O Comitê Deficiência e Acessibilidade da ABA (CODEA-ABA) vem a público manifestar sua posição contrária ao acondicionamento da prioridade das pessoas com deficiência à vacinação contra a Covid-19 ao critério do Benefício da Prestação Continuada (BPC) e à escolha de um tipo de deficiência em detrimento de outras. Na nossa perspectiva, hierarquizar deficiências e colocar como critério o BPC, inclusive em um momento de diminuição de beneficiários, contribui para uma restrição do acesso à saúde que não condiz com a realidade das diversas deficiências que se caracterizam como prioritárias.
O acesso à saúde pública, universal e gratuita é um direito de todos garantido pela Constituição Federal. A vacinação ampla, geral e gratuita contra a Covid-19 é um direito de todos os brasileiros e brasileiras. No entanto, a atitude negacionista do governo brasileiro contra a Ciência negou-lhes esse direito, levando à morte, até a data de 23 de maio de 2021, de cerca de 449 mil pessoas no país.
Esse cenário, onde a quantidade de vacinas disponíveis não é capaz de atender toda a população brasileira no momento, gerou a necessidade de eleger grupos prioritários para a vacinação, como as pessoas idosas e as pessoas com deficiência. No entanto, a mesma escassez provocada pela má gestão e ingerência de Bolsonaro no setor da saúde levou a disputas e antagonismos em torno de quem será imunizado primeiro, restringindo o acesso das pessoas com deficiência a esse direito.
A negação dos direitos das pessoas com deficiência à vacinação contra a Covid-19 viola frontalmente o artigo 11º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto nº 6.949/2009), tratado internacional no qual o país é signatário e que assume um status constitucional no ordenamento jurídico pátrio, quando obriga todos os Estados-Parte a tomar todas as medidas necessárias para salvaguardar os direitos das pessoas com deficiência em situações de risco ou de emergência humanitária como uma pandemia.
Do mesmo modo, é violado o direito ao atendimento prioritário assegurado às pessoas com deficiência pelos artigos 9º e 10 da Lei Brasileira de Inclusão – LBI (Lei nº 13.146/2015). Este direito, além de amparado na LBI como uma obrigação do Estado, justifica-se na medida em que as pessoas com deficiência convivem com várias especificidades de saúde que as levam a situações de maior risco de contaminação pelo vírus Sars-Cov-2, causador da Covid-19.
Há pessoas com deficiência que convivem com diversas comorbidades que, isoladamente, não permitem o acesso à vacina da forma como foi proposta pelo Plano Nacional de Imunização, mas que, em conjunto, podem trazer graves danos à sua saúde e com isso potencializar os efeitos de uma eventual infecção pela Covid-19.
Pessoas com deficiência que necessitam de maior suporte para a realização de suas atividades cotidianas estão em maior contato com outras pessoas e, consequentemente, podem vir a contaminar ou serem contaminadas por suas/seus cuidadoras/es. Em muitos casos, também as/os cuidadoras/es são um grupo vulnerável em si, enquanto trabalhadoras/es informais, pobres e negras/os. As/os cuidadoras/es muitas vezes precisam, por exemplo, circular em vários espaços para garantir as necessidades básicas das pessoas com deficiência em busca de medicamentos, consultas médicas, fraldas e outros itens de higiene, o que leva à sua maior exposição à Covid-19. Nesse sentido, trazemos também a necessidade de priorizar a vacinação às pessoas cuidadoras de pessoas com deficiência.
Pessoas com deficiência que recebem tratamentos de saúde podem contaminar outras pessoas a caminho dessas atividades, muitas vezes essenciais para a sua vida, ou durante a realização desses atendimentos. A negação do direito à prioridade da vacina implica o impedimento quase compulsório aos tratamentos de saúde, influenciando, por sua vez, na degradação de sua condição de vida.
Pessoas com deficiência física ou motora que têm sua mobilidade reduzida estão em maior contato com superfícies e, consequentemente, apresentam maior exposição à Covid-19. Da mesma maneira, são vulneráveis à Covid-19 as pessoas autistas que não podem utilizar máscaras por conta da hipersensibilidade sensorial; as pessoas surdas que têm impedidas sua comunicação por leitura labial ou em língua brasileira de sinais por causa de máscaras opacas; as pessoas cegas que têm necessidades de tocar humanos e objetos para orientar sua identificação, locomoção e mobilidade; as pessoas com síndrome de Down apresentam várias comorbidades associadas à sua condição; as pessoas tetraplégicas que têm problemas respiratórios de maior ou menor intensidade, a depender do tipo de lesão medular; dentre outras.
Portanto, sob os mais variados critérios, em variadas circunstâncias é plenamente justificado a inclusão e o acesso das pessoas com deficiência entre os grupos prioritários para a imunização ao novo coronavírus.
Além disso, conforme já dito, a restrição do acesso à vacina somente às pessoas com deficiência que recebem o BPC não possui qualquer fundamento. Essa exigência traduz uma visão assistencialista da deficiência que deve ser combatida porque o direito à vacina, neste caso, decorre do direito à saúde, não sendo este um objeto da assistência social. A exigência de recebimento do BPC para o acesso ao direito à vacinação é injustificada e discriminatória. Discrimina a pessoa com deficiência com relação aos demais membros da sociedade que não têm o exercício de seu direito impedido em função de critérios assistencialistas de renda e da condição própria de beneficiário da previdência social. Também estabelece discriminação entre as próprias pessoas com deficiência em razão de sua renda, o que tampouco é justificado ou permitido por lei.
O CODEA-ABA manifesta também sua preocupação frente à prioridade dada somente às pessoas com a síndrome de Down. Essa medida, da forma como foi tomada, sem que haja perspectiva para a vacinação do conjunto das pessoas com deficiência, estabelece gradação entre as pessoas com deficiências, sinalizando que algumas categorias são mais importantes que outras para o sistema de saúde pública. Nesse quesito, apoiamos também a carta lançada pelo GT Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) sobre a vacinação contra a Covid-19 para pessoas com deficiência intelectual, e defendemos a ampliação da prioridade para todas as pessoas com deficiência, sem qualquer distinção por tipo de deficiência.
Consideramos que todo esse cenário é agravado por outros fatores, como a ausência de um instrumento único de avaliação da deficiência, obrigação esta que também não está sendo plenamente cumprida pelo governo federal, assim como a dificuldade de acesso de parte da população com deficiência aos serviços de saúde que lhe permitam saber e atestar sua condição de pessoa com deficiência. Diante de todo o exposto, exigimos uma política pública que considere e proteja amplamente todas as pessoas com deficiência.
Brasília, 24 de maio de 2021.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e seu Comitê Deficiência e Acessibilidade
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