A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), por meio de sua Comissão de Direitos Humanos (CDH) e perante os ataques armados com vítimas fatais a duas escolas do município de Aracruz (ES) em 25 de novembro de 2022, vem a público chamar a atenção para a recorrência de tragédias como esta em instituições de ensino brasileiras, não configurando, portanto, evento isolado o ocorrido no estado do Espírito Santo.
Apenas para recordar acontecidos que receberam repercussão midiática nacional, em 2011 houve o chamado massacre de Realengo, na escola municipal Tasso da Silveira que fica na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro (RJ); em 2017, o incêndio criminoso na creche municipal Gente Inocente de Janaúba (MG); nesse mesmo ano, o ataque armado ao colégio privado Goyases, em Goiânia (GO); em 2018, a mesma espécie de atentado se repetiu na escola estadual João Manoel Mondrone, em Medianeira (PR); e em 2021 um ataque à faca se deu na creche municipal Aquarela, em Saudades (SC). Por conteúdo noticioso local, sabe-se, porém, que vários outros episódios de menor monta estão sendo intentados ou colocados em prática e o fato de não gerarem vítimas não os torna menos graves e dignos de providências.
Os resultados das investigações desses casos sinalizam características de forma nesses crimes que não podem mais ser ignoradas pelas autoridades. Como publicamente sabido, tais ocorrências surgem recorrentemente capitaneadas por jovens homens brancos, que tinham a predileção por jovens mulheres como alvos e que, não raro, mantinham conexões com redes misóginas na Dark Web, que comporta sites e redes não indexados por mecanismos de busca, em sua quase totalidade dirigidos a práticas criminosas. Mais recentemente, constata-se a articulação dos homicidas a pautas discriminatórias e armamentistas de extrema direita defendidas pelo atual governo no poder executivo.
Como se não bastasse o horror registrado em Aracruz (ES), uma reportagem do portal Estadão acerca do ataque armado fez uso de uma imagem ilustrativa que apresentava a mão de uma pessoa negra, aparentemente feminina, com uma arma em punho, quando os fatos já haviam indicado que o infrator em questão era um adolescente branco. Não se trata em absoluto de desatenção – a imagem comunica o racismo e a criminalização da população negra, sistemática e persistente na sociedade brasileira, que deve ser denunciada, combatida e reparada, sob o norte de justiça social. Além disso, a ilustração contribui para a invisibilização da problemática emergente dos crimes de ódio fundamentados na ideologia da branquitude, na crença da supremacia racial e em ideas neonazistas, o que vem sendo explicitado em diversos ataques e ameaças.
Diante desse cenário, a ABA, por intermédio de sua Comissão de Direitos Humanos, insta o novo governo que tomará posse em 01 de janeiro de 2023 a incluir desde já, nos trabalhos de transição, a questão da recorrência de ataques armados a escolas brasileiras, enquanto pauta prioritária da equipe por ora dedicada ao tema da educação. Tais tragédias não são casos isolados de investigação policial. Também não podem ser mais explicadas apenas lançando mão restritivamente da noção de bullying como causa. O bullying, mais que um fenômeno, é uma ideia que abre portas para explicações mais complexas que as problemáticas coletivas exigem.
Ainda se faz premente que mais pessoas além de profissionais da psicologia e da psiquiatria sejam ouvidas em busca de elucidações e medidas diante dessas ocorrências. Outros campos do conhecimento, tais como as ciências sociais e particularmente, a antropologia, podem colaborar com suas pesquisas e engajamento em políticas públicas. Do mesmo modo, movimentos ativistas mobilizados por familiares e amigos(as) de vítimas tem muito a contribuir. Nesse sentido, a forma como esses casos são divulgados chama a atenção, uma vez que o papel desses familiares não é dar entrevistas à imprensa quando uma nova tragédia acontece e faz reprisar seu trauma, mas sim terem seu lugar assegurado na tarefa de traçar medidas socialmente transformadoras, capazes de alguma reparação à sua dor.
A ABA acredita na seriedade do novo governo em considerar essa questão com a complexidade que ela requer, fazendo valer máximas defendidas por movimentos sociais militantes em lutas para combater e evitar essas tragédias: quem não conhece a história, repete seus erros – para que nunca se esqueça, para que não se repita.
Brasília, 07 de dezembro de 2022.
Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e sua Comissão de Direitos Humanos
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