Manifestação sobre a ação truculenta e violenta de reintegração de posse movida pela AGU na comunidade quilombola de Vista Alegre (Alcântara – MA)

A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), por meio do seu Comitê Quilombos, vem se manifestar diante da violenta execução de Ação de Reintegração de Posse na Comunidade Quilombola de Vista Alegre, localizada no território étnico de Alcântara (Maranhão), ocorrida no dia 29 de março de 2023. Executada de forma truculenta pela Polícia Militar do Maranhão, com o apoio da Aeronáutica, o fato é decorrente de ação movida pela Advocacia Geral da União (AGU) (processo número 1000328080.2022.4.013700) e contestada pela Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara (ATEQUILA).

Durante a execução da Ação de Reintegração foi derrubado um restaurante de pequeno porte, propriedade e principal fonte de sustento de uma família quilombola, cuja moradia foi ainda diretamente atingida no ocorrido. Ademais, a emissão de gás lacrimogênio e o uso de balas de borracha por policiais militares e federais atingiram membros da comunidade que estavam próximos da área em litígio, além de pessoas que estavam dentro de suas próprias moradias, inclusive crianças. Numa demonstração de força e continuidade desta violência contra os quilombolas, após o cumprimento da sentença, militares da Aeronáutica acamparam na comunidade, acirrando ainda mais o clima de tensão no local.

Denunciamos o fato de que esta ação jurídica de reintegração de posse ocorre desconsiderando completamente o processo de regularização fundiária da comunidade conduzido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Neste caso, é público que a comunidade quilombola da Alcântara está certificada pela Fundação Cultural Palmares desde 2004, sendo composta por 150 famílias e o seu processo administrativo de regularização fundiária encontra-se em tramitação no INCRA desde 2008.  Dada a morosidade do Estado brasileiro em dar prosseguimento e definição ao caso, diversas ações administrativas e jurídicas foram sistematicamente impetradas pelo próprio Estado contra a comunidade, gerando continuada instabilidade jurídica e aumentando a vulnerabilidade das famílias.

Registramos que o recente evento de Ação de Reintegração é mais um no cenário de graves violações de direitos humanos, sociais e territoriais vivenciados pela comunidade de Alcântara, sobretudo desde a instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) (denunciados pela ABA em 2019 e disponíveis em  http://portal.abant.org.br/2019/09/12/nota-tecnica-da-associacao-brasielira-de-antropologia-aba-em-apoio-aos-quilombolas-de-alcantara-e-em-defesa-a-soberania-nacional-face-a-aprovacao-do-acordo-de-salvaguardas-tecnologicas-brasil-eua/).

Este empreendimento levou ao deslocamento compulsório de 312 famílias de 32 comunidades, na década de 1980, sendo que até hoje grande parte das famílias atingidas não
tiveram qualquer tipo de compensação. Apesar disso, e mesmo sem licença ambiental, há 40 anos a Base de Lançamento permanece funcionando, sendo, portanto, uma atividade irregular perante a legislação específica. A violação dos direitos humanos, “a desestruturação sociocultural” e a “violação ao direito de propriedade e ao direito à terra” em Alcântara foram denunciados e acolhidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), tornando-se este o primeiro caso quilombola a ser julgado e o 17º caso brasileiro a chegar na Corte.

Na situação ora em pauta, a ABA entende que a Ação de Reintegração não poderia ter sido tomada desconsiderando todo o contexto aqui apresentado e que os mecanismos jurídicos e de força utilizados afetam profundamente os direitos humanos e o modo de vida da comunidade de Vista Alegre, bem como das demais comunidades quilombolas que integram o território étnico de Alcântara.

Destacamos, ainda, que tomamos conhecimento da publicação do documento “NOTA SOBRE A REINTEGRAÇÃO DE POSSE OCORRIDA NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE VISTA ALEGRE, EM ALCÂNTARA/MA. DEMONSTRAÇÃO VIOLENTA DE PODER, FORÇA E AUTORITARISMO MILITAR”, produzida pela Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara (ATEQUILA), com o apoio de diversos movimentos sociais, no qual denunciam a omissão dos poderes públicos para evitar a situação de violência vivenciada. Até o momento, nenhuma resposta oficial chegou à comunidade, conforme trecho do documento, que importa reproduzir, pelo conteúdo ilustrativo das violências impetradas:

“Cientes disso, ao tomarmos conhecimento da data marcada para cumprimento da referida ordem, oficiamos, em 14/03 a Casa Civil da Presidência da República, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, a Ministério da Igualdade Racial, a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular (SEDIHPOP) e a Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV) do Maranhão e o Ministério Público Federal informando o quadro delicado da situação e solicitando evitar o cumprimento da ordem. Nenhum dos órgãos mencionados, porém, nos comunicaram quais medidas foram adotadas para evitar o ocorrido na data de ontem e, ao que se sabe, não foram adotadas quaisquer medidas para tal. Avaliamos que a omissão diligente desses órgãos apresenta sérios indícios de prevaricação e foi determinante para o cenário desastroso ocorrido durante a reintegração na comunidade de Vista Alegre” (Disponível em  http://novacartografiasocial.com.br/nota-sobre-a-reintegracao-de-posse-ocorrida-na-comunidade-quilombola-de-vista-alegre-em-alcantara-ma/).

Diante do exposto, a ABA solicita aos poderes públicos responsáveis que considerem as seguintes medidas, a fim de evitar o acirramento dos conflitos socioterritoriais e a perpetuação da violação de direitos pelo Estado brasileiro:

  • A imediata retomada do processo de regularização fundiária do território quilombola de Alcântara, paralisado desde 2008;
  • Que toda e qualquer ação jurídica considere a existência legal do território quilombola de Alcântara reconhecido em 2004 e em processo de regularização fundiária;
  • Que seja respeitado e assegurado o que foi determinado pela Convenção 169 da OIT, sobretudo os termos que garantem respeito à legislação vigente e ao protocolo da Consulta Livre, Prévia e Informada, já elaborado pelas próprias comunidades quilombolas de Alcântara;
  • A revisão imediata do Acordo de Salvaguarda Tecnológicas (AST), que concede o uso comercial da base para os Estados Unidos, assinado em março de 2022.

Acreditamos que tais medidas são fundamentais para que o Estado brasileiro mude sua posição de omissão e opressão manifestados nos últimos anos no país, e retome seu papel de resguardar os direitos quilombolas previstos na Constituição Federal de 1988, assim como de garantir a democracia e a participação, como condição plena para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país.

Brasília, 13 de abril de 2023.

Associação Brasileira de Antropologia – ABA e seu Comitê Quilombos

Leia aqui a note em PDF.

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