O Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos, o Comitê Quilombos e o Comitê de Antropólogas/os Negras/os da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) vêm por meio desta nota repudiar a condução dos procedimentos e ações adotadas no processo de renovação da licença prévia do empreendimento minerário da SRN Holding, conduzido pela Secretaria de Meio Ambiente e Energias Renováveis (SEMAR) – Piauí; que pretende se sobrepor ao Território Quilombo Lagoas.
No dia 23 de novembro de 2022, a SEMAR publicou um Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) de um empreendimento de mineração de ferro magnetítico conduzido pela SRN Holding, e anunciou a realização de uma Audiência Pública na Igreja das Nações em São Raimundo Nonato (PI) – inicialmente prevista para o dia 06 de dezembro do corrente ano. Esse mesmo relatório foi publicado em 2019, como parte de uma peça obrigatória dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) desse empreendimento, que ameaça invadir o Território Quilombo Lagoas.
Esse território vem sendo ameaçado pelo empreendimento da SRN Holding desde 2015, data da fundação da companhia. Mas o assédio de mineradoras dentro do território é anterior, como no caso da extração ilegal de madeira e a instalação de fornos para produção de carvão vegetal, protagonizadas pela Galvani Mineração em 2014, além de outros casos em anos anteriores.
Não se trata da primeira tentativa de licenciar o referido empreendimento. No dia 09 de dezembro de 2019 foi realizada uma audiência pública, quando o mesmo EIA/RIMA publicado agora foi rejeitado por todos os presentes à reunião. A Audiência Pública ora proposta será a terceira tentativa da SEMAR em validar um documento de licenciamento ambiental composto por informações falsas, conforme demonstra a análise dos conteúdos do EIA, disponível em artigo científico publicado (Curvelano et al 2022)[1]. Trata-se de mais uma tentativa de promover um desmonte ambiental local.
Não há no EIA/RIMA qualquer menção à presença do Território Quilombo Lagoas, o maior quilombo do Nordeste Brasileiro, localizado na Serra da Capivara, que é também a maior área de caatinga ocupada por uma comunidade quilombola. São 119 comunidades em 62.375 hectares, distribuídas em 6 municípios do sudeste do Piauí (São Raimundo Nonato, São Lourenço do Piauí, Dirceu Arcoverde, Fartura do Piauí, Bonfim do Piauí e Várzea Branca). Nesse quilombo, existe a Associação Territorial Quilombo Lagoas – Lagoa das Emas – politicamente reconhecida, ativa na defesa de seu território, que já está delimitado e em processo de demarcação pelo INCRA (Processo 54380.0002161/2008-03). O mapa está publicado e a finalização da titulação está em curso, por meio do trabalho do Instituto de Terras do Piauí (Lei nº 21.469, de 05 de agosto de 2022; Lei nº 7.294, de 10 de dezembro de 2019; legislação piauiense).
O estado do Piauí, por meio da Lei estadual nº. 7.294 de 12 de dezembro de 2019, está titulando o território quilombola que o RIMA de 2019, publicado pela SEMAR e ora reapresentado, afirma não existir. O RIMA afirma a inexistência de terras quilombolas na área de influência do empreendimento, mesmo com a devida publicação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Território Quilombola de Lagoas, pelo INCRA, já em 2010! Portanto, nega a existência de um território que já foi oficialmente reconhecido, assim como ignora os questionamentos apresentados pelas mais de 200 pessoas que compareceram à Audiência Pública realizada em 2019 para reafirmar sua existência diante da negação protagonizada pelo órgão licenciador do Piauí. O agendamento de nova audiência, no “apagar das luzes” do atual governo, desrespeita os procedimentos legais de comunicação com as populações atingidas e, novamente, desconsidera os direitos constitucionais das 119 comunidades quilombolas do Território Quilombo Lagoas.
Ressalta-se ainda que a mesma SEMAR, junto ao ICMBio, demonstra interesse no projeto de instalação do monocultivo de soja no corredor ecológico entre o Parque Nacional da Serra da Capivara e o Parque Nacional da Serra das Confusões, desrespeitando integralmente os esforços de constituição de um zoneamento econômico ecológico da caatinga que vise mantê-la “em pé e viva”.
Os episódios narrados se somam na direção de uma forma de violação planejada da legislação ambiental, o que não é somente crime, mas afeta a capacidade dos povos tradicionais de cuidar e habitar a caatinga e manter seus modos de vida.
Diante dos fatos narrados, solicitamos às autoridades competentes a imediata anulação de licenças já concedidas, bem como o arquivamento do licenciamento ambiental em curso, posto que instaurado de forma irregular a partir de documentos falhos e de informações falsas, desconsiderando dispositivos jurídicos nacionais e internacionais. Em havendo interesse em empreendimentos na área, que seja instaurado novo procedimento administrativo, com base em um novo EIA-RIMA que contemple, de fato, a existência das comunidades quilombolas e o reconhecimento do Território Quilombola Lagoas como parte fundamental à manutenção da caatinga, de um meio ambiente ecologicamente equilibrado e dos modos de vida das 119 comunidades quilombolas que o habitam.
Brasília-DF, 08 de dezembro de 2022.
Associação Brasileira de Antropologia e seu Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos (PTMAGP – ABA)
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[1] Curvelano Freire, B., Teófilo Marques, C. ., Vianna, S., & Marques, R. (2022). Não existe ciência aplicada na democracia: algumas considerações a respeito de quem as universidades pensam que são. Argumentos – Revista Do Departamento De Ciências Sociais Da Unimontes, 19(1), 133–169. https://doi.org/10.46551/issn.2527-2551v19n133-169