Manifestação de repúdio e em apoio ao Quilombo de Croatá-MG

O Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental (NIISA-UNIMONTES), o Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA-UFMG), o Escritório Jurídico para a Diversidade Étnica e Cultural (JusDiv-UnB) e o Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) vêm manifestar repúdio aos atos de violência e esbulho em face da Comunidade Quilombola, Pesqueira e Vazanteira de Croatá pela Polícia Militar de Minas Gerais e um empresário da região. As terras tradicionalmente ocupadas pela comunidade estão localizadas em áreas da União, município de Januária, região norte de Minas Gerais.

Manifestamos apoio às notas de denúncia assinadas pela Comunidade de Croatá, pelo Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) e pelo Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), publicadas nos dias 15/01/2022 e 05/02/2022. As famílias quilombolas de Croatá se encontram em situação de extrema vulnerabilidade decorrente do processo histórico de apropriação privada dos territórios tradicionais por empresários do agronegócio. Tal situação é hoje agravada pelas excepcionais enchentes do rio São Francisco, que têm exigido o deslocamento da comunidade para as terras altas do seu território, em busca de refúgio. As reiteradas ações policiais em janeiro e fevereiro de 2022 pretenderam privar a comunidade do acesso a esses locais de abrigo, a exemplo do ocorrido no último dia 5 de fevereiro.

Cabe ressaltar que a Comunidade de Croatá possui Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica e Ambiental produzido pelo NIISA-Unimontes, através do projeto Dinâmicas socioambientais na bacia média do rio São Francisco mineiro: identificação e caracterização de terras tradicionalmente ocupadas por povos e comunidades tradicionais, concluído e entregue ao INCRA-MG em maio de 2019 (processo administrativo no INCRA nº 54170.007639/2016-69).[1] O processo de elaboração do relatório antropológico foi acompanhado por um grupo de trabalho que contou com a participação ativa do Ministério Público Federal, INCRA-MG, SEDA-MG, Secretaria do Patrimônio da União (SPU), além de lideranças quilombolas e organizações de apoio.

O vínculo territorial, o modo de vida e o processo histórico de esbulho que diz respeito à Comunidade de Croatá estão empiricamente evidenciados no relatório antropológico. Diferentemente das formas de ocupação e uso do ambiente pelo agronegócio na bacia do médio São Francisco, a Comunidade de Croatá e outras comunidades tradicionais vazanteiras, quilombolas e pescadoras da região possuem uma complexa forma de apropriação da natureza, baseada em conhecimentos construídos sobre as unidades da paisagem que manejam. As relações identitárias e sociais com o ambiente são marcadas pelo vínculo com o rio, suas dinâmicas de cheias e vazantes; e sustentadas nas relações de parentesco e afinidade que se expressam nas formas de acolhimento aos chegantes, assim como no respeito ao sistema do lugar.

Os processos de territorialização identificados e analisados a partir da memória social do grupo, bem como por meio dos registros documentais e bibliográficos, são claros em relação ao histórico de violência e expropriação das terras tradicionalmente ocupadas pela comunidade. Os dados etnográficos evidenciam a restrição do acesso aos recursos naturais, provocada por mudanças na legislação agrária associadas às políticas de modernização agrícola de incentivo a grandes fazendas e empreendimentos agropecuários na região.

Adicionalmente, os trabalhos de campo e a análise de imagens de satélite produzidas entre 1986 e 2015[2] sustentam que as transformações realizadas pelos empreendimentos de monocultura irrigada e agropecuária provocaram a supressão da vegetação, o enfraquecimento do solo e a alteração da vazão de água no rio. Tais modificações implicaram em inequívocos prejuízos aos modos de vida das comunidades tradicionais da região, que se manifestam na desestruturação das formas de organização social, na desagregação dos seus sistemas de produção agroalimentar e na intensificação dos conflitos fundiários.

A Comunidade de Croatá e demais grupos étnicos da região vêm buscando garantir sua permanência no território, a manutenção de suas especificidades culturais e modos de vida. Entretanto, diante da inoperância do Estado brasileiro, em especial de suas instituições de regularização fundiária e de proteção dos direitos coletivos e territoriais, as comunidades vêm sendo submetidas a um intenso processo de criminalização e de expropriação dos seus territórios.

As instituições de pesquisa abaixo assinadas manifestam seu apoio à comunidade de Croatá e repudiam, de forma veemente, as ações de esbulho realizadas com a conivência do Estado através do uso institucional da Polícia Militar de Minas Gerais.

08 de fevereiro de 2022.

Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental (NIISA/UNIMONTES)
Grupo de Estudos sobre Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG)
Escritório Jurídico para a Diversidade Étnica e Cultural (JusDiv/UnB)
Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA)

Veja aqui o PDF da manifestação.

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[1] Relatório viabilizado através de um termo de cooperação técnica (TCT 10.164/15) celebrado entre a extinta Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agrário (SEDA/MG), a Fundação de Amparo à Pesquisa (FAPEMIG) e a Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES) e também através do convênio celebrado entre o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e UNIMONTES, publicado em 07/08/2017

[2] Análise presente no Relatório Antropológico da Comunidades de croata e na Nota Técnica enviada pelo NIISA/Unimontes ao MPF da comarca de Montes Claros-MG no ano de 2019.

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