Nota Técnica da Associação Brasileira de Antropologia sobre as ações afirmativas consignadas na Lei 12.711 de agosto de 2012 e atualizada pela Lei 13.409 de dezembro de 2016

A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), junto com seu Comitê de Antropólogas/os Negras/os, Comitê Quilombos, Comitê de Antropologxs Indígenas, Comitê Gênero e Sexualidade, Comitê Migrações e Deslocamentos, Comissão de Assuntos Indígenas, Comissão de Direitos Humanos, Comitê Deficiência e Acessibilidade e Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia, vêm por meio desta afirmar a importância da continuidade e do aperfeiçoamento das ações afirmativas no Brasil. Desde sua promulgação, a Lei 12.711/2012 se tornou um instrumento concreto de reparação dos danos ocasionados pela negligência estatal e pelo racismo estrutural, constituintes da experiência histórica e das relações sociais no Brasil até hoje. O fortalecimento das políticas de reservas de vagas e ações afins nas instituições de ensino superior também é fundamental para a democratização das próprias instituições e, sobretudo, para a inclusão social, a justiça e a democracia. É a partir dessa compreensão, da centralidade das ações afirmativas no debate sobre a promoção da equidade, que a avaliação dos resultados alcançados até agora deve ser considerada.

Como resultado das políticas de ação afirmativa, é possível constatar a presença de segmentos da população antes excluídos dos espaços acadêmicos. Conforme a “V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos(as) Graduandos(as) das IFES – 2018” (ANDIFES, 2019), pela primeira vez na história do país, a população negra é maioria nas universidades federais brasileiras, alcançando 51,2% desse universo (p. 247), uma proporção mais representativa da realidade demográfica no país. Segundo essa pesquisa, o número de ingressantes cotistas aumentou consideravelmente a partir de 2013, com a Lei já em vigor. Se, em 2005, apenas 3,1% dos ingressos ao ensino superior eram por reserva de vagas, em 2010 essa proporção chegou aos 25%. Em 2014, passou de 38,2%, em 2017, 49,4%, e em 2018 o percentual apurado foi de 48,3% (p. 221). À luz da série histórica, tal incremento mostra como a lei se tornou um mecanismo concreto, efetivo e exitoso para o ingresso na universidade.

Do mesmo modo, a Lei impactou consideravelmente o número de estudantes indígenas no ensino superior, promovendo transformações importantes nas universidades e nas vidas desses estudantes, seus povos e regiões. Segundo a mesma pesquisa da ANDIFES (2019), o número de indígenas aldeados que tinham acedido à universidade era de 2.329 em 2014, chegando a 4.672 no ano de 2018. O número de estudantes quilombolas aumentou cerca de 154% no período (p. 142). Conforme o Censo da Educação Superior, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão ligado ao Ministério da Educação, entre 2010 e 2016 a população de estudantes indígenas aumentou 512% em todos os modelos de educação superior, público e privado, subindo de 7 mil para 44 mil. Com isso, foi alcançada uma proporção de estudantes mais próxima do número da população indígena no país. Esse é mais um indicador de que a Lei corrige distorções históricas no ensino superior, sendo, portanto, uma política de reparação eficaz.

Se em 2008, Joênia Wapichana, atualmente Deputada federal, foi a primeira advogada indígena, entre homens e mulheres, a realizar sustentação oral no Supremo Tribunal Federal (STF), no caso da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol; em 2021, no julgamento do STF do caso de repercussão geral dos Xoklen, foram quatro sustentações indígenas contrárias à tese do Marco Temporal, realizadas pelos advogados Eloy Terena, Samara Pataxó, Ivo Makuxi e Cristiane Soares Baré. A dimensão do impacto da ampliação da presença dos povos indígenas no ensino superior
brasileiro não se restringe ao universo acadêmico, sendo um fator preponderante das disputas por efetivação de direitos.

Constatados esses avanços, é preciso sinalizar também o longo caminho que resta pela frente. O relatório Education at a Glance 2019 (EAG 2019), da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), oferece uma perspectiva comparada dos problemas enfrentados pelo Brasil no acesso à educação superior e no investimento por discente. Os dados providos pelo Inep, junto aos dados de outros 46 países, mostram que, apesar de a porcentagem de jovens adultos (25 a 34 anos) com diploma superior ter dobrado no prazo de uma década, o Brasil ainda mantém taxas de acesso abaixo da média da OCDE e de outros países latino-americanos. Segundo o relatório, em 2008, 11% dos brasileiros de 25 a 34 anos tinham diploma de nível superior. Em 2018, eram 21%. O dado brasileiro é comparável ao do México, mas está abaixo de outros países latino-americanos, como Chile (25%) e Argentina (36%). Essa porcentagem corresponde à metade da média dos países da OCDE (ver Leal, Vega Sanabria & Cariaga, 2021, p. 32 para referências).

As diferenças aumentam e os indicadores do Brasil caem drasticamente quando referidos à pós-graduação no contexto dos países da OCDE. Aqui como alhures, é uma minoria que chega a esses níveis, mas no Brasil a seletividade é ainda maior. Segundo o EAG 2019, somente 0,8% dos brasileiros entre 25 e 64 anos têm título de mestre. Na OCDE, a média é de 13%. A porcentagem dos que chegam ao doutorado é ainda menor: 0,2% da população de 25 a 64 anos. Na OCDE, a média é de 1,1% (Idem).

A propósito desses indicadores, aliás, cumpre advertir que, embora o país conte com algumas bases de dados sobre o ensino superior, ainda se faz necessário estabelecer um sistema de informações integrado. A produção de conhecimento sobre a política de ações afirmativas é fundamental para sua implementação, gestão e avaliação. Por exemplo, embora a política de reserva de vagas tenha se mostrado bem-sucedida para garantir o acesso à educação superior resta indagar mais sobre as condições necessárias para a permanência dos novos estudantes e sua incorporação no mercado de trabalho. De fato, a desigualdade racial continua sendo um desafio nesse nível, posto que, mesmo os negros sendo maioria na educação superior, eles se concentram nos cursos menos concorridos e acham-se sub-representados nos de maior prestígio como Direito, Medicina e Odontologia (cfr. Carvalhaes; Ribeiro, 2019; Santos; Lima; Carvalhaes, 2020). Aliás, o modelo de expansão adotado no Brasil historicamente tem privilegiado o setor privado e alguns cursos mais tradicionais. Esse quadro é significativo justamente porque, após a relativa expansão do sistema universitário nas últimas duas décadas, algumas contradições e desafios do processo começam a ser apontados por diversos autores (p. ex. Balbachevsky et al., 2019; Barbosa, 2020; Carvalhaes & Ribeiro, 2019; CGEE, 2016).

As ações afirmativas são uma resposta contundente ao racismo estrutural e uma ferramenta efetiva para o enfrentamento de preconceitos e discriminações históricas; são uma resposta inequívoca diante de diversas formas de opressão, inferiorização exclusão e violência cotidiana, conforme registram estatísticas com relação, por exemplo, à população negra no país. As ações afirmativas possibilitam ao Estado assumir um importante papel reparador, com o estabelecimento de leis e a efetivação de políticas públicas capazes de, gradualmente, restituir dignidades perdidas e avançar na realização de justiça social.

Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2021. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/11/infografico-violencia-desigualdade-racial-2021-v3.pdf. <Acesso em 08 dec. 2021>.

O racismo estrutural foi forjado na traumática experiência do domínio colonial e continua a operar contemporaneamente na nossa sociedade. O racismo estrutural é empecilho real para a democratização efetiva de ambientes que representam a possibilidade de ascensão social, política e econômica, de forma justa e igualitária. O racismo estrutural, infiltrado no cotidiano das instituições, fez com que chegássemos neste século XXI naturalizando e reproduzindo prejuízos que aviltam segmentos específicos da sociedade, e, concomitantemente, outorga privilégios como se fossem direitos exclusivos de outros segmentos. Naturalizou-se, assim, uma hierarquia perversa no âmbito das relações sociais.

Enquanto a reserva de vagas e outras ações afirmativas continuam sendo uma tarefa incompleta e ainda muito necessária, um efeito direto da Lei 12.711de 2012 é o fato de as  Instituições de Educação Superior passarem a lidar com outros conhecimentos, outras línguas e uma gama extraordinária de expressões culturais que estimulam a criação de novos cursos, novos projetos pedagógicos e novas formas de docência. Essa maior diversidade interna tem exigido e redundado, por sua vez, na paulatina adequação e atualização de muitas instituições. Embora a adequação pedagógica das instituições de ensino superior também continue sendo um enorme desafio para melhor viabilizar as ações afirmativas, a lei de cotas significa um verdadeiro estímulo para a criação de programas de investigação e práticas pedagógicas que se desdobram em formas de inovação, em especial quando referidas ao papel do conhecimento, da ciência e da tecnologia em relação a demandas contemporâneas[1].

A continuidade e o fortalecimento das ações afirmativas são fundamentais, portanto, para o desenvolvimento da educação superior, por meio das contribuições que passam a ser feitas por pessoas e comunidades que estiveram alijadas historicamente dos debates acadêmicos e científicos que, no Brasil, ficam por conta, sobretudo, das universidades públicas. Em que pese o desmantelamento do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e os notórios ataques às instituições da ciência e da cultura no país, as universidades públicas continuam a responder por mais de 95% da produção científica do Brasil. Dita produção inclui áreas tão cruciais e de grande impacto como agricultura, medicina e saúde, física e ciência espacial, psiquiatria, odontologia, entre outras, que beneficiam a população brasileira e contribuem para a riqueza nacional (Moura, 2019).

O impacto da reserva de vagas não se restringe ao trabalho realizado pelas Instituições de Ensino Superior na sua implementação, mas diz respeito aos efeitos que os beneficiados por esta política têm produzido no espaço público, no debate sobre a qualidade de vida de suas comunidades e na sociedade brasileira. Os egressos indígenas e quilombolas, por exemplo, têm tido uma participação fundamental nas discussões sobre sustentabilidade ambiental e na proteção de territórios brasileiros por meio de conhecimentos que reverberam no campo científico. As ações afirmativas significam, nesse sentido, inovações benéficas para um projeto de sociedade plural, em especial, quando testemunhamos a presença de intelectuais com experiências e lugares de atuação em prol do desenvolvimento social de suas comunidades e da sociedade brasileira. A continuidade da reserva de vagas no ensino superior e outras ações afirmativas exige, portanto, pensar em modos de aperfeiçoamento de um dispositivo constitucional de inclusão social, fundamentado na valorização das contribuições das populações negras, indígenas e de outros segmentos sociais no espaço científico, acadêmico e laboral no Brasil contemporâneo[1].

Além de fazer jus efetivamente à diversidade que constitui a sociedade, a Lei Federal nº 12.711 de 2012 tem propiciado, a partir da formação de novos quadros, transformações em distintas regiões geográficas e proposições inovadoras em dezenas de pesquisas, trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado que vêm sendo realizados em diversas instituições por autores(as) que ingressaram no sistema educacional via reserva de vagas. Muitas destas obras são referência em seus campos de pesquisa no Brasil e no exterior. Os aprendizados produzidos pelas transformações experimentadas nas Instituições de Ensino Superior no Brasil têm estimulado o surgimento de novos campos de estudos que reposicionam o conhecimento científico, a partir de elaborações científicas até então não reconhecidas devidamente em sua complexidade e densidade. Todavia, conforme dados do Censo da Educação Superior do Inep (2019), o aproveitamento desses novos profissionais no ensino superior e na pesquisa é ainda tímida. Por exemplo, a proporção de professores pretos e pardos no ensino superior foi de 19,3% em 2010 para 23,6% em 2019; a Universidade de São Paulo, a instituição brasileira melhor colocada nas classificações internacionais, por exemplo, não chega a ter 3% de docentes negros em 2018[2].

Nesse sentido, enquanto saudamos as conquistas alcançadas nos quase 10 anos de vigência da Lei 12.711/ 2012, chamamos a atenção para o longo caminho que resta nesta seara, colocamos a expertise dos antropólogos associados e antropólogas associadas à disposição dos congressistas e reafirmamos o compromisso da ABA com a consolidação de uma política permanente com relação às ações afirmativas.

Brasília, 10 de dezembro de 2021.

Associação Brasileira de Antropologia (ABA); seu Comitê de Antropólogas/os Negras/os; seu Comitê Quilombos; seu Comitê de Antropologxs Indígenas; seu Comitê Gênero e Sexualidade; seu Comitê Migrações e Deslocamentos; sua Comissão de Assuntos Indígenas (CAI), sua Comissão de Direitos Humanos; seu Comitê Deficiência e Acessibilidade; e sua Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia

Leia aqui a nota em PDF.

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[1] Ver, por exemplo, o PL 5.476/2020, da Deputada Joênia Wapichana, que propõe a reserva de vagas para indígenas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos integrantes dos quadros permanentes de pessoal do poder legislativo, judiciário e executivo e das entidades de sua administração e indireta, no âmbito da União. Atualmente a matéria está apensada ao PL 4386/2019.

[2] Ver a matéria “2,2% dos professores da USP se autodeclaram pretos ou pardos”. Jornal da USP, publicada em 14 nov. 2018. Disponível em https://jornal.usp.br/universidade/professores-da-usp-se-autodeclaram-pretos-ou-pardos/ <Acesso em 10 dec. 2021>.

[1] Ver, por exemplo, o dossiê “Novas universidades, novos campi, novas antropologias: docências, alteridades e expansão do Ensino Superior no Brasil” (Leal, Vega Sanabria & Cariaga, 2021) e o “O ensino de Antropologia e a formação de antropólogos no Brasil hoje: de tema primordial a campo (possível) de pesquisa (antropológica)” ( Vega Sanabria & Duarte, 2020).

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