Nota da ABA sobre iniciativas legislativas que buscam impedir o direito a uma educação em/para os Direitos Humanos
A Associação Brasileira de Antropologia, por meio de seu Comitê Gênero e Sexualidade, vem a público manifestar sua profunda preocupação frente ao crescente avanço de iniciativas legislativas que incidem sobre a educação e que visam restringir o ensino de temáticas curriculares reconhecidas pela Lei de Diretrizes e Base da Educação (LDB) como temas transversais, tais como educação sexual, educação sobre diversidade sexual de gênero, educação para as relações étnico-raciais e diversidade religiosa. Consideramos que o ensino dessas temáticas preconizadas pela LDB visa amparar as crianças e adolescentes dando-lhes conhecimentos de base científica que as reconhecerá como futuros cidadãos, fornecendo instrumentos no plano social, físico e também psicológico para que possam se proteger em situações difíceis que o mundo atual lhes impõe. O Estado não pode se omitir sobre esses temas educacionais em prejuízo das crianças e adolescentes, nem escolher princípios de certas religiões, em detrimento da diversidade cultural e religiosa do país.
Um desses casos que busca impedir o direito à educação é o substitutivo Nº 1 ao Projeto de Lei Nº 813/2019, que tramita na Câmara Municipal de São Paulo visando instituir o “Programa Escolhi Esperar” para uma suposta “prevenção” e “conscientização” sobre gravidez precoce: uma articulação entre políticas de Saúde e Educação no município com vistas a formar profissionais dispostos a orientar adolescentes à adoção da abstinência sexual como método contraceptivo. O referido PL prevê, ainda, a celebração de convênios com organizações não governamentais e “outras entidades afins” que possam oferecer formação nessa direção, o que é muito grave. Além de abrir possibilidade de celebração de convênios com organizações religiosas ou orientadas por perspectivas confessionais, essa proposta legislativa desconsidera aspectos fundamentais para uma política pública direcionada à formação e proteção dos jovens: 1) que nem toda relação sexual ou gravidez na adolescência provém de um ato de escolha – as situações de violência sexual precisam ser prevenidas e/ou terem seus efeitos minorados pela oferta de informação especializada; 2) que não se justifica interditar aos adolescentes aprendizados necessários se eles optarem por manter relações afetivo-sexuais com a garantia legal e social que a sua autonomia e direito à informação serão respeitados. O projeto recebeu parecer favorável da Comissão de Saúde e tinha segunda votação prevista para 17/06, tendo sido adiada após pressão de movimentos sociais. Projeto similar, o 392/2021 foi apresentado à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo nessa mesma semana.
Outro caso aconteceu em março de 2021, quando a Câmara Municipal de Manaus, através da resolução 054/2021, anulou a resolução 091/2020 do Conselho Municipal de Educação de Manaus, que abrange diretrizes para abordagem de temáticas relacionadas a relações étnico-raciais, diversidade de gênero e liberdade religiosa no sistema municipal de ensino da capital. A questão foi judicializada e, no dia 21 de março, decisão liminar do Tribunal de Justiça do Amazonas suspendeu a resolução da CMM que impedia a abordagem das temáticas. Ainda assim, em maio de 2021, a Câmara Municipal aprovou o PDL 03/21 sustando os efeitos da resolução 91/CME/2020. A determinação afronta o direito de crianças e adolescentes à educação para o respeito à diferença e atua na contramão do reconhecimento da diversidade social e cultural no Brasil. De igual maneira, essas ações parecem ignorar a necessidade de reconhecer crianças e adolescentes como portadores de direitos próprios e autônomos, como estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Este Comitê considera extremamente preocupantes iniciativas como essas nas instâncias locais dos municípios e estados da Federação, dado os efeitos deletérios sobre o amparo a crianças e adolescentes no que diz respeito aos direitos reprodutivos e sexuais, bem como à garantia do debate sobre a diversidade sexual, étnico-racial e liberdade religiosa. Segundo dados do Atlas da Violência 2018, 55,5% das meninas e 45,5% das adolescentes negras são abusadas, estupradas ou exploradas sexualmente. Iniciativas como a do PL em tramitação na Câmara Municipal de São Paulo, que dificultam o acesso a informações a respeito dos seus corpos e sexualidades, podem dificultar que essas vítimas verbalizem ou reajam a tais violências, implicando em sua menor proteção social. Preocupa, ainda, a possibilidade de celebração de convênios com entidades religiosas para incidir em políticas públicas de saúde e educação no âmbito de estados e municípios, investindo recursos públicos na multiplicação de informações sem fundamento científico e que ferem a laicidade do Estado, o direito à educação para a cidadania de crianças e adolescentes com históricos e realidades diversos, bem como o acesso de adolescentes a escolhas informadas para a vida afetiva e sexual.
Brasília, 02 de julho de 2021.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e seu Comitê Gênero e Sexualidade
Leia aqui o PDF da nota.