A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), por meio de seu Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos e de sua Comissão de Assuntos Indígenas (CAI) vem manifestar apoio à Representação dos coletivos e organizações da sociedade civil junto ao Ministério Público Federal e ao Ministério Público Estadual do Mato Grosso, que requer aos órgãos competentes providências cabíveis diante das violações dos direitos humanos e socioambientais, especialmente aqueles relativos ao patrimônio cultural material e imaterial dos povos indígenas, no licenciamento da Usina Hidrelétrica (UHE) Castanheira e demais empreendimentos hidrelétricos na Bacia do Rio Juruena (Mato Grosso)[1].
A UHE Castanheira está prevista para ser construída no rio Arinos, distante apenas 120 quilômetros do seu encontro com o rio Juruena. Para gerar uma potência de apenas 140 megawatts (que corresponde a menos de 1% da energia total consumida no estado de Mato Grosso), o empreendimento poderá inundar uma área de 9.470 hectares, estendendo-se por 67 quilômetros. Os danos desta Usina sobre os povos e comunidades tradicionais da região são incalculáveis, e vários deles irreversíveis e não passíveis de qualquer compensação – como aponta o Estudo do Componente Indígena, cuja conclusão é pela inviabilidade do empreendimento, diante da magnitude dos danos previstos.
Conforme determina a Constituição Federal, essas áreas devem ser preservadas, já que se reconhece ali a existência da Terra Indígena Apiaká/Kayabi, Japuíra e Erikpatsa (segundo consta nos estudos do licenciamento), além da área pertencente ao povo Tapayuna e informações sobre grupos isolados, congregando povos cuja história e identidade guardam intrínseca conexão com o rio Arinos.
Dentre os danos já identificados nas fases de estudos ambientais e antropológicos, aponta-se a restrição de uso das áreas tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas para a realização de suas atividades produtivas, bem como a redução dos recursos naturais, com possível proliferação de conflitos relacionados à pesca. Tais danos possuem efeitos diretos na diminuição do pescado e de quelônios, e podem inclusive resultar na extinção de espécies da fauna e flora silvestre, diminuição da qualidade da água, proliferação de vetores de doenças, além de outras restrições e violações aos direitos socioambientais e territoriais. Ainda, de acordo com o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), a construção da barragem interferirá fortemente no patrimônio cultural material e imaterial nessa região, destacando-se os danos ao patrimônio arqueológico e às manifestações culturais. Ressalta-se que tais bens culturais dependem da proteção ao meio ambiente, demandando sua devida proteção na bacia do rio Juruena.
O RIMA, entretanto, limita-se a indicar que há um elevado potencial arqueológico na área pretendida para a implantação do empreendimento, recomendando, como medida de mitigação, apenas, o levantamento de tais sítios arqueológicos e o resgate dos materiais encontrados. Tal medida se mostra insuficiente para a proteção real dos bens materiais e imateriais que compõem as paisagens culturais do Juruena e que resguardam a memória, a cultura e os laços dos povos indígenas com aquelas terras.
Ademais, cabe lembrar que a demarcação das Terras Indígenas da região ocorreu durante o processo de colonização, buscando destinar porções mínimas de terras aos povos indígenas, a fim de garantir a continuidade da expansão agroextrativista. Dessa forma, tais áreas não correspondem aos territórios reconhecidos e efetivamente utilizados pelos povos.
Finalmente, embora as informações existentes apontem graves danos potenciais, os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) produzidos até o momento são insuficientes quanto à avaliação do patrimônio cultural existente nos municípios atingidos pela UHE Castanheira, pois não consideram adequadamente os modos de criar, fazer e viver, as formas de expressão e as criações dos povos e comunidades tradicionais. Vale destacar que tais estudos tampouco foram elaborados em respeito ao direito à consulta e ao consentimento livre, prévio e informado dos
povos afetados. Desse modo, salientamos que medidas legais devem ser tomadas para impedir o iminente etnocídio na área, já que diversas práticas culturais, compreendidas como parte da identidade desses grupos, estão sob ameaça de perdas irreparáveis, capazes de comprometer a sua autodeterminação e existência.
O Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos e a Comissão de Assuntos Indígenas (CAI) da ABA ratificam a posição das organizações da sociedade civil signatárias da referida Representação, demandando a atuação do Ministério Público Federal e do Ministério Público Estadual do Mato Grosso, para garantir a aplicação das nossas determinações constitucionais e dos Tratados e Convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário. O Comitê e a Comissão, portanto, apelam para que o Estado brasileiro cumpra com o seu compromisso com a promoção e a proteção dos direitos humanos e do patrimônio cultural dos povos indígenas e comunidades tradicionais da Bacia do Rio Juruena.
Brasília, 03 de fevereiro de 2023.
Associação Brasileira de Antropologia; seu Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos; e sua Comissão de Assuntos Indígenas
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[1] Os seguintes coletivos e organizações assinam a Representação: Operação Amazônia Nativa (OPAN), Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental (Cepedis), Associação Indígena Inhã-Apiaká, Associação Comunitária da Aldeia Indígena Mayrob, Associação Indígena Kawaiwete, Instituto Munduruku, Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso (Fepoimt), Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB), Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad), Rede Juruena Vivo, Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro – Seção Mato Grosso. http://www.abant.org.br/files/20230202_63dbc2a3a4610.pdf