Ao tomar conhecimento de significativas tensões geradas entre indígenas xavante, oriundas de procedimentos de combate à COVID-19 por parte do governo, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), juntamente com a sua Comissão de Assuntos Indígenas (CAI), vem fazer algumas considerações a respeito da “Missão de Saúde Xavante”.
Cabe observar que dentre os 315 povos indígenas existentes no país, os Xavante, que possuem suas terras no leste mato-grossense, têm sido os mais impactados em termos de taxas de letalidade pela pandemia do novo coronavírus, mesmo levando-se em conta exclusivamente as notificações divulgadas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). Os dados mais recentes divulgados pelo DSEI-MT em 11.08.2020 indicavam 425 casos confirmados de contaminação pela COVID-19 e 34 óbitos, o que implica na taxa de letalidade de 8%, a mais alta não só entre os povos indígenas, como entre os não-indígenas. Para que se possa ter uma ideia, a taxa de letalidade atual no mundo é de 3,65%, no Brasil é de 3,3% e no Mato Grosso, 3,25%. Diante do agravamento do quadro sanitário dos povos indígenas de maneira generalizada diante da omissão governamental, o Supremo Tribunal Federal determinou em julho que o Governo Federal tomasse medidas de assistência à saúde indígena. Atendendo a esta exigência, coordenada pelo Ministério da Defesa, montou-se uma missão composta por membros das três forças armadas (Aeronáutica, Exército e Marinha), da FUNAI e da SESAI, para colocar em prática uma ação emergencial nas terras indígenas Xavante para apoio a assistência sanitária (ação estendida também aos Karajá e outros grupos indígenas da Amazônia). O referido “apoio” envolveu, segundo notas oficiais do Ministério da Defesa divulgadas no site da SESAI, a participação direta de pessoal das Forças Armadas para o transporte terrestre e aéreo de insumos hospitalares (EPIs e medicamentos), cestas básicas, além das equipes multidisciplinares do DSEI e de profissionais de saúde vinculados às próprias Forças Armadas. Aparentemente a falta de esclarecimento prévio e informado da ação junto às comunidades, gerou, segundo lideranças xavante, situações de constrangimento, confusão e amedrontamento diante da presença ostensiva e repentina de muitos militares, inclusive, com sobrevoos de helicópteros pelas aldeias. Ainda segundo relatos Xavante, em uma das terras ocorreu um incidente que merece averiguação: lideranças locais xavante, descontentes com a falta de esclarecimento da atuação da missão, não teriam permitido a entrada da mesma em algumas aldeias. Diante do ocorrido, atendendo a uma solicitação da FUNAI, um procurador federal teria intimado formalmente lideranças xavante a assinar um documento pelo qual deveriam assumir possíveis mortes nas aldeias. Outros relatos mencionam o fato da “missão” ter chegado muito tardiamente (já que contabilizam dezenas de óbitos e centenas de infectados), a distribuição de hidrocloroxina em aldeias e intervenções médicas não associadas diretamente a complicações causadas pela COVID-19 (consultas obstétricas e ginecológicas). Importante ressaltar que o apoio excepcional das Forças Armadas à assistência à Saúde indígena neste momento dramático pode ser considerado bem-vindo desde que observado alguns pressupostos: 1) que as comunidades indígenas atendidas sejam esclarecidas de maneira prévia, livre e informada (conforme orienta a Convenção 169 da OIT) sobre os objetivos das missões nas terras indígenas; 2) sejam respeitadas todas as medidas de segurança sanitárias implicadas neste tipo de ação (testagem da equipe, uso de EPIS); 3) que as ações de intervenção médica prioritariamente tenham como foco a sintomática e as complicações derivadas da COVID-19 e de potenciais comorbidades que agravam tais quadros infecto-contagiosos; 4) que as equipes de apoio militares vinculadas à missão em hipótese alguma permaneçam nas terras indígenas; 5) que em hipótese alguma sejam desrespeitadas as garantias constitucionais destes povos referente aos seus usos do território, costumes e tradições conforme assegurado no Artigo 231 da CF de 1988; 6) por fim, que a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal em Brasília possa recolher informações mais detalhadas e consistentes sobre as atividades realizadas pelas missões de assistência à saúde nas áreas indígenas, permitindo assim o monitoramento e a transparência das referidas ações, como também, a averiguação das denúncias que foram apontadas por lideranças indígenas.
Brasília, 17 de agosto de 2020.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e sua Comissão de Assuntos Indígenas – CAI
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