A Associação Brasileira de Antropologia – ABA, junto com sua Comissão de Assuntos Indígenas – CAI e seu Comitê Laudos Antropológicos – CLA, vêm por meio desta manifestar preocupação com a decisão do Governo Federal e de parlamentares do Congresso Nacional representantes de grupos econômicos e financeiros nacionais e internacionais dos setores minerário, petroleiro e agropecuário, e da indústria da infraestrutura associada, de apresentar e dar andamento a um conjunto de proposições legislativas que vão de encontro aos direitos dos povos indígenas no país. Fazem isso de forma acelerada e sem a devida consulta à sociedade civil e aos principais afetados, os povos indígenas e suas organizações representativas próprias, sujeitos de direito respaldados pela Constituição Federal e pelo Supremo Tribunal Federal – STF. Para a ABA, é inaceitável a denúncia da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais.
Por intermédio do Projeto de Decreto Legislativo nº 177/2021, de autoria do deputado ruralista Alceu Moreira (MDB/RS), o Presidente da República fica autorizado a denunciar a Convenção 169 da OIT, desatrelando assim o Brasil deste fundamental tratado internacional de proteção de direitos. A Convenção foi aprovada pelo Decreto Legislativo 143, de 20 de junho de 2002, e internalizada na legislação nacional pelo Decreto 5.051, de 19 de Abril de 2004. Na justificativa do PDL nº 177, de fato, está muito claro que o seu objetivo é eliminar o único dispositivo legal que cria a necessidade de o Estado consultar, e obter o consentimento das comunidades nas Terras Indígenas (T.I.) para realizar empreendimentos como rodovias, linhas de transmissão etc. no interior desses territórios. Seu argumento central revela um projeto de nação que relega de modo absoluto as visões de mundo indígenas, específicas e variadas, sobre o futuro da vida que, coletiva e diversamente, poderíamos ter, ao afirmar que “a restrição de acesso do Poder Público e dos particulares nas terras indígenas sem o consentimento desses indivíduos, assim como o fato de se necessitar de prévia autorização para qualquer ação governamental na Terra Indígena, acaba por inviabilizar o projeto de crescimento do Brasil”.
O objetivo e os efeitos do PDL, se aprovado, ficam mais óbvios quando tomados à luz de outras medidas em tramitação no Congresso Nacional. Por exemplo, o Projeto de Lei nº 191/2020, proposição legislativa protocolada pela presidência da República na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados. Ele estabelece condições de pesquisa e extração de minerais e hidrocarbonetos em T.I., a instalação e a operação de hidrelétricas e sistemas de transmissão, distribuição e dutovias, entre outras infraestruturas associadas. Mas não somente isso, o PL também propõe a exploração econômica das TI por meio de atividades tais como agricultura, pecuária, extrativismo e turismo. Ele admite a outorga de permissão de extração garimpeira e o cultivo de organismos geneticamente modificados nas Terras Indígenas; coloca em questão os processos demarcatórios e as Terras Indígenas já demarcadas; nega o direito ao consentimento livre prévio e informado (CLPI) e propõe mecanismo de participação indígena e arranjos institucionais que abrem espaço para clientelismo político, corrupção e vários tipos de conflitos. Ou seja, instrumentaliza e mercantiliza os territórios, a natureza, os conhecimentos e os saberes, as relações sociais comunitárias, os corpos e as subjetividades, individuais e coletivas, além de colocar em risco a vida dos povos e comunidades locais isoladas e/ou de contato recente.
Ademais, persiste nele o risco da implantação do ano de 1988 como “marco temporal” no estabelecimento do direito à terra e na definição dos limites de Terras Indígenas; tema que, embora inconstitucional, está na pauta de deliberações do STF em 2021. Também tivemos a publicação, pela Funai, da Instrução Normativa nº 9, em março de 2020, que estabelece novas regras à emissão da Declaração de Reconhecimento de Limites em relação a imóveis privados. A decisão provocou uma avalanche de pedidos de Declaração de proprietários rurais ao órgão nos últimos doze meses.
Em 22 de janeiro de 2021 a Funai publicou a “Resolução nº 4”, onde diz estar estabelecendo critérios e procedimentos a serem adotados na identificação (classificação) de um indivíduo como sendo (ou não) indígena, com efeitos no tocante ao acesso e à execução de políticas públicas atinentes, enfatizando a identificação por terceiros e por critérios externos às próprias comunidades. Tal orientação, portanto, se choca frontalmente com o princípio da autodeterminação, basilar na/da Convenção 169 da OIT. Em outro plano, ainda, tal proposição tem repercussões diretas no direito à terra e a outras políticas públicas relacionadas à identidade indígena.
Em relação às T.I. homologadas, a Funai e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) formalizaram, em 29 de setembro de 2020, um Acordo de Cooperação Técnica (ACT) para o desenvolvimento de cadeias produtivas em comunidades indígenas nos estados do Acre, Roraima, Mato Grosso, Tocantins, Bahia, Alagoas, Sergipe e Pernambuco. Mais recentemente, em 24 de fevereiro de 2021, a Funai e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) publicaram a Instrução Normativa Conjunta nº 01/2021, que estabelece regras para a produção agrícola extensiva com fins comerciais no interior das T.I. e a possibilidade de gestão compartilhada entre indígenas e não indígenas do empreendimento agrícola. A figura do arrendamento de terras no interior das TIs reaparece em cena camuflado por um discurso que enfatiza a intenção de promover a autonomia, a autossuficiência, a geração de renda, a sustentabilidade e o protagonismo indígena.
Cabe ainda ressaltar que está em discussão no Congresso o PL nº 3.729/2004, da Lei Geral de Licenciamento Ambiental, que inclui dispositivos relacionados com os direitos indígenas (ver parecer técnico do Comitê de Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos da ABA em http://www.abant.org.br/files/20210511_609a73ee10cf9.pdf). Há também o PL nº 490/2007, que transfere a competência da demarcação das terras indígenas para o Congresso Nacional e trata do uso econômico dos territórios tradicionais. E o PL nº 1.443/2021, com claro perfil liberal-mercantilizante dos territórios e terras dos indígenas. Por fim, o PL nº 6.764/2002, que trata dos chamados “crimes contra o Estado Democrático de Direito”, que se aprovado, poderá ser utilizado contra as comunidades, criminalizando-as, coletiva ou individualmente, em caso de contrariedade à implantação de atividades extrativistas e de infraestrutura nas T.I. onde tais comunidades vivem.
É fundamental indicar que tal ataque à Convenção 169 da OIT é também um ataque contra a Nação e sociedade civil brasileiras. O direito de autodeterminação é o que garante a uma Nação-Povo sua autonomia e direito de usufruir livremente dos recursos naturais e riquezas, de forma que eles sejam colocados à serviço do interesse coletivo de todo o país. As iniciativas em curso não são apenas um ataque ao direito de autodeterminação dos povos indígenas e tribais, integram um projeto de nação excludente. Se os direitos à propriedade e usufruto de povos que ocupam a região que hoje é o Brasil milenarmente não são reconhecidos e respeitados, pavimenta-se o caminho para que o direito de autodenominação do Brasil (que não possui nem duzentos anos como país “independente”) seja destruído e sejamos reduzidos a uma condição de semicolônia. É isso que as iniciativas pretendem: estrangeirizar, privatizar e violar a função social da terra, Artigo 12 da Constituição Federal, entregando as terras indígenas para empresas multinacionais e estrangeiras, privatizando as mesmas. As terras indígenas são bens públicos, de toda a sociedade brasileira, de usufruto dos povos indígenas que prestam diversos serviços ao país. Os povos indígenas contribuem para o bem-estar da sociedade brasileira ao auxiliar na preservação da biodiversidade, produção e segurança alimentar regional, no combate às mudanças climáticas e na segurança territorial da fronteira brasileira). Logo, o direito de autodeterminação indígena é pilar da autodeterminação nacional e da defesa da sociedade e território brasileiro como um todo. Os que atacam esse direito atacam os direitos e os interesses do Brasil como nação autônoma.
Por tal complexo de motivos, para a Associação Brasileira de Antropologia – ABA, sua Comissão de Assuntos Indígenas – CAI e seu Comitê de Laudos Antropológicos – CLA, o Projeto de Decreto Legislativo nº 177/2021 e o Projeto de Lei nº 191/2020 devem ser rejeitados na integra.
Brasília, 24 de maio de 2021.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA, sua Comissão de Assuntos Indígenas – CAI e seu Comitê de Laudos Antropológicos – CLA
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