população LGBTIQIA+, quando os poucos casos existentes se sustentavam a partir de decisões individuais e jurisprudências específicas. Naquela mesma legislatura, é oportuno destacar, diversas outras proposições, inclusive mais avançadas e interessantes para a ampliação desses direitos, também estavam em tramitação no Congresso Nacional.
Cerca de quatro anos depois, em 05 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do julgamento de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADFP 132/RJ) e de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4277/DF), estabeleceu a obrigatoriedade de se reconhecer a união estável “entre homossexuais”, a equiparando a entidade familiar, com seus direitos e obrigações. Essa decisão, um marco no reconhecimento dos direitos humanos da população LGBTQIA+, foi fundamental para que, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça emitisse a resolução 175/2013 que permite a celebração de casamento civil entre pessoas de mesmo sexo, ampliando o leque de direitos sociais e garantias assegurados pelo STF dois anos antes.
A tramitação deste PL no presente momento, portanto, nos parece, no mínimo, extemporânea, considerando que ele se debruça sobre tema superado pelas decisões estabelecidas pelo Poder Judiciário anos após a sua proposição. Não obstante o caráter em si anacrônico desta retomada, o parecer do relator deputado Pastor Eurico estrutura-se a partir de dois aspectos plenamente refutáveis que, de maneira sinuosa, demonstram o não reconhecimento da laicidade do Estado: 1) uma concepção restrita sobre o significado socioantropológico do “casamento” e de suas possibilidades de conformação na realidade, como quando, em seus termos, defende que a palavra “casamento” representa uma realidade objetiva e atemporal, que tem como ponto de partida e finalidade a procriação, o que exclui a união entre pessoas do mesmo sexo; e 2) o não entendimento a respeito das prerrogativas e responsabilidades das instituições judiciárias, ao atacar as decisões acima expostas como ativismo judicial.
Há uma vasta e importante tradição de estudos antropológicos sobre parentesco, conjugalidade e família. Investigações etnográficas demonstram a pluralidade e a plasticidade de concepções e de práticas envolvidas nestas dimensões fundamentais, bem como os variados significados que adquirem na vida social em distintos contextos culturais. Tais processos são frequentemente atrelados a questões políticas e a relações de poder, o que inclui as dimensões de gênero e de sexualidade, frequentemente entrecruzadas por outras, tais como as étnicas, raciais, geracionais e relacionadas à classe social e deficiência.
Ressaltamos o quanto o parecer apresentado reitera normas, valores e concepções extremamente preconceituosas, reducionistas, excludentes e violentas, uma vez que baseia-se em concepções de casamento, de conjugalidade e de família, mas também de direitos, Estado e de Nação, estritamente heteronormativas. Desse modo, caso o parecer seja aprovado, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF) da Câmara dos Deputados emite um perigoso sinal, na direção de obstruir o acesso já conquistado a direitos constitucionais fundamentais para casais e famílias compostas por pessoas cujas existências escapam aos limites impostos pela heteronormatividade.
Brasília, 25 de setembro de 2023.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e seu Comitê Gênero e Sexualidade
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