A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), junto com a sua Comissão de Assuntos Indígenas (CAI), vem através desta manifestar seu mais profundo repúdio ao Projeto de Lei Complementar Nº 17/2020, que tramita na Assembleia Legislativa de Mato Grosso. Enviado pelo governador Mauro Mendes, o referido PLC, que foi aprovado em primeira votação no dia 17 de junho autoriza o registro do Cadastro Ambiental Rural (CAR) de propriedades em sobreposição a terras indígenas no estado, ao reconhecer como terras indígenas apenas as homologadas. Este fato potencializa os conflitos que já vitimam os povos deste estado e, caso seja aprovado, poderá afetar diretamente dezenas de territórios reivindicados pelos povos indígenas e que apresentam pendências para a finalização do processo demarcatório pela Fundação Nacional do Índio (Funai), além de abrir brechas para a validação de CAR em territórios já regularizados.
Não temos dúvidas que o PLC 17/2020 é a tentativa de legalizar a já inconstitucional Instrução Normativa No 09/2020, emitida pelo presidente da FUNAI e já suspensa em seus efeitos por decisão da Justiça Federal, que acolheu Ação do Ministério Público Federal em Mato Grosso.
Estes instrumentos, como já afirmamos, representam claro e agudo atentado ao reconhecimento dos direitos territoriais e à assistência e proteção dos povos indígenas, consagrados pela Constituição Federal de 1988 de forma inequívoca no Artigo 231.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Petição No 3.388/RR, sobre a TI Raposa Serra do Sol (Roraima), já expressou o entendimento da Corte sobre o que se configura direito originário dos povos indígenas sobre seus territórios. Afirma a decisão que:
“Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente ‘reconhecidos’, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de ‘originários’, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não- índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como ‘nulos e extintos’ (§ 6º do art. 231 da CF)”.
Constata-se, portanto, que a ação que se pretende o PLC 17/2020 viola diretamente o que, por consenso, já foi reafirmado na Suprema Corte ao passo que a matéria tratada no referido PLC não se encontra na alçada do Poder Executivo ou do Legislativo estadual.
Isto posto, em sintonia com a histórica defesa dos direitos dos povos indígenas, essência desta Associação Brasileira de Antropologia, cabe-nos somarmos às manifestações dos povos indígenas, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Regional Oeste 2, ao Ministério Público Federal, ao Conselho Nacional de Direitos Humanos e ao conjunto de organizações da sociedade civil para repudiar e instar o Poder Legislativo de Mato Grosso para que arquive em definitivo tal proposição.
Brasília, 24 de junho de 2020.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e sua Comissão de Assuntos Indígenas – CAI
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