Nota Técnica sobre o Projeto de Lei 6007/2023 sobre Pesquisas com Seres Humanos no Brasil

O Comitê de Ética em Pesquisa nas Ciências Humanas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) torna pública a presente Nota Técnica sobre o Projeto de Lei 6007/2023, cujo teor representa uma ameaça à prática científica antropológica, para a pesquisa com seres humanos, assim como para as populações com as quais realizamos nossas pesquisas.

Apontamos nesta nota que o PL foi motivado por interesses de mercado, que buscam flexibilizar princípios éticos da pesquisa clínica, relativizar, e mesmo retirar direitos de participantes das pesquisas. Além disso, busca reduzir as metodologias e práticas consideradas científicas e éticas a partir do padrão único da pesquisa clínica em seres humanos, anulando décadas de debates e avanços do controle ético da pesquisa científica no Brasil, que resultaram em diversas Resoluções do Conselho Nacional de Saúde (196/1996, 466/2012, e 510/2016). Consideramos que o debate plural sobre ética que temos feito no Brasil em torno da proteção e dos direitos dos indivíduos e populações que participam das pesquisas não pode ser silenciado por meio de leis que ferem tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Se o Sistema de Ética em Pesquisa existente ainda não tem uma legislação específica, é fundamental ressaltar que em quase três décadas de existência ele aprimorou seus instrumentos de avaliação, criou resoluções específicas para as pesquisas da área de Ciências Humanas, ampliou a participação democrática da sociedade civil organizada em suas instâncias decisórias e consultivas. Qualquer legislação a ser aprovada deve reconhecer a existência desse Sistema e incorporar seus avanços, e não, como faz o PL 6007/2023, impor sua dissolução, fazendo o campo científico e as pesquisas em e com seres humanos recuarem em décadas de trabalho e recursos dispendidos.

Desse modo, seguem abaixo pontos importantes que evidenciam os riscos da aprovação do PL e que devem ser levados em consideração na construção de uma governança científica democrática, e que respeite os direitos das populações, grupos e indivíduos participantes das pesquisas, bem como  a diversidade metodológica e de procedimentos e práticas que compõe o campo científico.

  1. O Comitê de Ética em Pesquisa nas Ciências Humanas da Associação Brasileira de Antropologia tem acompanhado a tramitação no Congresso do Projeto de Lei (PL) 6007/2023 com muita preocupação. O PL é capitaneado pela Aliança Pesquisa Clínica, grupo formado por pesquisadores, representantes de sociedades médico-científicas e por instituições ligadas à indústria farmacêutica (como a Interfarma e a Associação Brasileira de Organizações Representativas de Pesquisa Clínica – ABRACRO). Seu objetivo é dissolver o atual sistema CEP/CONEP, que vem sendo construído e aprimorado coletivamente ao longo dos anos, e substituí-lo por um modelo fragmentado e frágil de controle ético da pesquisa científica, contrariando os próprios princípios de ética em pesquisa que foram sendo construídos ao longo de mais de 70 anos, e que têm como marco histórico fundamental o Código de Nuremberg, de 1947, elaborado após o julgamento dos crimes médicos de guerra praticados durante o regime nazista.
  2. O PL busca estender, de modo inadequado, os critérios, metodologias e técnicas da pesquisa clínica para todas as demais pesquisas “com seres humanos”, o que inclui o campo das Ciências Humanas e Sociais (CHS), que possui as suas próprias epistemologias, metodologias e técnicas de pesquisa. Sua aprovação representa um grande retrocesso e desrespeito para com esses instrumentos de pesquisa e esta área do campo científico brasileiro.
  3. Além disso, mesmo no âmbito restrito da pesquisa clínica, o PL em análise também é bastante controverso, conforme já foi argumentado por associações científicas e da sociedade civil, como a Abrasco, o Conselho Nacional da Saúde, a Fiocruz, e conforme denunciado no “Manifesto Frente pela Vida: – em defesa do Sistema de Ética em Pesquisa com o CEP/CONEP”, assinado por várias entidades ligadas ao campo da saúde e da saúde coletiva. Tais associações, no entanto, não tiveram a oportunidade de participar de debates e esclarecimentos durante a tramitação do PL, diferentemente dos atores vinculados à indústria farmacêutica, que anunciaram sua intensa colaboração com parlamentares em Brasília em favor do PL. A sociedade civil organizada e as associações científicas, assim, têm sido ignoradas em seus sucessivos alertas sobre os efeitos deletérios desse Projeto de Lei.
  4. A pretensão do PL de dissolver o atual Sistema Nacional de Ética em Pesquisa CEP/CONEP, e substituí-lo por Comitês de Ética em Pesquisa independentes e privados, fora do controle de um sistema unificado, representa um risco enorme à pesquisa em e com seres humanos no Brasil, instituindo um modelo frágil no controle da ética em pesquisa e, sobretudo, sem autonomia em relação aos interesses do empresariado da saúde e dos grandes laboratórios farmacêuticos.
  5. Também nos preocupa a ausência de previsão orçamentária e desenho organizacional da proposta, impactando diretamente no cenário de divisão dos recursos da Ciência e Tecnologia, a partir da criação de uma nova estrutura organizativa.
  6. O PL fragiliza direitos já conquistados de participantes de pesquisas clínicas, relativos ao acesso pós-estudo e ao uso de placebo, problemas que já foram levantados durante toda a tramitação do projeto, e que podem se agravar, ao onerar o Estado e ao designar, no Documento de Compromisso e Isenção, a possibilidade de desobrigar os patrocinadores na garantia de medicamentos pós-estudo.
  7. É recorrente que infrações éticas das pesquisas clínicas incidam sobre as populações mais vulnerabilizadas, como os casos de populações pobres, negras, indígenas, quilombolas, ciganas, rurais, periféricas, em situação de rua, em contexto de privação de liberdade, pessoas com deficiência e aquelas com doenças raras e degenerativas graves. Com o objetivo de evitar essas infrações, os CEPs contam com a participação de representantes de grupos pesquisados, buscando trazer a visão desses grupos acerca da adequação dos objetivos e procedimentos de pesquisa propostos nos projetos avaliados e assegurar que a discussão sobre a ética em pesquisa garanta a diversidade de atores e a pluralidade de pontos de vista e entendimentos. O PL muda a composição dos colegiados dos CEPs, que passa da exigência de “representantes dos usuários” das redes onde as pesquisas são realizadas para um “representante dos participantes da pesquisa” (Art.7, VII 9° I-e)”, implicando na exclusão dos grupos de advocacy no contexto da discussão da ética das pesquisas clínicas.
  8. A definição de pessoa em situação de vulnerabilidade como “incapaz” no Art. 21 do PL, assim como a inclusão de pesquisas com indígenas como submetidas à decisão de “representante legal”, conforme parágrafos 2o. e 3o. desse Artigo, são uma afronta aos direitos indígenas e à Constituição Federal.
  9. Além disso, o PL retrocede com relação à regulamentação vigente em normativas éticas, que preveem a obrigação do patrocinador do estudo de garantia vitalícia do acesso ao medicamento a egressos da pesquisa, ao propor a desobrigação desse compromisso atualmente existente, repassando esta obrigação ao Estado ou a cargo da negociação entre participante de pesquisa e pesquisador, o que claramente retira um direito já consolidado aos/às participantes das pesquisas.
  10. As pesquisas clínicas realizadas com povos indígenas e demais povos e comunidades tradicionais devem observar as especificidades sociais e culturais desses grupos, previstas na legislação que assegura seus direitos – como o Anexo LXXII do Decreto nº 10.088 de 2019 (Convenção nº 169 da OIT 169 sobre Povos Indígenas e Tribais), o Decreto nº 6.040 de 2007 (que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais) e a Lei nº 13.123 de 2015 (Sobre acesso ao Patrimônio Genético e Conhecimento Tradicional Associado), legislação que não é sequer mencionada no PL. A não observância dessa legislação já existente e das várias convenções assinadas pelo Estado brasileiro geraria um evidente conflito entre Leis, caso o PL venha a ser aprovado.
  11. No PL, o monitoramento da ética em pesquisa é atribuído centralmente aos patrocinadores e aos órgãos profissionais, desconsiderando as discussões bioéticas em âmbito internacional, que afirmam a importância da interdisciplinaridade e da participação social na discussão e no monitoramento das pesquisas.
  12. Para as Ciências Humanas e Sociais, os controles instituídos da ética em pesquisa devem ser desenvolvidos na direção da governança democrática, republicana e igualitária do campo científico, atentando-se às diferenças epistemológicas das áreas disciplinares. É fundamental que qualquer nova legislação sobre ética em pesquisa leve em consideração estes princípios, reconheça os anos de esforço, trabalho e recursos despendidos na construção de um Sistema de Ética em Pesquisa já existente e que vem sendo aprimorado.

Com base neste conjunto de argumentos e fatos, vimos, portanto, rejeitar qualquer legislação que subordine a ética em pesquisa a interesses mercadológicos, que se assentem em critérios, lógicas e práticas científicas absolutamente estranhas à realidade da ética em pesquisa com seres humanos e, em particular, no caso das Ciências Humanas e Sociais, que ameacem a segurança e atentem contra os direitos dos e das participantes da pesquisa e dos grupos vulnerabilizados.

Brasília, 25 de abril de 2024.

Associação Brasileira de Antropologia – ABA e seu Comitê de Ética em Pesquisa nas Ciências Humanas

Leia aqui a nota em PDF.

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