No último dia 18 de agosto, foi publicado um “relatório conclusivo” da auditoria do Incra referente ao processo N. 54000.189078/20 19-10 AUD/SEDE/INCRA que contesta o processo administrativo de regularização fundiária da comunidade quilombola de Morro Alto, demarcada com 4500 hectares e localizada entre os municípios de Osório e Maquiné (RS). O processo, que correu de forma regular, cumprindo rigorosamente todos os ritos e as etapas estipulados no processo administrativo de regularização fundiária do INCRA, teve seu Relatório Técnico de Identificação de Delimitação (RTID) concluído em 2011, encaminhado para apreciação do Comitê de Decisão Regional (CDR) do Incra/RS e, depois de sua apreciação, publicado no Diário Oficial da União (DOU), em 15 de março de 2011.
O argumento exposto pela auditoria, que o relatório antropológico supostamente não cumpriria as exigências da Instrução Normativa do INCRA (IN nº57/2009), prende-se à pura formalidade. Argumentam que esse relatório foi elaborado em data anterior à IN 57, quando os processos ainda estavam sob responsabilidade da Fundação Cultural Palmares. A auditoria não parece ter avaliado o conteúdo substantivo do RTID e a sua adequação à IN 57. Aponta, contudo, para uma evidente tendência de anular, com argumentos puramente formais, os RTIDs produzidos antes do ano de 2009.
Essas ações administrativas indicam um retorno de tentativas, anteriormente frustradas, de criminalizar e anular os processos de reconhecimento e regularização fundiária de indígenas e quilombolas, por meio da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) FUNAI INCRA, criada em 2015 pela bancada ruralista. A CPI foi criada sem ter objeto definido e, durante os dois anos de trabalho, apenas revelou e reiterou sistematicamente uma posição de intolerância com relação aos direitos quilombolas e indígenas, sem apresentar qualquer prova incriminatória sobre quaisquer pessoas e/ou instituições relacionadas, conforme registrado em manifestação da ABA de 2017 (Disponível em: https://abateste.assistenciatecnica.space2017/05/03/cpi-funai-e-incra/).
Foi no contexto daquela CPI que o deputado Alceu Moreira (MDB) pela primeira vez questionou diretamente o INCRA (oficio 463/2016) sobre a legalidade dos procedimentos usados na elaboração do RTID de Morro Alto(RS). Em resposta, foi instalada uma sindicância investigatória no INCRA/RS, que concluiu pela inexistência de qualquer vício no Relatório Técnico de Identificação e delimitação (RTID), principal peça da regularização.
Questionamentos semelhantes ao de Morro Alto (RS) foram abertos em várias superintendências do INCRA, na tentativa de anular os procedimentos de regularização e titulação de diversos territórios quilombolas em curso ou mesmo já consolidados em todo o país. Algumas das auditorias abertas com esta intenção têm atuado com base em parâmetros estranhos ao arcabouço legal e de quesitos técnicos e científicos. No caso do Morro Alto, por exemplo, a PORTARIA Nº 445 (de 31 de março de 2021), que autorizou a composição de uma nova equipe para realização de um segundo RTID, foi publicada em data anterior à finalização do relatório conclusivo da auditoria.
Da mesma forma, auditorias dessa natureza ocorrem junto à Superintendência Regional do Estado de Sergipe – SR 23, onde foram instauradas comissões internas (grupos de trabalho para averiguar supostas irregularidades nos processos de regularização fundiária referentes às comunidades Pontal da Barra, município de Barra dos Coqueiros, e Maloca, quilombo urbano, município de Aracajú). Em
relação a esta, a auditoria tem operado por meio da Portaria 170/2021. Vale ressaltar que o processo de regularização de Maloca está registrado no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) sob o nº 54370.000320/2007-65 e encontra-se na fase de decretação, aguardando a publicação do decreto presidencial de interesse social.
Assim como no caso de Morro Alto, o processo da comunidade Maloca seguiu todos os trâmites legais para a elaboração do RTID, contando, inclusive, com o devido acompanhamento e emissão de pareceres de aprovação do setor técnico responsável no INCRA atestando estar em consonância com a IN 57, ainda que o processo de regularização fundiária junto ao INCRA tenha iniciado no ano de 2007, ou seja, em período anterior à mesma.
Tais procedimentos desrespeitam a própria IN 57 citada, ao proporem auditorias cujos questionamentos isolam elementos e operam de modo aleatório, sem considerar, por exemplo, o necessário diálogo entre diferentes setores do INCRA e destes com os profissionais de antropologia responsáveis pela elaboração das peças administrativas e, o mais grave, com as comunidades envolvidas. Outra irregularidade que apontamos refere-se à criação, por parte das Superintendências Regionais, de uma instância recursal não prevista na IN 57, criando novos obstáculos ao regular prosseguimento do processo.
Estamos diante, portanto, de tentativas deliberadas de desrespeito aos direitos resguardados pela CF de 1988, pelo Decreto 4887/2003 e pela Convenção 169 da OIT. Tais ações, travestidas de auditorias, servem, na verdade, a um revisionismo legal e procedimental, que incide sobre processos de regularização fundiária ainda não efetivados pelo Estado brasileiro, com o objetivo de desestabilizar o curso de uma política pública que responde a reivindicações seculares das comunidades negras e quilombolas em todo o país. Mais uma estratégia de um projeto mais amplo de dissolução de direitos e políticas conquistados no curso do processo de redemocratização brasileiro.
Diante do exposto, é de fundamental importância a atuação da 6ª Câmara do MPF e das Defensorias Públicas da União, que há muito vêm prestando apoio à garantia dos direitos dos povos e comunidades tradicionais, no sentido da imediata apuração dos fatos acima descritos, com vistas ao reestabelecimento da verdade e do devido curso da política de regularização dos territórios quilombolas. Solicitamos a retomada imediata dos 31 processos de regularização fundiária de territórios quilombolas sob responsabilidade do INCRA, atualmente sob questionamentos ilegítimos de auditorias internas realizadas com base em critérios estranhos aos procedimentos estabelecidos na lei e nas normas internas ao Incra e que voltam a levantar suspeitas infundadas sobre os trabalhos antropológicos, com base em argumentos que expressam apenas a contrariedade daqueles interessados em dar curso a esta política.
Brasília, 03 de setembro de 2021.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e seu Comitê Quilombos
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