A Associação Brasileira de Antropologia, por meio da Comissão de Direitos Humanos e do Comitê Cidadania, Violência e Gestão Estatal, vem a público demonstrar preocupações com a atuação das forças de segurança pública no estado do Amazonas.
Segundo informações de reportagem investigativa publicada na Folha de São Paulo, pelo menos 7 (sete) pessoas foram executadas por membros da Polícia Militar na cidade de Tabatinga/AM, entre os dias 12 e 13 de junho de 2021. As vítimas, homens negros e descendentes de indígenas, tinham entre 17 e 27 anos. Um deles foi morto em sua própria casa, dois na rua e três encontrados no lixão da cidade com sinais de tortura e decapitação. Todas as mortes ocorreram horas após a de um policial militar divulgada, inicialmente, como latrocínio.
Essa não é a primeira acusação de chacina na atual gestão da Segurança Pública do Governo do Amazonas. Em outubro de 2019, 17 (dezessete) pessoas foram mortas no bairro Crespo, zona sul de Manaus, em uma operação policial. As vítimas tinham entre 14 e 28 anos. Os indícios de chacina, negados pelo inquérito da Polícia Civil, foram descritos em relatório do Ministério Público do Estado do Amazonas: pessoas mortas sem sinal de pólvora nas mãos; tiros “precisos, certeiros e fatais” disparados à noite em local sem energia elétrica; nenhuma pessoa presa ou policial ferido; e corpos retirados do local antes da perícia.
Em agosto de 2020, um confronto na região do Rio Abacaxis, município de Nova Olinda do Norte/AM, provocou a morte de 2 policiais durante operação da Polícia Militar. Nas semanas seguintes, nova ação policial foi realizada e o Ministério Público Federal recebeu diversos relatos de abuso e violação de direitos contra populações tradicionais. Em nota assinada por dezenas de entidades, a Comissão Pastoral da Terra denunciou a morte de 5 (cinco) pessoas, entre elas “um indígena da etnia Munduruku, três ribeirinhos e um suposto traficante, além do desaparecimento de dois adolescentes e de um indígena Munduruku, e seis pessoas feridas”. Por determinação judicial, a Polícia Federal interveio e tropas da Força Nacional de Segurança Pública foram enviadas ao local.
Esses acontecimentos tornam temerosa a informação de que, entre os dias 7 e 18 de junho deste ano, 55 (cinquenta e cinco) pessoas morreram violentamente em Manaus. A notícia (veiculada pelo Jornal do Amazonas de 21 de junho) que apresenta esses números traz também o dado oficial de que 82 (oitenta e duas) pessoas foram presas no mesmo período. Os números foram registrados dias depois de uma série de incêndios a ônibus, monumentos e bancos, além de explosões em delegacias, atribuídas a um coletivo criminal. Os ataques justificaram, novamente, o envio da Força Nacional de Segurança Pública, desta vez à Manaus, e uma operação conjunta das polícias civis do Amazonas, do Pará e do Rio de Janeiro, a “Coalizão do Bem”. Enquanto no Rio a operação matou um jovem de 16 anos com um tiro na cabeça, em Manaus matou um homem de 50 anos, pai de uma das pessoas procuradas. Em resposta à denúncia da família sobre a arbitrariedade da ação, a Polícia Civil do Amazonas declarou: “o que nos é mais grave é dar para a população de bem tranquilidade. Infelizmente, se for necessário, nós temos que agir com contundência, porque hoje infelizmente aconteceu a perda dessa vida, mas poderia ter sido de qualquer um, de um filho nosso, de um policial, uma pessoa que dedica a vida, dá a vida em prol da segurança da população amazonense”.
Chama igualmente nossa atenção a gestão do sistema carcerário amazonense, administrado por policiais militares. Há mais de dois anos, movimentos sociais têm apresentado aos órgãos de fiscalização informações concretas de uma política cotidiana de violência e terror. Corroborando essas denúncias, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura relatou, em maio de 2020, que os maus tratos reportados estavam “orientados sob uma mesma perspectiva de humilhação, violação de direitos e violência, travestido de ‘disciplinamento e segurança’”. Em março de 2021, a Frente Estadual pelo Desencarceramento do Amazonas verificou, por meio de inspeção, que a administração penitenciária havia colocado, por uma semana, presos de facções rivais no mesmo pavilhão do Instituto Penal Antônio Trindade (IPAT).
Sabemos que os fatos ocorridos no Amazonas não são isolados e se observam em outros lugares de norte ao sul do país. Após quase quatro décadas de construção de instituições e mecanismos de controle do exercício policial, o que experimentamos no Brasil não parece ser uma situação de fraqueza estatal. A cada chacina, no Jacarezinho, Crespo, Abacaxis ou Tabatinga; a cada justificativa institucional para as mortes, o que percebemos é o fortalecimento de uma política de segurança pública dirigida para o extermínio de pessoas pobres e periféricas, negras, indígenas e suas descendentes, sob a justificativa da proteção dos “cidadãos de bem”. O velho princípio “bandido bom é bandido morto” é anunciado como “lei”: “A ordem é pra matar”. Nas ruas, essas expressões compõem os relatos de testemunhas das chacinas e, nas prisões, expressam-se em denúncias de estímulo aos confrontos letais entre facções.
A Associação Brasileira de Antropologia se solidariza com as famílias, amigos e amigas das vítimas de Tabatinga, Crespo e Abacaxis e se soma aos movimentos de defesa dos direitos humanos e de combate à tortura para exigir das instituições estaduais e federais de controle uma atuação incisiva e célere na apuração das denúncias, uma rigorosa coação da violência estatal e o fortalecimento urgente do controle democrático da atividade policial.
Brasília, 13 de julho de 2021.
Associação Brasileira de Antropologia (ABA), sua Comissão de Direitos Humanos e seu Comitê Cidadania, Violência e Gestão Estatal
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