A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), através dos seus Comitês de Antropologia e Saúde; Gênero e Sexualidade; Laicidade e Democracia; Cidadania, Violência e Gestão Estatal; Antropólogas/os Negras/os; Deficiência e Acessibilidade; e da sua Comissão de Direitos Humanos, manifesta repúdio ao Projeto de Lei 1904/24, que propõe limitar a até 22 semanas de gestação a garantia do exercício do direito à realização de um aborto legal e seguro, em casos de violência sexual. Esse PL equipara a interrupção legal da gravidez após 22 semanas ao crime de homicídio simples e faz do aborto crime mais grave que o estupro que o motivou. Caso venha a ser aprovado, terá impacto devastador sobre a vida de mulheres, meninas e pessoas que gestam.
No Brasil, o Código Penal (CPB 1940, art. 127 e 128) e a Constituição Federal (CF 1988, art. 128) limitam seus permissivos à interrupção voluntária da gravidez somente aos casos de estupro, risco de vida da gestante e, desde 2012 (STF, ADPF 54), aos casos de anencefalia fetal. O primeiro serviço público para a realização de aborto legal foi criado em 1989. E é apenas de 1999 a primeira regulamentação do Ministério da Saúde que, através da Norma Técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, promoveu e normatizou a estruturação dos serviços públicos para atendimento de casos de aborto legal. Somente em 2006 a prática foi regulamentada pelo Ministério da Saúde, resultando posteriormente na Norma Técnica para a Atenção Humanizada às Pessoas em Situação de Violência Sexual (de 2015). Lembramos que a Comissão Intersetorial de Saúde da Mulher (CISMU) e a FEBRASGO – Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia articularam-se com pesquisadoras e ativistas feministas e com hospitais públicos para acompanhar a implantação dos serviços de aborto legal no país.
Contudo, mesmo diante da legislação vigente e de suas regulamentações, tem-se negado sistematicamente o direito das mulheres, meninas e pessoas que gestam de decidirem, nesses casos, sobre os seus próprios corpos, restringindo ainda mais sua autonomia reprodutiva. No Brasil, o direito a decidir por interromper uma gravidez indesejada, mesmo previsto no Código Penal e nas normas técnicas do Ministério da Saúde, não tem sido assegurado por diferentes agentes públicos, muitas vezes orientados por concepções e valores religiosos e morais. O Brasil é, pela sua Lei Maior, a Constituição Federal, um Estado laico, não obstante ser notório o protagonismo de atores que se apresentam como “cristãos” e “conservadores” na tentativa de imporem uma agenda marcada por retrocessos na garantia de direitos, como a que agora busca cercear a autonomia das mulheres e a devida proteção às meninas. No Congresso Nacional, tais atores desconhecem até mesmo posicionamentos divergentes no próprio campo religioso, bem como a pluralidade de ideias que é própria do regime democrático.
No Brasil, na maior parte das vezes, a violência sexual contra meninas e mulheres acontece dentro da própria casa e é praticada em situações que envolvem complexas relações de abuso, emaranhadas em relações domésticas. Em nosso país, a cada quatro casos de violência sexual, três são de adolescentes ou de crianças. Somente no ano de 2023, 12 mil meninas de 8 a 14 anos foram mães. O PL1904/24 ignora assim a dura realidade enfrentada especialmente por meninas com menos de 13 anos, que acabam por descobrir uma gravidez tardiamente, devido à violência, ao medo ou mesmo ao desconhecimento das mudanças em seus próprios corpos. Trata-se de crianças notadamente em alta vulnerabilidade social, que deveriam ser protegidas pelo Estado brasileiro. A proposta ignora também a dificuldade de acesso a serviços de aborto legal no Brasil, presentes em apenas 3% dos municípios, e o “calvário” que muitas mulheres e famílias enfrentam para obter o atendimento para interrupção legal da gravidez. Tudo isso repercute no avançar da gestação para além de 22 semanas.
Diante do exposto, a ABA manifesta total repúdio e desaprovação ao PL 1904/24, que tenta criminalizar ainda mais as mulheres, meninas e pessoas que gestam, em detrimento dos seus direitos fundamentais, em especial aos direitos reprodutivos.
Brasília, 20 de junho de 2024.
Associação Brasileira de Antropologia (ABA); seu Comitê de Antropologia e Saúde; seu Comitê Gênero e Sexualidade; seu Comitê Laicidade e Democracia; seu Comitê Cidadania, Violência e Gestão Estatal; seu Comitê Antropólogas/os Negras/os; seu Comitê Deficiência e Acessibilidade; e sua Comissão de Direitos Humanos
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