PEDIDO DE VERIFICAÇÃO DA CONFORMIDADE DA DECISÃO JUDICIAL  DE SENTENÇA DE NULIDADE DO PROCESSO DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA PELO INCRA. DA COMUNIDADE QUILOMBOLA CÓRREGO DE UBARANAS, MUNICIPIO DE ARACATI- CEARÁ

ASSUNTO: Solicitação de verificação da conformidade da decisão judicial- Ação de Sentença de NULIDADE do processo administrativo de identificação, reconhecimento e demarcação, delimitação do territorial do Quilombo Córrego de Ubaranas, no município de Aracati/Ceará (Processo: Ação ordinária de pedido de nulidade do processo administrativo do INCRA N° 54130.003129/2010-01).

O Comitê Quilombos da ABA, vem a público se manifestar diante da Ação de Sentença de Nulidade (N° 0800558-11.2017.4.05.8101) do processo, de identificação, demarcação, delimitação e titulação do território quilombola Córrego de Ubaranas, município de Aracati/CE (N° 54130.003129/2010-01).

  1. Decorre que, segundo medimos, tal Sentença de Nulidade nos provoca desconcerto por apresentar em seu conteúdo argumentos em dissonância com a atualização dos debates conceituais como a noção de quilombo, quanto desarrima as etapas do processo de regularização fundiária. Segundo consta na Portaria 135 de 27/10/2010, a comunidade quilombola Córrego de Ubaranas obteve a Certificação de “Comunidade Remanescentes de Quilombos” pela Fundação Cultural Palmares (FCP). No mesmo ano, entrou com pedido de regularização fundiária junto ao Instituo Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), processo  N° 54130.003129/2010-01.  Todo o processo de regularização decorre do artigo 68 do ADCT/CF de 1988, cuja a implementação foi regulamentada pelo   Decreto 4.887/2003. O processo encontra-se em etapa final do procedimento de regularização fundiária com a publicação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) no Diário Oficial da União nos dias 30 e 31 de março de 2015.  Ademais, este processo foi baseado na Instrução Normativa INCRA nº 57/2009, de forma a auxiliar na composição do (RTID) elaborado pelo INCRA, tornando possível identificar as terras quilombolas de direito da comunidade quilombola de Córrego de Ubaranas. Portanto, todos os trâmites legais previstos foram rigorosamente cumpridos, sem ocorrer qualquer tipo de arbitrariedade, como quer suspeitar o conteúdo da Ação de Sentença.
  2. Destacamos ainda que o procedimento de regularização fundiária sustenta-se fundamentalmente no direito a autoidentificação do grupo social, previsto no Decreto 4.887/2003 na Convenção 169 da OIT.   A Convenção não define a priori quem são os sujeitos de direitos, mas oferece instrumentos para que os próprios sujeitos se definam, a partir da sua própria consciência e de suas próprias formas de organização social, modo de ser, viver e pensar o seu futuro.   Não se trata portanto de um processo inventivo para se “autobeneficiar”, como assinala a Sentença, nem mesmo para atender interesses materiais ou mercadológicos. O processo de autoidentificação está diretamente vinculado aos modos específicos de vida no presente de determinado grupo social e que ainda precisam ser reconhecidos como parte da pluralidade étnica e cultural que formam a nação brasileira.
  3. Portanto, não compete ao INCRA e nem mesmo comporta no processo de regularização fundiária , “decidir”, “conferir”, ou “validar a autodefinição de qualquer comunidade, como reivindica a Ação de Sentença.   Asseveramos que a afirmação de qualquer identidade é um direito, é um valor e parte do ‘princípio da pluralidade’.  A suspeição do direito à autoidentificação pode, em algumas situações, e sobretudo dentro destes contextos de regularização, intensificar conflitos, como servir de instrumento para a restrição de direitos e ao acesso à políticas públicas específicas.  Portanto, não cabe a IN 57/09 investigar a autodeclaração, mas sim demonstrar de que forma a autoidenticação de sujeitos coletivos de direito (a comunidade de Ubaranas) apresentam um tipo de organização social e política específica, que se mantêm a partir de tradições e/ou ordens culturais de longa duração, consciente e que explica o presente desse grupo social e de seu pleito por acesso a direitos na atualidade.  Por isto, que (…) “o termo remanescente de quilombo” vem sendo utilizado pelos grupos para designar um legado, uma herança cultural e material que lhes confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um lugar e a um grupo específico (ABA,1997: 81)
  4. Sublinhamos que o RTID foi produzido pela empresa Terra Ambiental, contratada por edital de Licitação pelo INCRA, cujos estudos foram elaborados por uma equipe multidisciplinar que resultaram no documento Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica, Ambiental e Sociocultural Comunidade Quilombola Córrego de Ubaranas Aracati – CE (Julho de 2013).
  5. O documento, repetimos, seguiu todos os requisitos exigidos pela IN 57/2009, e tornou inteligíveis as experiências de um grupo social historicamente excluído das esferas especializadas de argumentação em arenas de embates que os impedem justamente de acessar o direito. O documento, de destacada qualidade científica e uso de metodologias apropriadas, permitiu traduzir uma realidade social até então invisibilizada e negligenciada historicamente pelo Estado brasileiro, ao mesmo tempo que registrou referencias fundamentais deste grupo social para se fixarem no campo político ou jurídico, descortinando naturalizações pré-estabelecidas,  ou esquemas interpretativos cristalizados na história e no campo jurídico, como a de sua efetiva contribuição à formação econômica e cultural de Aracati e do  estado do Ceará.
  6. Destacamos ainda que, a Sentença aciona uma noção de quilombo desatualizada e reducionista, desconsiderando totalmente a ressemantização do termo ocorrida na Constituição Federal de 1988. Neste contexto democrático, o termo quilombo rompeu definitivamente com as definições arqueológicas, frigorificadas e das definições jurídicas oriundas dos períodos colonial e imperial.  Esta revisão do termo quilombo tão pouco se reduziu à definição de historiadores, ou de geógrafos, ou de documentos centenários, com ênfase no “isolamento”, mas abarcou situações verificadas no presente, dos denominados quilombos contemporâneos, de diversas realidades de formação e ocupação de áreas de terras ocorrido antes e após abolição de 1888.   Estas modalidades não estão relacionadas exclusivamente às fugas de africanos escravizados do sistema escravista, mas são constituídas por doação de terras, por terras de herança, terras de preto, e também terras de Santo, como é a situação do Córrego de Ubaranas, traduzida a partir dos estudos produzidos no RTID. Todas estas modalidades estão presentes historicamente na estrutura agrária brasileira e foram acolhidas no contexto através da publicação do Artigo 68 do ADCT/CF/88 e, posteriormente, com a sua regulamentação pela edição do Decreto 4.887/2003. Estes instrumentos jurídicos reconhecem e asseguram constitucionalmente o direito ao acesso à terra para grupos sociais constituídos por africanos e seus descendentes, grupos participantes do processo civilizacional brasileiro.
  7. A expressão “remanescente das comunidades de quilombos “que emerge na CF de 1988 é tributária não somente de pleitos fundiários mas de conquista de direitos, de revalorização da identidade negra, e de sobrepujar a violência histórica para com os afro-brasileiros em consequência da escravidão. Trata de uma busca pela recuperação pela cidadania historicamente negada, e não apenas cumprimento de deveres, por isto, justamente a comunidade de Córrego de Ubaranas aciona o direito quilombola previsto na Carta Magna.
  8. Segundo apresenta o Relatório Antropológico, acerca da ocupação histórica do território, a afirmação da identidade dos descendentes da Comunidade Quilombola de Córrego de Ubaranas, se relaciona a três situações: a) a partir da lógica familiar, onde, há pelo menos cinco gerações, quatro famílias residem naquela localidade, tendo suas memórias vinculadas a edificação da capela de São José, no território ocupado, ainda sob a lógica do trabalho escravagista; b) no próprio contexto escravagista que se inscreve na historiografia da região de Aracati, apontado na historiografia como um lugar de notável número de trabalhadores negros escravizados ligados às oficinas de charque; c) Nas estratégias de sobrevivência e permanência no território da comunidade, que se desdobram até os dias atuais.
  9. Portanto, as narrativas familiares, as narrativas comunitárias, as historicidades, as genealogias, as territorialidades produzidas, bem como as concepções de justiça, registradas no Relatório Antropológico revelam uma “história apagada” e uma experiência social excludente e estigmatizante que necessitam ser restituídas diante da história e da justiça face à cena pública. Portanto o Relatório, por adotar metodologia propriamente antropológica, lançou luzes sobre fatos desconhecidos e desconsiderados até então, permitindo a justa aplicação do Direito.
  10. Destaca-se ainda que em toda a tramitação do processo da ação judicial (0800558-11.2017.4.05.8101) na 15ª Vara Federal/CE, em nenhum momento a comunidade quilombola de Córrego de Ubaranas foi comunicada da ação, nem mesmo na Sentença de mérito que atendeu os pedidos dos proprietários dos imóveis de anulação do procedimento de regularização fundiária, ferindo o direito à ampla defesa da comunidade quilombola.
  11. Desta forma, asseveramos que os argumentos apresentados pela Sentença da Ação de Nulidade, comporta um conjunto de equívocos conceituais e vícios processuais que merecem ser elucidados, por ferir a aplicação dos direitos quilombolas resguardados na Constituição Federal de 1988 e na Convenção 169 da OIT. Importante reconhecer, que a noção jurídica tradicional apregoada na Sentença, revela que tanto os conceitos sofreram alterações quanto os instrumentos de percepção jurídicos foram revistos.  Ao não considerar o direito intrínseco, a forma como estes grupos sociais se colocam e se colocaram em cada situação e como resistiram historicamente, pode resultar em uma pseudo-igualdade de condições, contribuindo assim para acentuar as desigualdades étnico-raciais e o acirramento dos conflitos territoriais  e socioambientais locais já vivenciados pela morosidade da regularização fundiária pelo INCRA  e do avanço dos interesse de empresários e do próprio governo, com hotéis,  fazendas de camarões, e usinas eólicas, em áreas tradicionalmente utilizadas pela comunidade de Córrego de Ubaranas.

Diante do exposto, consideramos que a Sentença judicial desconsiderou: a) a forma de verificar o trabalho técnico realizado, daí sugere: uma noção de quilombo equivocada; desconsidera os procedimentos científicos que consideraram as especificidades étnicas levantadas no trabalho relatado pelo RTID, as noções de parentesco e afinidade, território e territorialidade, etc. e, b) desconsidera também a aplicação de direitos: direitos constitucionais; direitos internacionais e outros dispositivos infraconstitucionais. Por isto, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) propõe a verificação da conformidade da decisão Judicial com os parâmetros científicos, com destaque para aqueles realizados pelas ciências sociais/antropologia e pela legislação referente aos Povos Quilombolas e que seja suspensa a Sentença de Nulidade do procedimento de regularização fundiária do Córrego de Ubaranas, Município de Aracati – Ceará.

Brasília, 08 de junho de 2022.

Associação Brasileira de Antropologia – ABA e seu Comitê Quilombos

Leia aqui a nota em PDF.

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