A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) manifesta sua apreensão sobre a situação do casal Edmilson de Lima Prado e Karina Ferro Otsuka e de seu filho de seis meses de idade, Martim Ferro do Prado, cuja habitação em local tradicionalmente ocupado por eles e seis gerações de seus ancestrais está sob ameaça iminente de destruição por ato da Fundação Florestal e da Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo com base no expediente de “tutela possessória administrativa”. O ato expedido pelos órgãos ambientais foi suspenso após decisão liminar obtida em processo judicial, decisão essa questionada pelo Estado de São Paulo e pela Fundação Florestal em recurso de agravo de instrumento. A data de julgamento no Tribunal de Justiça está prevista para 16 de julho de 2020. O caso é particular, mas é emblemático de uma situação mais ampla que diz respeito aos direitos de comunidades tradicionais que habitam territórios tradicionalmente ocupados e que foram sobrepostos por unidades de conservação de uso restrito sem consulta prévia a comunidades tradicionais e sem resguardar seus direitos: no caso, a comunidade do Rio Verde é sobreposta pela Estação Ecológica Jureia-Itatins.
Eis um sucinto relato dos antecedentes do caso.
O Juízo da Comarca de Iguape (SP) garantiu liminarmente o direito de permanência da família de Edmilson em sua habitação e interditou a demolição prevista pela Fundação Florestal de sua residência, ação violenta que daria continuidade à destruição de duas outras casas de caiçaras, primos de Edmilson. A destruição dessas casas caiçaras, sem ordem judicial, baseou-se no controvertido procedimento de “autotutela possessória administrativa” – ato que não permite defesa dos atingidos nem interveniência do judiciário. Contra esse ato de violência, a liminar do Juízo de Iguape, apoiada em extenso laudo antropológico, afirmou que, mesmo que se tratasse de “invasores” – alegação contrária aos fatos –, competiria cautela à Fundação Florestal, já que havia fortes riscos de promoção de danos sociais irreparáveis. E de fato, em audiência promovida pelo Juízo de Iguape meses depois, a própria Fundação Florestal reconheceu a tradicionalidade da família caiçara de Edmilson, Karina e Martim, reconhecendo assim que não se trata de “invasores” e sim membros de comunidades tradicionais.
Ora, segundo princípios da Constituição de 1988 e da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), famílias caiçaras, enquanto parte de comunidades tradicionais, têm direitos de viver em territórios tradicionalmente ocupados necessários à sua identidade cultural e seus modos de vida, e não poderiam ser privadas desses direitos sem seu assentimento por meio de consulta prévia. Disposições ambientais derivadas do SNUC em 2000 não cancelam esse princípio, conforme doutrina afirmada pela Dra. Deborah Duprat (ex-Procuradora da República), que aplica o princípio ao caso em pauta. Essa posição é também defendida por autoridades antropológicas como Alfredo Wagner Berno de Almeida e outros especialistas.
No entanto, desde a criação da Estação Ecológica Jureia-Itatins, no ano de 1986, sem consulta prévia às comunidades tradicionais locais, pelo menos 13 comunidades tradicionais foram inteiramente removidas – segundo dados oficiais – e as que permanecem continuam sujeitas à pressão continuada de uma política que pode ser chamada de expulsão por cansaço, mediante restrições sobre as práticas de reprodução cultural, social e econômica das comunidades.
Não há hoje contestação de fato ou de direito sobre o caráter comunitário e tradicional da família extensa dos Prado na Jureia da qual descende diretamente Edmilson. De fato, a família Prado tem sua existência, precisamente no local hoje em questão, atestada em registros de posse depositados na paróquia da cidade de Iguape (SP) em decorrência da célebre Lei de Terras de 1850. Nesses registros, consta com efeito a concessão pelo Império de direitos territoriais à hexavó de Edmilson (isto é, há seis gerações), além de documentação oficial e oral até os dias atuais sobre a presença perene da família no território do Rio Verde. Além disso, mesmo sem essas evidências, os direitos da família à permanência em seus territórios tradicionais são assegurados inquestionavelmente pela própria legislação ambiental que rege o atual Mosaico de Unidades de Conservação da Jureia-Itatins, já que essa família cumpre todos os requisitos para o reconhecimento da tradicionalidade estabelecidos pela mesma lei.[1]
Restaria perguntar se o reconhecimento dos direitos da comunidade é recomendável sob o ponto de vista ambiental. Cabe lembrar em primeiro lugar que tradicionalidade, segundo o consenso antropológico, não significa imutabilidade cultural, mas sim a continuidade de identidades, hábitos e territorialidades ao lado de permanentes inovações sem as quais tais comunidades não poderiam existir em ambientes sociais e naturais em mudança. Em particular, no caso da família de Edmilson e Karina, e do grupo de parentela constituído pela família extensa dos Prado, a importância da conservação ambiental é enfatizada no Plano de Uso Tradicional Caiçara (PUT) no qual se baseou a construção de residências em antigas taperas caiçaras. Nesse Plano, que embasa as regras de vida da família, regras tradicionais de uso do território são apoiadas, com vista a objetivos de sustentabilidade, em dois anos de intensa pesquisa de cientistas da USP, UNICAMP, UFABC e outras instituições públicas juntamente com equipes de jovens caiçaras com treinamento em nível de pós-graduação em ecologia histórica e interpretação de imagens fotográficas e de sensoriamento remoto. O Plano de Uso Tradicional expressa o compromisso dos caiçaras organizados na Associação dos Jovens da Jureia e na União dos Moradores da Jureia com a conservação ambiental, em continuidade com sua presença secular na região que em nada afetou a riqueza ambiental desse precioso território.[2]
Esperamos portanto, com base na ampla documentação histórica, ecológica e cultural em apoio aos direitos territoriais dos caiçaras da Jureia e em particular da família de Edmilson e Karina, com respaldo da Convenção 169 da OIT, da Constituição de 1988 e do Decreto nº 6040/2007, afirmando direitos de povos e comunidades tradicionais, e em consonância com o conhecimento antropológico, que a justiça reconheça (1) a tradicionalidade da família caiçara de Edmilson, e (2) os direitos daí decorrentes para sua existência material e cultural associada ao território tradicionalmente ocupado secularmente pela comunidade à qual pertence. Lembrando ainda que (3) como alternativa para medidas autoritárias de expulsão e destruição de residências, há o caminho aberto para arranjos legais que reconheçam a presença de caiçaras na Estação Ecológica Jureia-Itatins, apoiados em acordos internacionais, legislação nacional constitucional e na lei específica do Mosaico que, através de seus artigos 6o e 7o, permitem a residência de moradores tradicionais na área. Essa via de mitigação dos conflitos está na possibilidade de obtenção de regras consensuais e acordadas entre as partes, as quais estão em curso no Juízo de Iguape (SP) e que, pelos motivos levantados, deveriam prosseguir.
Finalmente, lembramos que decisão jurídica sobre esse caso tem grandes implicações para a efetivação do reconhecimento de direitos de comunidades tradicionais em semelhante posição de risco.
Brasília/DF, 10 de julho de 2020.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA, seu Comitê Povos Tradicionais Meio Ambiente e Grandes Projetos e seu Comitê Patrimônio e Museus
Leia aqui a nota em PDF.
[1] Lei Estadual nº 14.982/2013. A Estação Ecológica Jureia-Itatins, criada em 1986 sobre toda região da Jureia, tornou-se um Mosaico de Unidades de Conservação posteriormente, mantendo-se, ao lado de outras unidades como Parques Estaduais e Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), como área de proteção integral. Observe-se que as RDS’s contemplaram apenas duas comunidades tradicionais na Jureia das 22 identificadas por órgãos do Estado em princípios da década de 1980.
[2] O PUT foi realizado através das associações representativas dos caiçaras, União dos Moradores da Jureia (UMJ) e Associação dos Jovens da Jureia (AJJ), as quais partiram de conhecimentos tradicionais caiçaras e de parcerias acadêmicas com biólogos, ecólogos, especialistas em geoprocessamento e antropólogos das universidades públicas de São Paulo (UNICAMP, USP e UFABC) para elaborar um instrumento que visa tanto a conservação ambiental como a efetivação dos direitos das famílias tradicionais habitantes do Rio Verde. O documento é acessado mediante consulta direta às associações mencionadas.