A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e sua Comissão de Direitos Humanos vêm manifestar seu repúdio à Portaria GM/MS nº 1.325/2020, que, na contramão de todos os avanços conquistados nas últimas décadas, revogou tanto a Portaria GM/MS nº 95/2014 – que dispõe sobre o financiamento do serviço de avaliação e acompanhamento às medidas terapêuticas aplicáveis ao paciente judiciário, no âmbito do SUS -, quanto sua consolidação na Portaria GM/MS nº 2/2017, ou seja, os artigos 16 a 28 do Anexo XVIII e os Anexos 3 e 4 do Anexo XVIII. Revogam-se normas que dizem respeito aos deveres do Estado brasileiro em relação às pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei e que asseguram o disposto tanto na Constituição Federal e nos pactos internacionais dos quais o país é signatário, quanto na Política Nacional de Direitos Humanos e na legislação infra-constitucional. Esses deveres não podem ser simplesmente desconsiderados.
Há 33 anos, em um contexto pós-ditadura militar, o Brasil dava seus primeiros passos rumo à redemocratização. Assuntos como cidadania, direitos humanos e liberdade passavam a entrar em pauta com a devida centralidade. Naquela conjuntura, o manifesto da Carta de Bauru marcava o fortalecimento de um relevante movimento crítico aos manicômios, tanto em sua expressão física, quanto ideológica. Assinalava também a articulação da luta que buscava a reformulação dos serviços de saúde, estabelecendo uma ruptura com a trajetória higienista na qual a Psiquiatria se consolidou. Com o lema “Por uma sociedade sem manicômios!”, a Carta marcou a escolha do Dia Nacional da Luta Antimanicomial: 18 de maio (II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, 1987). Simbolicamente – e não por acaso – no mesmo dia, nesse ano de 2020, outro marco se estabelece: a oficialização do desmonte no âmbito da política de saúde mental brasileira. O caminhar, agora, é no sentido do retrocesso.
A Portaria GM/MS nº 1.325, assinada pelo ministro interino da saúde no dia 18 de maio de 2020, extingue o serviço especializado criado no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) para acompanhar presos com transtornos mentais que são submetidos a medidas de segurança nas modalidades de internação em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) ou Alas de Tratamento Psiquiátrico (ATP) e de tratamento ambulatorial, nos moldes dos artigos 96, 97, 98 e 99 do Código Penal brasileiro. De acordo com o relatório do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), organizado pelo Ministério da Justiça, a população carcerária brasileira correspondia até o momento da coleta de dados a um total de 748.009 pessoas, dentre as quais 4.109 cumpriam medida de segurança na modalidade de internação e 250, na modalidade de tratamento ambulatorial (BRASIL, 2019).
Vulgarmente conhecidas como manicômios judiciários, as instituições que capturam esses corpos possuem característica híbrida, resultado da soma entre o discurso psiquiátrico e a ação repressiva jurídico-penal. Em que pese um longo histórico de violações exaustivamente denunciado, continuam se apresentando como espaços considerados legítimos para o recebimento de pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei. A manutenção dessas instituições, no bojo de um ordenamento jurídico que recepcionou uma reforma psiquiátrica e se comprometeu com a extinção gradativa de espaços com caráter asilar, desvela-se como um dispositivo de controle social, entrelaçado em uma noção de periculosidade atribuída a essas pessoas, que justifica sua reclusão mediante um exercício de futurologia – capaz de supostamente identificar no presente a prática de um delito ulterior (QUINAGLIA SILVA, LEVY e ZELL, 2020). A situação se torna ainda mais alarmante ao considerarmos que no Código Penal não existe qualquer previsão legal objetiva quanto ao tempo limite de internação daqueles que, “por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era[m], ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz[es] de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (BRASIL, 1940). A atribuição do caráter de periculosidade permite que o Estado lance mão do aparelho repressivo, encarcerando, não raramente, de forma perpétua esses indivíduos que deveriam ser isentos de pena.
A reforma psiquiátrica consubstanciou a promulgação da Lei nº 10.2016/2001, fruto de 12 anos de tramitação no Congresso Nacional e intensos debates. Em 2008, o Congresso Nacional aprovou a adesão do Brasil à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 2007. A lei foi sancionada pelo presidente da república através do Decreto nº 6.949/2009 e se aplica também às pessoas com transtornos mentais. Desde então, a possibilidade de decisão judicial de medida de segurança na modalidade de internação do doente mental autor de delito, prevista no Código Penal (1940), no Código de Processo Penal (1941) e na Lei de Execução Penal (1984) brasileiros, representa direta incompatibilidade com as previsões da Lei nº 10.216/2001, bem como com os regramentos constitucionais sobre a matéria, por abrir espaço para determinações judiciais arbitrárias que inserem esse indivíduo em um ambiente de completa exclusão social, por vezes perpetuamente, com caráter asilar e que não assegura a ele seus direitos mais básicos.
Para ‘solucionar’ essa antinomia entre as leis, deveriam se aplicar critérios baseados na anterioridade, especialidade e hierarquia, e, como resultado, deveria prevalecer a referida Lei da Reforma Psiquiátrica, além da Convenção, que tem força de emenda constitucional, possuindo, portanto, status superior às mencionadas legislações. Porém, na prática, e na contramão desse movimento, foram construídos mais hospitais-presídios após a vigência da Lei nº 10.216/2001 (DINIZ, 2013). Assim, apesar dos enormes avanços alcançados pela reforma psiquiátrica, mediante a promulgação de leis, a aprovação de convenções e a instituição de políticas públicas no sentido de atender a princípios básicos que, há muito, vinham sendo reivindicados pela luta antimanicomial, tais avanços não adentraram os muros das instituições manicomiais judiciárias. Essa dificuldade decorre em parte do caráter defasado e obsoleto das disposições do Código Penal brasileiro de 1940.
No sentido da busca pela concretização de ações programáticas em consonância com os direitos das pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei, o Decreto nº 7.037, de 2009, que aprovou o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH – 3), estabeleceu como objetivos estratégicos, inseridos na diretriz 16 (“modernização da política de execução penal, priorizando a aplicação de penas e medidas alternativas à privação de liberdade e melhoria do sistema penitenciário”):
Objetivo estratégico I:
Reestruturação do sistema penitenciário.
Ações programáticas:
[…]
e) Aplicar a Política Nacional de Saúde Mental e a Política para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas no sistema penitenciário.
Responsáveis: Ministério da Justiça; Ministério da Saúde
[…]
Objetivo estratégico III:
Tratamento adequado de pessoas com transtornos mentais.
Ações programáticas:
a) Estabelecer diretrizes que garantam tratamento adequado às pessoas com transtornos mentais, em consonância com o princípio de desinstitucionalização.
Responsáveis: Ministério da Justiça; Ministério da Saúde
b) Propor projeto de lei para alterar o Código Penal, prevendo que o período de cumprimento de medidas de segurança não deve ultrapassar o da pena prevista para o crime praticado, e estabelecendo a continuidade do tratamento fora do sistema penitenciário quando necessário.
Responsáveis: Ministério da Justiça; Ministério da Saúde
c) Estabelecer mecanismos para a reintegração social dos internados em medida de segurança quando da extinção desta, mediante aplicação dos benefícios sociais correspondentes.
Responsáveis: Ministério da Justiça; Ministério da Saúde; Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (BRASIL, 2009).
No âmbito legislativo, a consecução desses objetivos estratégicos não avançou. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) manifestou entendimento jurisprudencial no sentido de que o tempo de cumprimento da medida de segurança não deve ultrapassar o limite máximo da pena cominada em abstrato ao delito (STJ, 2015). Ainda assim, o Censo de 2011 sobre a Custódia e o Tratamento Psiquiátrico no Brasil encontrou, à época, 18 indivíduos internados em HCTP por mais de 30 anos e 606 indivíduos internados por mais tempo do que a pena máxima em abstrato prevista para o crime praticado (DINIZ, 2013).
Em termos de articulações no campo do SUS, foram promulgadas, em 2014, as Portarias GM/MS nº 94 e 95, normativas do Ministério da Saúde, vinculadas à Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP). Essas portarias instituíram o serviço de avaliação e acompanhamento de medidas terapêuticas aplicáveis às pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei, no âmbito do SUS, e criaram a Equipe de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP). A EAP constitui-se como mediadora entre os sistemas de saúde, de assistência e proteção social e de justiça. Qualquer pessoa que apresente transtorno mental e que esteja em conflito com a lei é considerada beneficiária do serviço. Essa equipe desenvolve um trabalho estratégico de produção de possibilidades de cuidado para pessoas em contextos cujo sofrimento é potencializado pelas medidas de segurança. Sua ação produz estratégias de liberdade para pessoas condenadas sob a chancela de uma ideia equivocada e estigmatizante de periculosidade, cujo resultado na prática é uma prisão de duração indeterminada e comumente perpétua.
Composta por uma equipe multiprofissional e interdisciplinar, a EAP inclui antropólogos e pesquisadores em ciências humanas e sociais, além de assistentes sociais, enfermeiros, médicos clínicos, psicólogos, advogados, farmacêuticos, pedagogos, pesquisadores em ciências da saúde e terapeutas ocupacionais. Dentre as atribuições dessa equipe, está a realização de avaliações biopsicossociais, com a apresentação de proposições fundamentadas na Lei nº 10.216/2001 e nos princípios da PNAISP. O objetivo é orientar a adoção de medidas terapêuticas, preferencialmente de base comunitária, a serem implementadas segundo um Projeto Terapêutico Singular (PTS), que envolve não apenas a pessoa com transtornos mentais em conflito com a lei, mas suas referências familiares e comunitárias. Nessa direção, o engajamento no cuidado é coletivo e as condutas terapêuticas estabelecidas são articuladas em rede. O acompanhamento ofertado pela EAP é integral, resolutivo e contínuo, visto que atua como dispositivo conector entre os órgãos de Justiça, as equipes da PNAISP e os programas e serviços sociais e de direitos de cidadania. Trata-se de um trabalho que ressurge como um caminho possível para a desinternação progressiva dessa população e, em última instância, ao evitar internações desnecessárias, para a extinção definitiva dos manicômios judiciários.
Assim, a EAP valoriza a atuação de inúmeros órgãos e atores institucionais relevantes para a construção de um projeto de vida digna para pessoas cujo conflito com a lei está associado a contextos pregressos de precariedade no acesso à saúde e a outras políticas sociais. Nesse sentido, o serviço da EAP é um importante canal de alternativas inovadoras para produzir pontes de acesso à singularidade de experiências de sofrimento de sujeitos reduzidos ao estigma da loucura e do conflito com a lei. É também um dispositivo importante de transformação dos contextos de violência e maus-tratos e de mortificação banalizados na experiência das instituições prisionais, assinalando a necessidade de ações estratégicas de atenção às pessoas em privação de liberdade e aos aspectos ligados à reabilitação e ao reconhecimento da dignidade humana da população sob a custódia do Estado, em especial das pessoas em sofrimento psíquico. Na prática, a EAP vem sendo o único canal de acesso do e no Estado para a proteção de uma população profundamente vulnerabilizada, propiciando, por meio de políticas públicas, aprendizados sobre a complexidade das experiências de cuidado que a resposta simplória do aprisionamento recusa…
A suspensão do serviço de avaliação e acompanhamento às medidas terapêuticas aplicáveis a essa população promovido pela Portaria GM/MS nº 1.325/2020 viola, assim, o direito à saúde e representa uma medida arbitrária, um flagrante retrocesso. Reafirma a reprodução de uma política de morte, em curso com o desaparelhamento dos equipamentos de apoio ao bem-estar de cidadãos brasileiros, cuja indiferença ao sofrimento das pessoas em cumprimento de medidas de segurança tem um elevado custo não apenas a elas, mas a uma coletividade que precisa do cuidado e da atenção a situações de vulnerabilidade como condição para a proteção da diversidade humana. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) recomenda, em consonância com outras manifestações de entidades como o Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais, que a Portaria GM/MS nº 1.325/2020 seja revogada e o serviço de avaliação e acompanhamento às medidas terapêuticas aplicáveis às pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei e seu custeio sejam imediatamente restabelecidos.
Referências:
BRASIL. Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009. Aprova o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, n. 244, Brasília, DF, p. 17, 22 dez. 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7037.htm. Acesso em 04 jun.2020.
BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. DEPEN. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN). 2019. Online. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-analiticos/br/br. Acesso em: 4 jun.2020.
DINIZ, Diniz. 2013. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: Censo 2011. Brasília: LetrasLivres; Editora Universidade de Brasília.
QUINAGLIA SILVA, Érica; LEVY, Beatriz Figueiredo; ZELL, Flávia Siqueira Corrêa. Mulheres perigosas: a dualidade desviante das loucas infratoras. Anuário Antropológico, v. 45, n. 2, p. 28-53, 2020.
STJ. Súmula 527, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 13/05/2015, DJe 18/05/2015.
Brasília, 08 de junho de 2020.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e sua Comissão de Direitos Humanos
Leia aqui a nota em PDF.