A ABA vem manifestar uma profunda indignação e absoluto repúdio para com o violento ataque organizado e executado por segmentos do Estado brasileiro contra famílias indígenas Kinikinau, em Mato Grosso do Sul.
Tais famílias haviam recentemente retornado a uma fração de seu território tradicionalmente ocupado. Segundo informações claras, por meio de registros audiovisuais, esta ação foi realizada por um expressivo contingente da Polícia Militar daquele estado, em colaboração com o prefeito do município de Aquidauana (MS). Deu-se à revelia do estado de direito, sem responder a qualquer ordem judicial. Frente a tamanha violência física, os Kinikinau se refugiaram em outro acampamento nas proximidades, de ocupação terena, contabilizando diversos feridos.
Cabe notar que o Mato Grosso do Sul possui um longo histórico de ataques violentos a acampamentos indígenas. De forma ilegal, forças paramilitares, por vezes disfarçadas de empresas de segurança privada, ao longo do tempo realizaram sistemáticas incursões a tais acampamentos de reocupação territorial, servindo-se de armas de fogo e balas de borracha. Em vários casos, importantes lideranças e mesmo pessoas jovens e idosas perderam a vida, com frequentes ocultamentos de seus corpos, uma estratégia militar adotada com frequência por estas milícias a fim de dificultar investigações. Há que se dizer que não obstante este procedimento de escamotagem e após anos de impunidade, alguns dos integrantes destes grupos foram condenados, com uma empresa de “segurança”, como a Gaspen, sendo fechada no estado.
Há que se observar, porém, que apesar deste histórico de violência, nunca se havia registrado tamanha ousadia de organismos do Estado em prevaricar e prescindir de procedimentos legais, com a realização de intervenções militares profundamente violentas e em sintonia e articulação com expoentes políticos, como a ocorrida ontem. A ABA vem, então, remarcar a profunda gravidade deste fato. Não se trata de apenas um episódio a mais no já trágico panorama de não reconhecimento dos direitos constitucionais às terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas em Mato Grosso do Sul. Ao contrário, trata-se da apropriação por parte de segmentos do Estado de um pensamento bastante difuso entre setores ruralistas (e para além destes), da necessidade de uma “justiça com as próprias mãos”. Promove-se um modelo de Brasil “faroeste”, onde se impõe e se legitima uma justiça do mais forte. Retira-se do horizonte a justiça com “J” maiúsculo, substituindo-a por uma justiça em prol do interesse próprio e privado, com o uso do aparato do Estado brasileiro.
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Diante deste cenário legal e moralmente condenável, para o qual está fortemente contribuindo o atual governo federal, através de inúmeras declarações de parte de seus membros (que acabam por incentivar ou mesmo justificar certas práticas ilegais), cabe perguntar-se qual será a reação do Judiciário brasileiro perante esta franca ação de sua deslegitimação e obsolescência.
Também ontem, por unanimidade de seus membros, o Supremo Tribunal Federal rejeitou a medida provisória deste Executivo que atribuía a competência sobre as demarcações das terras indígenas ao Ministério da Agricultura, âmbito claramente marcado por interesses da classe ruralista. Tal decisão permitiu a manutenção desta tarefa na FUNAI, com um dos Ministros, ao proferir seu voto, afirmando que “uma visão do processo político institucional que se recuse a compreender a autoridade normativa dos preceitos constitucionais é censurável e preocupante, porque parece ainda haver, na intimidade do poder, um resíduo de indisfarçável autoritarismo, despojado sob tal aspecto quando transgride a autoridade da Constituição. É preciso repelir qualquer ensaio de controle hegemônico do aparelho de Estado por um dos poderes da República”. A ABA, assim, auspicia que a Justiça Federal enfrente com este mesmo afinco o episódio que envolveu a comunidade Kinikinau. Fazem-se necessárias medidas para apurar quem organizou os atos de violência contra estes indígenas, quem os autorizou, e, uma vez feita a apuração de responsabilidades, que se faça seu julgamento sem vacilação. É preciso reafirmar os fundamentos de um estado verdadeiramente democrático, pondo um freio a esta perigosíssima deriva autoritária, com vocação etnocida, quando não genocida.
Brasília, 02 de agosto de 2019.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e sua Comissão de Assuntos Indígenas
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