Na segunda-feira 29 de julho, pelo menos 58 pessoas foram mortas no Centro de Recuperação Regional de Altamira, no Pará. Mais quatro presos foram assassinados durante a transferência de Altamira para o presídio federal de Marabá, totalizando 62 mortes. Diante de mais um episódio de mortes no sistema carcerário, a Associação Brasileira de Antropologia, através de sua Comissão de Direitos Humanos, vem a público se posicionar no entendimento de que esse episódio de mortes massivas não é um caso isolado, mas efeito direto da política de encarceramento em massa e, portanto, das condições desumanas e degradantes do sistema prisional no Brasil.
Essa chacina ocorreu dois meses após do segundo massacre em Manaus, no estado de Amazonas, no dia 26 de maio desse ano, que deixou como resultado 55 pessoas mortas. Antes desse, em janeiro de 2017, 56 pessoas haviam sido mortas após outro massacre em unidades prisionais, também em Manaus. Poucos dias antes da rebelião na Penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, que deixou 26 pessoas mortas, em 14 de janeiro de 2017. Isto é, no período de três anos, 199 pessoas foram mortas em episódios de massacre em presídios federais sob responsabilidade do Estado. A recorrência dessa tragédia afasta definitivamente explicações simplórias, como a esgrimida, diante dos fatos, pelo presidente da República de que “problemas acontecem”. Estas, não apenas negam a responsabilidade pública sobre o acontecido, mas também insultam moralmente as vítimas e suas famílias.
O massacre de Altamira, assim como os outros citados, não são eventos inesperados, acontecidos pelo “acaso”. Pelo contrário, essas situações foram anunciadas e denunciadas por diversas instâncias, desde agentes das penitenciárias que convivem com as pessoas privadas de liberdade nesses espaços, até por relatórios das mais altas instâncias de controle e monitoramento das unidades prisionais. Como denunciaram: um relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no caso de Altamira, e um Relatório do Subcomitê sobre prevenção da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos e degradantes (SPT) da ONU sobre unidades de vários estados do Brasil, entre eles o Amazonas. Necessário destacar também o trabalho da Pastoral Carcerária, das Defensorias Públicas, do Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura e suas instâncias estaduais, os quais, a partir da produção de conhecimento qualitativo e da interlocução próxima e direta, alertam para as diversas violações de direitos às quais são submetidas as pessoas privadas de liberdade e suas famílias.
Especificamente, no caso da unidade prisional de Altamira, foram apontadas a superlotação – 156% acima da capacidade legal- e as péssimas condições de encerro. Esses dados são relevantes não apenas pelo incumprimento das normas legais que regulam o regime penitenciário, mas também por estarem ligados a uma política de privatização dos presídios que desvaloriza e desrespeita a saúde, segurança e integridade física das pessoas custodiadas. Tanto em Altamira quanto em Manaus são inúmeros os relatos de familiares que, de forma cotidiana, alertam para “práticas como racionamento de água, insuficiência de colchões, ausência de medicação, má qualidade dos kits de higiene e irregularidade na entrega, restrições às visitas íntimas e de assistência religiosa”, conforme Relatório do MNPCT (2018). Esse quadro aponta claramente para uma rotinização da tortura que, junto com a violência física, atinge também a dignidade moral das pessoas privadas de liberdade.
O argumento rapidamente esgrimido por autoridades públicas sobre a luta entre facções criminais não explica o acontecido, nem, em tal caso, a ausência de medidas para evitá-lo, como também demonstra a indiferença para com a situação prisional no Brasil aqui enunciada. As chacinas e as reações do governo em relação a elas, pelo contrário, evidenciam a política do estado explicitamente repressiva e racista que mantém nas “masmorras” a população negra e pobre, em condições degradantes e sob a indiferença da maior parte da população. Essa política punitivista e inquisitorial se evidencia também no fato de quase a metade dos custodiados na unidade de Altamira estar ainda aguardando julgamento. Como, aliás, é um traço do sistema prisional brasileiro, como demonstrou o Conselho Nacional de Justiça, em 2018, ao contabilizar cerca de 40% de presos provisórios, os quais vivenciam na espera da decisão judicial já um castigo.
Por fim, alertamos também para a situação de desconsideração que os familiares dos custodiados e presos vivenciam durante e após os massacres. A falta de notícias, de acesso à informação, de assistência médica e psicológica e, principalmente, de exercício dos direitos de luto e de investigações sobre o acontecido, apontam para mais um conjunto de violações de direitos, que são responsabilidade do Estado. Nesses dias em Altamira, os familiares, entre o mal cheiro dos corpos mortos e a presença de urubus sobrevoando, estão ainda aguardando notícias de seus entes queridos e lutando para realizar os procedimentos funerários que garantam um luto digno.
A situação aqui brevemente descrita demonstra claramente como o estado brasileiro tem se arraigado e tem fortalecido uma política de encarceramento em massa, que ao reduzir a condição de humanidade de milhões de pessoas, na sua maioria negras, também não garante a vida delas, seja de forma direta, seja as deixando morrer em condições indignas.
Nesse contexto, enquanto Comissão interessada na defesa dos direitos humanos, junto com a Associação Brasileira de Antropologia, afirmamos que a segurança e vida nas prisões não pode depender mais do lucro do setor privado, muitas vezes articulado com interesses de agentes do estado, que do respeito legal e da consideração moral das pessoas privadas de sua liberdade e seus familiares, garantindo assim não apenas o estado democrático de direito, mas, principalmente, o reconhecimento do valor de todas as vidas e, nesse caso, de todos os cidadãos como sujeitos de direitos e de humanidade. A naturalização e a produção social da indiferença sobre esse problema são certamente os piores antídotos para combater essa política. Expressamos assim nossa solidariedade com as vítimas diretas e seus familiares e cobramos do governo estadual e federal respostas ao massacre acontecido, medidas de prevenção e de apoio e reparação para os familiares.
Brasília, 06 de agosto de 2019
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e sua Comissão de Direitos Humanos
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