Em 29 de julho do corrente, o presidente da República fez declarações injuriosas sobre Fernando Santa Cruz, morto e desaparecido político durante a ditadura cívico militar brasileira (1964-1985). Três dias depois, no primeiro de agosto, foi anunciado no Diário Oficial o decreto que impôs uma mudança na composição da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), também assinado pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
A Associação Brasileira de Antropologia, através de sua Comissão de Direitos Humanos, vem a público manifestar seu repúdio e indignação com a política de insistente insulto moral e com medidas autoritárias contrárias às garantias para a luta pela memória, verdade e justiça em relação aos crimes de responsabilidade do estado no período ditatorial.
As declarações ofensivas do presidente se somam a um conjunto de expressões que, ao longo de toda sua trajetória política, incluindo a campanha eleitoral, vem desacreditando e questionando o movimento de direitos humanos, a luta por memória e verdade e, ainda mais, exaltando os crimes cometidos e seus responsáveis. Esse conjunto de declarações, também verificada para outros âmbitos de defesa dos direitos humanos, constituem uma política de insulto moral, inapropriada e condenável pela posição oficial que o mandatário ocupa.
No caso de Fernando Santa Cruz, pai do atual presidente da Ordem de Advogados do Brasil, o presidente afirmou “saber” sobre as condições de sua morte, um jovem então com 26 anos de idade. As afirmações do mandatário, não apenas envolvem uma ofensa à memória das vítimas, seus familiares e companheiros de luta, como também atacam a própria produção de documentos públicos por parte do Estado, que ele mesmo representa e que, através de diferentes instâncias, como a CEMDP, a Comissão Nacional da Verdade, entre outras, vêm, por dever legal (Leis 9.140/1995 e 12.528/2011, respectivamente), investigando e revelando informações sobre o aparato repressor do Estado. Esse trabalho, aliás, é desenvolvido à revelia do pacto de silêncio de agentes da ditadura que ainda mantém sob sigilo arquivos oficiais. Portanto, destaca-se que se o presidente detém dados sobre os eventos ocorridos é dever dele informá-los para as instâncias legais correspondentes.
Nessa linha, o decreto que impõe a mudança da maioria dos membros da CEMDP se apresenta como extremamente grave por diversos motivos.
Em primeiro lugar, porque ele é publicado dois dias depois da resposta de sua presidenta (destituída pelo decreto) em repúdio às declarações do presidente, evidenciando uma lógica de confronto e revanchismo pessoal inaceitável para um mandatório oficial.
Em segundo lugar, porque a mudança foi justificada apenas pela troca de governo e “ponto final”, como afirmado pelo presidente à imprensa, atrelando as substituições impostas ao fato do atual governo “ser de direita agora”. Essa explicação desconhece o caráter legalmente autônomo dessas comissões que são uma garantia constitucional de participação da sociedade civil, independente dos governos e partidos políticos. A designação de quatro novos membros, entre eles dois representantes do PSL, partido oficial, ambos com públicas declarações a favor do golpe de 64, e dois membros do Exército, um deles reformado e outro em atividade, representa essas instâncias como um “curral” ideológico e posiciona a política da verdade, memória e justiça dentro do paradigma da chamada “teoria dos dois demônios”, já rebatida no direito internacional.
Em terceiro lugar, porque, como argumentamos no caso das declarações sobre Fernando Santa Cruz, o decreto ataca, na lógica do confronto e do eterno dissenso, a produção pública de informação. Além dos documentos e investigações produzidos pela CEMDP, o presidente, na mesma tacada, classificou como “balela” o relatório da Comissão Nacional da Verdade. Essa desqualificação se soma a outros ataques já realizados pelo atual mandatário contra instituições públicas que produzem informação e conhecimento, como o IBGE, o INPE e a Fiocruz. É notória e grave a posição do governo de desacreditar a produção de conhecimento qualificado, em âmbitos diversos, e sua atitude persistente de aversão ao diálogo e ao debate público.
Enquanto Comissão de Direitos Humanos, integrada por antropólogos e antropólogas que fundam suas afirmativas na produção de conhecimento empírico e na interlocução com os atores envolvidos, repudiamos veementemente a série de declarações insultantes e ofensivas da luta por memória, verdade e justiça e apoiamos a continuidade do trabalho pela elucidação e memória sobre o passado. Ressaltamos, assim, a relevância para toda a sociedade brasileira das atividades das Comissões da Verdade e outros entes e grupos associados, bem como a importância das políticas públicas de reparação. E seu conjunto, todas essas ações são essenciais para o desenvolvimento de uma sociedade que valorize a memória como forma de justiça.
Brasília, 06 de agosto de 2019
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e sua Comissão de Direitos Humanos
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