Na abertura do ano legislativo de 2023, foi apresentado pelo Senador Zequinha Marinho (PL-Pará) o Requerimento nº 72/2023[1] para criação de uma Comissão Temporária Externa[2], que visa a questionar o direito de reassentamento dos povos ribeirinhos do Xingu, que tiveram suas terras e ilhas inundadas pelo complexo hidrelétrico de Belo Monte. A Comissão também foi divulgada no site de notícias A Voz do Xingu[3], e tem como objetivo rever o cumprimento de determinações já deliberadas pelo IBAMA, no âmbito do processo de licenciamento ambiental de Belo Monte.
As consequências dos efeitos socioambientais da construção de Belo Monte para os povos ribeirinhos foi objeto de estudo específico realizado por uma equipe de pesquisadores recrutada pela SBPC, sob a coordenação das antropólogas Manuela Carneiro da Cunha e Sonia Barbosa Magalhães, em 2016. Este estudo visava a atender demanda do Ministério Público Federal que pediu à SBPC “um olhar das ciências, para o que ocorrera aos ribeirinhos do Rio Xingu”[4]. O relatório deste estudo foi apresentado em Audiência Pública realizada no Centro de Convenções de Altamira, em 11 de novembro de 2016. Esta Audiência contou com a participação de cerca de oitocentos ribeirinhos, da presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e de outros técnicos dessa instituição; e com representantes do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH); do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio); da Agência Nacional de Águas (ANA); da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL); da Secretaria de Patrimônio da União (SPU); da Defensoria Pública do Estado do Pará (DPE); da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS); da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério da Justiça (SDH); e da Defensoria Pública da União (DPU); além do representante do Consórcio Norte Energia, responsável pela construção da hidrelétrica.
O documento, intitulado A expulsão de ribeirinhos em Belo Monte: relatório da SBPC[5], constatou a violação de direitos humanos e sociais e o descumprimento de fundamentos do licenciamento ambiental em curso, de acordo com a condicionante 2.6, alínea “a” da LO nº1.317/2015 da UHE Belo Monte, e apresentou como principais RECOMENDAÇÕES:
1) o “estabelecimento de mecanismos para aplicação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)” (SBPC, 2017, p. 23);
2) “a criação do Conselho Ribeirinho do reservatório da UHE Belo Monte e o seu reconhecimento como “órgão deliberativo e autônomo destinado a fazer cumprir os princípios de autodeterminação e do autorreconhecimento no processo de reterritorialização” que já se iniciava (SBPC, 2017, p. 23);
3) “Aquisição e Distribuição de áreas ecologicamente adequadas e suficientes para a reterritorialização, com base na especificidade do modo de vida tradicional e sob acompanhamento do Conselho Ribeirinho” (SBPC, 2017, p. 434);
4) Criação de “um fundo financeiro para a implantação do Programa Ribeirinho, com a mesma vigência do Contrato de Concessão de uso de bem público para geração de energia elétrica nº 01/2010-MME – UHE Belo Monte (Processo nº 48500.003805/2010-81)3, para apoio socioeconômico e cultural à reestruturação do modo de vida no novo território” (SBPC, 2017, p. 434).
Até esta data, 28 de fevereiro de 2023, apenas o Conselho Ribeirinho foi criado. A implantação do Território Ribeirinho para assegurar o direito de viver e se reproduzir econômica, social e culturalmente como comunidade tradicional não se ÷efetivou e a aquisição de terras não se realizou, a despeito do empenho dos Ribeirinhos em diversas ações para concretizá-las.
Após a criação do Conselho Ribeirinho, em 02 de dezembro de 2016, seguiram-se as seguintes ações que visavam a efetivação do Território.
- A identificação das famílias ribeirinhas a serem reassentadas e o Mapa do Território Ribeirinho foram concluídos pelo Conselho Ribeirinho e apresentados ao IBAMA e à Norte Energia em seminário realizado em Brasília – em fevereiro de 2018.
- Portarias de Auto de Demarcação visando à reterritorialização das comunidades ribeirinhas atingidas pela instalação da UHE Belo Monte no rio Xingu foram publicadas pela SPU, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão – em março de 2018 (Portaria nº 3.209, de 26 de março de 2018, Portaria nº 3.208, de 23 de março de 2018, Portaria nº 3.207, de 26 de março de 2018).
- O Conselho Ribeirinho protocolou no IBAMA, Norte Energia, MPF e SPU o detalhamento de sua proposta territorial, com o zoneamento ambiental dos três territórios, com o objetivo de subsidiar a reterritorialização e superar os entraves (SEI 1686036), apontados pelo IBAMA em Parecer Técnico de junho de 2016 [Parecer 02543.000003/2016-15 ESREG ALTAMIRA/PA/IBAMA] – em julho de 2018.
- O Grupo técnico de apoio ao Conselho Ribeirinho protocolou no IBAMA nota técnica sobre a elaboração da proposta de reterritorialização, descrevendo os
critérios e parâmetros utilizados para a realização do zoneamento ambiental do território e espacialização das famílias ribeirinhas, tendo em vista a reconstituição das redes de vizinhança. - A SPU publicou relatório técnico sobre a reterritorialização das comunidades ribeirinhas atingidas por Belo Monte – em setembro de 2018
- O IBAMA publicou parecer técnico, contextualizando a proposta de reassentamento das famílias ribeirinhas, acolhendo a necessidade de mitigação e reparação aos povos ribeirinhos, incorporando o reassentamento destas famílias na APP do reservatório Xingu e áreas lindeiras a esta para uso agrícola [Parecer Técnico nº 160/2018-COHID/CGTEF/DILIC] – em novembro de 2018.
- A Norte Energia apresentou ao IBAMA e Conselho Ribeirinho o “Projeto Básico Ribeirinho” em resposta à proposta do Conselho, apresentada em julho de 2018 [CE 0375/2019 e CE 043-2019-PR (SEI 5348979) – em junho de 2019.
Todas as ações, negociações, assim como as demandas dos ribeirinhos acima mencionadas seguem os trâmites legais do licenciamento ambiental, são acompanhadas pelo IBAMA em reuniões, cujas atas estão disponíveis em seu Sistema Eletrônico de Informações (SEI) relativo ao caso.
Há, entretanto, um descompasso entre as determinações do IBAMA e as ações efetivas do Consórcio Norte Energia para a implantação do Território. Estas caracterizam-se pela lentidão e pela interposição de procedimentos que retardam a cada dia um processo de danos e violação de direitos que se arrasta, pelo menos, desde 2016. Mas, de fato, o processo de expropriação dos ribeirinhos teve início em 2011, quando, após a Licença de Instalação nº 770/2011, emitida em 26 de janeiro, foram iniciados os trabalhos de implantação dos canteiros industriais e acampamento de trabalhadores, seguida da Licença de Instalação nº 795/2011 e da resolução autorizativa ANEEL nº 3.293, com a Declaração de Utilidade Pública de uma área de 282,3 mil hectares, ambas no mesmo ano.
Estes instrumentos inauguraram o longo processo de expulsão, que envolve os mesmos atores acima citados – IBAMA, ANEEL e Norte Energia –, inviabilizando dia a dia a reprodução social do povo ribeirinho, neste momento, exaurido pela perda de seu modo de vida, pela espera fatigante de uma decisão sobre o Território e também pela angustiante espera de superação de uma vida provisória e sofrida fora de suas terras e de suas águas.
O Projeto Básico do Território Ribeirinho, apresentado pela Norte Energia em julho de 2019 [CE 0375/2019 e CE 043-2019-PR (SEI 5348979)] e aprovado pelo IBAMA em novembro do mesmo ano [Parecer Técnico nº 126/2019-COHID/CGTEF/DILIC] prevê o reassentamento das famílias ribeirinhas deslocadas da área do reservatório principal da usina nas áreas de preservação permanente (APP) para moradia e áreas adjacentes, destinadas à atividade agrícola. Vale observar que esta é uma obrigação legal estabelecida pelo IBAMA desde 2015 [Condicionante 2.6, alínea “a”, LO nº 1.317/2015}. No entanto, a empresa, até o momento, não finalizou o cadastro e o levantamento físico-patrimonial dos imóveis interferidos.
A Norte Energia protocolou o pedido de Declaração de Utilidade Pública (DUP) das áreas necessárias para a constituição do Território Ribeirinho junto à ANEEL somente em 20 de outubro de 2021 – dois anos após a aprovação do Projeto Básico Ambiental. As áreas afetadas pelo projeto incidem sobre as mesmas áreas afetadas pela DUP emitida em 2011, e ainda em proporção muito menor.
Em 13 de junho de 2022, a ANEEL sobrestou a análise do pedido diante da incompletude das informações fornecidas pela Norte Energia e deu um prazo de 10 dias para que as informações, justificativas e documentos faltantes fossem protocolados. Tal prazo não foi cumprido pela empresa e informações sobre o status do pedido não foram repassadas ao IBAMA, MPF e Conselho Ribeirinho. Assim, sem obter informações da Norte Energia, o IBAMA oficiou a ANEEL em 05 de dezembro de 2022, solicitando esclarecimentos sobre o andamento do processo, uma vez que a emissão da DUP é “fundamental para que a Norte Energia possa dar prosseguimento à aquisição de áreas lindeiras à APP da UHE Belo Monte” (Ofício 406/2022/COHID/CGTEF/DILIC).
Em resposta ao IBAMA, em 16 de dezembro de 2022, a ANEEL informou que o processo ainda estava sobrestado devido ao pedido da Norte Energia de dilação de prazo para atendimento das complementações requeridas pela ANEEL relativas ao levantamento das áreas objeto de DUP (Ofício n˚ 696/2022- SCG/ANEEL). Assim, verifica-se que a Norte Energia demorou mais de 6 meses para protocolar as informações solicitadas pela ANEEL e dar encaminhamento ao processo de análise.
Em reunião realizada com o Conselho Ribeirinho e instituições de Justiça em 31 de janeiro de 2023, a Norte Energia informou que tinham sido cadastrados 81 de 110 imóveis até aquele momento e que não há nenhuma previsão para finalização dos cadastros e levantamentos faltantes, pois depende de autorização dos proprietários para adentrar às propriedades.
Essa demora injustificada para realização dos cadastros físico-patrimoniais, negociação e aquisição amigável de áreas, assim como para a emissão da DUP e licenciamento das áreas que já estão em posse da Norte Energia é também objeto de reclamações de proprietários rurais de Altamira e Vitória do Xingu, protocolada no IBAMA em 13 de fevereiro de 2023, na qual relatam a extrema morosidade da empresa em dar andamento às negociações e compras das áreas necessárias à constituição do Território Ribeirinho. Esta reclamação foi encaminhada pelo IBAMA à Norte Energia em 17/02/2023 (OFÍCIO Nº 64/2023/COHID/CGTEF/DILIC).
Nesta carta, os proprietários esclarecem que estão em situação de insegurança e incerteza há mais de 2 anos, quando a Norte Energia os contatou para informar sobre a necessidade de aquisição de suas propriedades. Relatam que somente um ano depois, no início de 2022, a empresa teria começado a realizar o cadastro e levantamento físico patrimonial, mas que até aquele momento não receberam nenhum retorno sobre o valor da indenização nem sobre o prazo de aquisição de suas propriedades. Informam que muitos proprietários estão de acordo com o processo de compra e venda de suas propriedades, e que “esse atraso e demora prejudica tanto os pequenos e médios produtores rurais da região, assim como os ribeirinhos que esperam o reassentamento” (Ofício nº 64/2023/COHID/CGTEF/DILIC – SEI14950970). Por fim, eles também solicitam ao IBAMA que exija da Norte Energia a aceleração do processo de aquisição, pois têm urgência em receber a indenização, para que não percam novo calendário agrícola.
O Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos acompanha, desde 2011, todo o processo de expulsão dos ribeirinhos e por meio da Associação Brasileira de Antropologia tem se manifestado ao longo do tempo contra a violação de direitos e imposição de perdas e sofrimento ao povo ribeirinho do rio Xingu, violentamente expulso.
Com esta Nota Técnica, o Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos espera ter esclarecido às instâncias responsáveis pelo Licenciamento ambiental de Belo Monte, aos Senadores da República e a todos os interessados sobre a situação atual vivenciada pelos Ribeirinhos. E, sobretudo, espera esclarecer que os fundamentos apresentados para a criação da Comissão Temporária Externa no Requerimento nº 72/2023[6] desconhecem os principais fatos do processo, aqui arrolados.
Brasília, 06 de março de 2023.
Associação Brasileira de Antropologia e seu Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos
Manifestam apoio irrestrito a esta Nota Técnica os seguintes fóruns de entidades científicas:
As Ciências Sociais Articuladas (A4), composta por:
Associação Brasileira de Antropologia – ABA
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – ANPOCS Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS
Associação Brasileira de Ciência Política – ABPC
Fórum de Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas (FCHSSALLA), composta pelas A4 e por:
ABPD – Associação Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento
ABPEE – Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial
ABPMC – Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental
ABRALIN – Associação Brasileira de Linguística
ABRAPCORP – Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação Organizacional e de Relações Públicas
ABRAPEC – Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências
ABRAPEE – Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional
ABRAPSO – Associação Brasileira de Psicologia Social
ABRI – Associação Brasileira de Relações Internacionais
ANCIB – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência da Informação
ANPAE – Associação Nacional de Política e Administração da Educação
ANPARQ – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo
ANPEC – Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia
ANPED – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação
ANPEGE – Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Geografia
ANPEPP – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia
ANPOCS – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
ANPOF – Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia
ANPOLL – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística
ANPPOM – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música
ANPUH – Associação Nacional de História
ANPUR – Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional
ANPTUR – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Turismo
CESA – Sociedade Científica de Estudos da Arte
COMPOS – Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito
ESOCITE – Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias
FEBRAPSI -Federação Brasileira de Psicanálise
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
SAB – Sociedade Brasileira de Arqueologia
SBEC – Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos
SBEM – Sociedade Brasileira de Educação Matemática
SBEnBio – Associação Brasileira de Ensino de Biologia
SBHC – Sociedade Brasileira de História da Ciência
SBHE – Sociedade Brasileira de História da Educação
SBP – Sociedade Brasileira de Psicologia
SBHP – Sociedade Brasileira de História da Psicologia
SBPHA -Sociedade Brasileira de Filosofia Analítica
SBPOT – Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho
SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
SBS – Sociedade Brasileira de Sociologia
SOCICOM – Federação Brasileira das Associações Científicas e Acadêmicas de Comunicação
SOCINE -Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual
UGB – União da Geomorfologia Brasileira
ULEPICC – União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura
[1] Ver https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/155900.
[2] Integram a Comissão: Senador Zequinha Marinho (PL/PA), Senador Plínio Valério (PSDB/AM), Senador Mecias de Jesus (REPUBLICANOS/RR), Senador Hamilton Mourão (REPUBLICANOS/RS).
3https://avozdoxingu.com.br/comissao-do-senado-federal-promove-reuniao-em-altamira-para-discutir-sobre desapropriacoes-de-terras-na-regiao-de-belo-monte/
[4] NADER, Helena. A fortaleza de uma causa. In: A expulsão de ribeirinhos em Belo Monte: relatório da SBPC: [livro eletrônico] / Sônia Barbosa Magalhães, Manuela Carneiro da Cunha (Orgs). São Paulo: SBPC, 2017. 448 p. Disponível para download em: http://portal.sbpcnet.org.br/livro/belomonte.pdf ISBN: 978-85-86957-31-4.
[5] O Relatório está disponível para download em: http://portal.sbpcnet.org.br/publicacoes/a-expulsao-de-ribeirinhos-em-belo-monte-relatorio-da-sbpc/.
[6] Ver https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/155900.
Acesse aqui a nota em PDF.