Nota em apoio ao Termo de Compromisso firmado entre a comunidade guarani da Terra Indígena Kuaray Haxa e o ICMBio

A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), a Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) e a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) vêm a público manifestar seu apoio ao Termo de Compromisso (TC) firmado entre a comunidade guarani da Terra Indígena (TI) Kuaray Haxa e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), assim como manifestar seu repúdio às investidas contra o modo de vida guarani por parte de entidades preservacionistas.
O TC, assinado no dia 20 fevereiro deste ano, representa um importante passo no reconhecimento dos direitos territoriais da comunidade da TI Kuaray Haxa,  localizada entre os municípios de Antonina e Guaraqueçaba (PR), e para a gestão compartilhada da Reserva Biológica Bom Jesus, unidade de conservação que se sobrepõe à Terra Indígena Kuaray Haxa, ainda em processo de demarcação.
É extremamente preocupante que organizações que dizem ter como missão a defesa do meio ambiente venham atacar o documento em questão. Não apenas porque tais entidades também deveriam prezar pela garantia dos direitos indígenas, mas, sobretudo, porque inúmeras pesquisas que vêm sendo realizadas ao longo das últimas décadas indicam a importância do reconhecimento dos direitos territoriais e dos saberes indígenas para a proteção dos distintos biomas no país.
As contribuições dos povos indígenas e outros povos e comunidades tradicionais para a biodiversidade é precisamente o tema de um robusto diagnóstico organizado por Manuela Carneiro da Cunha, Sonia Magalhães e Cristina Adams, resultado de uma encomenda do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e viabilizado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que demonstra o papel fundamental de diferentes povos indígenas – inclusive os Guarani – para a conservação e regeneração ambiental, em todos os biomas brasileiros.
Outros estudos apontam há muito que as terras indígenas estão justamente  entre as áreas mais conservadas do país, já que os conhecimentos e as práticas das comunidades auxiliam na recuperação das matas e sua presença ajuda a inibir a permanência de madeireiros, garimpeiros, caçadores e outros invasores nesses territórios, tornando-os, assim, ainda mais protegidos do que aqueles que não possuem nenhuma população humana.
Assim, ao advogarem pela defesa das unidades de conservação de proteção integral, tais entidades não apenas deslegitimam a importância do reconhecimento dos direitos territoriais indígenas, como ainda parecem ignorar boa parte da pesquisa de ponta realizada nos últimos anos. 

O ponto talvez mais grave, entretanto, é que parte dessas entidades, em seu afã de defender as unidades de conservação de proteção integral, sugere que a área não seria território tradicional do povo Guarani. Isso porque a ocupação atual da área onde se localiza a aldeia data de 2012. Cabe-nos, portanto, relembrar que a presença do povo Guarani no litoral do Paraná é constatada desde o início do processo de colonização, havendo farta documentação que comprova isso. A ausência das comunidades ali nesse período, assim, só se explica pelo longo e violento processo de esbulho vivido pelo povo Guarani – que, apesar disso, sempre manteve seus caminhos e assentamentos em meio às matas da região, buscando manter distância dos não indígenas e de seu modo de vida. Tais entidades acabam se alinhando com a “tese do marco temporal”, defendida por representantes do agronegócio, da exploração madeireira e da mineração, principais responsáveis pela degradação ambiental em nosso país. Isso porque tal tese, já criticada por diversas vezes por nós e declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), justamente busca retroceder os direitos territoriais indígenas, tornando suas terras aptas à exploração econômica, ao estabelecer que  povos e comunidades indígenas deveriam se encontrar presentes em seu território em 1988, apagando, assim, todo o passado de violências e expulsões sofridos pelos mesmos.
Ao longo dos últimos dez anos, os indígenas passaram a sofrer com uma série de restrições ao usufruto do seu território em função de um pedido de reintegração de posse movido pelo ICMBio, responsável pela gestão da Reserva Biológica Bom Jesus, que foi instituída em 2012. Em outras ocasiões, uma de nós (a ABA) já se manifestou a respeito dos direitos de comunidades que habitam territórios tradicionalmente ocupados e que foram sobrepostos por unidades de conservação de proteção integral sem nenhuma consulta prévia àquelas comunidades e sem resguardar seus direitos, como no caso da comunidade do Rio Verde, sobreposta pela Estação Ecológica Jureia-Itatins.
Após o poder judiciário indeferir o pedido de reintegração de posse feito pelo órgão ambiental, iniciou-se um longo processo de tratativas entre a comunidade indígena e o ICMBio, que culminou no acordo sobre a gestão compartilhada da área. Em nota publicada em março de 2025, o próprio ICMBio reconhece que o acordo é um importante instrumento na compatibilização entre o direito dos povos indígenas e o direito ambiental, e que, nos termos do acordo, a presença indígena é uma aliada e não uma inimiga da conservação. Trata-se de um avanço significativo no reconhecimento por parte do Estado brasileiro da importância das contribuições dadas pelos conhecimentos e práticas tradicionais do povo Guarani, e suas formas próprias de gestão territorial, à proteção da Mata Atlântica.
Tendo isso em vista, as associações científicas signatárias vêm novamente reafirmar seu apoio ao povo Guarani e ao Termo de Compromisso firmado pela comunidade de Kuaray Haxa com o ICMbio, se colocando ao lado das demais organizações, indígenas e não indígenas, que prezam pelo respeito ao reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas, pela importância de avançar nas políticas de gestão compartilhada de áreas protegidas superpostas e contra qualquer tentativa de estabelecer um marco temporal que venha a restringir os direitos indígenas.

Brasília, 05 de junho de 2025.


Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Associação Brasileira de Ciência Política
(ABCP), Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) e a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS)

Leia aqui a nota em PDF.

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