A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), sua Comissão de Assuntos Indígenas, seu Comitê de Laudos e seu Comitê de Antropólogxs Indígenas; juntamente com a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs); a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e a Associação Brasileira de Ciências Políticas (ABCP) vêm a público manifestar, de forma incisiva, sobre a violência de grupos armados contra as comunidades indígenas Guarani-Kaiowá, nos municípios de Douradina e Itaporã, Mato Grosso do Sul, em 03 e 04/08/2024. Há poucos dias a ABA já havia manifestado preocupação em face da situação de risco de um novo massacre na região. No sábado, 3 de agosto, conforme noticiado pela grande imprensa, pelas mídias independentes e as dos próprios indígenas, a Força Nacional, que atuava com o objetivo de evitar confrontos se ausentou do local, havendo, em seguida, ataques com balas de borracha e armas de fogo, que deixaram, entre as comunidades da Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, duas pessoas com ferimentos graves e a várias outras também feridas.
A presença dos indígenas neste local visa chamar a atenção das autoridades para o processo de demarcação das terras indígenas, paralisado desde 2011. As graves violações ocorreram, portanto, em uma Terra Indígena já delimitada – https://terrasindigenas.org.br/en/terras-indigenas/3785 – e aguardando as subsequentes etapas para a conclusão do processo demarcatório. A situação configura processo de retomada que, conforme o Enunciado nº 47 da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão – Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da Procuradoria Geral da República, em 16/02/2024, é legítima nos seguintes termos:
“A autodeclaração dos territórios por povos e comunidades tradicionais é legítima e gera repercussões jurídicas, independentes e incidentais aos procedimentos de reconhecimento e titulação estatal, e deve influenciar e induzir políticas públicas diversas, tais como as relacionadas às questões fundiárias e ambientais. Nesse sentido, é dever do Ministério Público Federal defender tais iniciativas extrajudicialmente e judicialmente.”
O estado de Mato Grosso do Sul tem sido denunciado junto a autoridades nacionais e internacionais como um estado onde se registram graves violações de direitos dos povos indígenas que ali vivem.
Não é de hoje que a violência sem freios por parte de proprietários rurais não indígenas impera naquele estado da Federação contra os seus povos indígenas, povos, vale lembrar, originários. Ao longo da metade do século XX, mas com um contínuo e forte crescimento a partir dos anos 2000, acumulam-se já dezenas de casos de assassinatos entre comunidades dos povos Terena, Guarani-Ñandéva e Guarani-Kaiowá. Nesses dois últimos casos, as ações incluem o ocultamento de corpos, despejos forçados, ferimentos por balas de borracha e de fogo, incêndios intencionais de casas de moradia e de rezas, por iniciativa de forças paraestatais, compostas por grupos armados, agindo à revelia da lei, para defender interesses e poderes econômicos e políticos na região. Não deixa de chamar fortemente a atenção os ferimentos provocados por balas de borracha, que é artefato de uso comum das polícias no país. Tal situação, por si, se coloca na contramão de qualquer processo civilizacional em que o respeito pela vida humana deveria prevalecer, acima de tudo.
Ao longo das últimas décadas, de forma reiterada e tenaz, os Guarani e Kaiowá têm demonstrado que suas vidas estão indissociavelmente ligadas aos seus territórios ancestrais e que, portanto, é ilusória e juridicamente ineficaz qualquer ação que não seja a do reconhecimento e da garantia dos seus espaços vitais. O não reconhecimento deste fato apenas mantém vivo um estado de violência e violação do Estado Democrático de Direito. Portanto, o mais recente episódio não configura novidade, mas sim agressões que se repetem sem ações eficazes por parte do Estado brasileiro, no sentido de contê-las.
Vale ainda ressaltar que, conforme também veiculado nas mídias sociais e na grande imprensa, nos últimos dias têm crescido também as tentativas de silenciamento, criminalização e coação a movimentos sociais que se solidarizam contra estas violações de direitos humanos, prestando assistência às comunidades afetadas.
Diante deste grave quadro, a ABA demanda do Ministério da Justiça e Segurança Pública, do Ministério dos Povos Indígenas e do Ministério Público Federal uma rigorosa investigação e a adoção de medidas legais sobre o uso de força e as violências cometidas contra os indígenas, inclusive sobre a ação de grupos armados na região. Finalmente, a ABA apela ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania para que assegure às comunidades afetadas a proteção e o respeito ao direito básico à vida e à dignidade da pessoa humana.
Brasília, 06 de agosto de 2024.
Associação Brasileira de Antropologia (ABA); Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs); Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e Associação Brasileira de Ciências Políticas (ABCP)
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