Nota pelo direito à memória e ao luto das vítimas da chacina do Jacarezinho

A Associação Brasileira de Antropologia, através de sua Comissão de Direitos Humanos; do Comitê de Antropólogas/os Negras/os; do Comitê de Cidadania, Violência e Gestão Estatal; e do Comitê de Patrimônios e Museus, expressa seu repúdio à demolição do memorial às vítimas da “chacina do Jacarezinho” e exige a garantia, por parte do Estado, do direito à memória e ao luto dos familiares das vítimas, da comunidade e da sociedade de forma geral.

No dia 06 de maio de 2022 completou-se um ano da chacina policial ocorrida na favela do Jacarezinho, a mais letal da história da cidade do Rio de Janeiro, que resultou na morte de 28 pessoas, dentre elas um policial civil. Essa ação, realizada pela Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE) da Polícia Civil do Rio de Janeiro (PCERJ), foi denominada “Operação Exceptis”, em uma clara afronta à decisão do STF de restringir as operações policiais no âmbito da ADPF 635, que já apontava para o desrespeito das forças policiais aos poderes judiciários, assim como o aprofundamento do processo de autonomização destas frente aos poderes eleitos. A chacina do Jacarezinho veio a se somar às 593 chacinas policiais ocorridas entre 2007-2021 e suas 2374 mortes, sendo desta maneira o ponto culminante e evento emblemático da reincidência de chacinas oficiais, que neste período foram três vezes mais frequentes que as chacinas perpetradas por grupos armados.

Frente a este cenário, moradores, familiares de vítimas e movimentos sociais prestaram homenagem aos mortos do dia 6 de maio de 2021. Na ocasião, foi realizado um ato pelas vítimas com faixas, mensagens pintadas nas paredes e asfalto e a inauguração de um monumento em memória do ocorrido no qual cada um dos 28 mortos era lembrado. A placa maior continha os inscritos “Homenagem às vítimas da Chacina do Jacarezinho! Em 06/05/2021, 27 moradores e um servidor foram mortos, vítimas da política genocida e racista do Estado do Rio de Janeiro, que faz do Jacarezinho uma praça de guerra, para combater um mercado varejista de drogas que nunca vai deixar de existir. Nenhuma morte deve ser esquecida. Nenhuma chacina deve ser normalizada.”

Cinco dias depois, no dia 11 de maio de 2022, em uma operação policial oficial, a própria Polícia Civil, uma vez mais através da CORE, sem nenhum diálogo prévio com os responsáveis pela instalação do memorial, nem com autorização judicial, realizou a derrubada do monumento, uma parede de cerca de 170x150cm pintada em azul com placas em prata e preto. A retirada foi de cada uma das placas instaladas, a maior e outras 28 placas menores com nomes das vítimas e em algumas delas informações sobre datas de nascimento e morte. Depois de usarem pés de cabra, os policiais civis uniformizados e utilizando coletes à prova de balas, amarram uma corda para a derrubada final com o memorial sendo levado ao chão ao ser puxado pelo veículo blindado, apelidado de Caveirão. A justificativa de tal ação foi a não autorização da prefeitura para a construção do monumento, assim como a crítica anterior da família do policial civil de que seu nome constasse junto aos moradores de favela assassinados. Cabe destacar que para os organizadores da construção do memorial a homenagem ao policial seria uma maneira de construção de memória coletiva dos fatos e das ações brutais que tem marcado as políticas de segurança pública.

Imagens da demolição do patrimônio local, construído pela própria comunidade para combater o esquecimento e a impunidade que têm marcado o caso – das 27 mortes provocadas pela polícia, apenas 3 seguem em investigação; todas as demais foram arquivadas pelo próprio Ministério Público do Rio

de Janeiro através do argumento de que houvera resistência policial – circularam rapidamente pelas redes sociais. Se, por um lado, parte da comoção se deu em solidariedade às vítimas e seus sobreviventes; por outro, foram expressas demonstrações de apoio à ação de derrubada, diante da presença do nome do policial morto junto às demais vítimas, acusados desde a data da chacina como “bandidos”, “traficantes” e “criminosos”. O uso eleitoral dos símbolos do sofrimento, utilizados por policiais e políticos candidatos, bastante recorrentes em regimes autoritários, aponta para o reforço das representações que se baseiam na construção das figuras dos inimigos internos a serem desumanizados e potencialmente eliminados.

Neste sentido, é importante marcar que as duas ações da CORE no intervalo de um ano, expressam, cada qual da sua maneira, o reforço do racismo institucional, voltando-se contra as vítimas; todos homens, em sua maioria negros, cujas vidas são tomadas como precárias e não dignas e que, por consequência, tem o reconhecimento de sua humanidade negado mesmo depois de sua morte.

A ação policial confronta diretamente a expressão do direito à memória por familiares, moradores e militantes e expõe a violência estatal acionada contra os mortos e seus sobreviventes, ao impedir a expressão do luto pela lembrança e homenagem às vítimas. Tal ação configura um ataque aos direitos humanos, expressando valores autoritários por interditar à comunidade o direito de lembrar os fatos ocorridos na chacina do Jacarezinho. Assim, além de atacar individualmente cada um dos mortos e seus entes, a demolição do memorial também ataca, por meio de um novo ato violento, a memória coletiva, evidenciando que esta é parte do campo de disputas pela hegemonia de poder nos territórios de favela.

Brasília, 20 de maio de 2022.

Associação Brasileira de Antropologia (ABA); sua Comissão de Direitos Humanos; seu Comitê de Antropólogas/os Negras/os; seu Comitê de Cidadania, Violência e Gestão Estatal; e seu Comitê de Patrimônios e Museus

Leia aqui a nota em PDF.

 

 

 

 

Skip to content