Os últimos anos têm sido marcados por uma série de atos de desrespeito ao patrimônio cultural do Brasil, sobre os quais a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) tem se manifestado recorrentemente. O desmonte das instituições e políticas de cultura no país afronta a legislação nacional e revela-se tanto mais grave para o patrimônio de determinados grupos sociais aos quais a Constituição Federal de 1988 quis conferir especial proteção. Não podemos, portanto, deixar de assinalar a conjunção de recentes medidas, divulgadas na passagem de 2021 a 2022, que ameaçam, particularmente, o patrimônio e os direitos culturais das populações afro-brasileiras, comunidades quilombolas e povos de terreiro.
Em 13 de dezembro de 2021, a Fundação Cultural Palmares (FCP) divulgou seu novo logotipo, com formas e cores alusivas à bandeira brasileira, em substituição ao original, inspirado em um artefato ritual de religiões de matriz africana. Sob a justificativa de que o Estado é laico, a FCP revelou no site institucional (https://www.palmares.gov.br/?p=59903) a intenção de trazer à identidade visual da instituição “a transformação, a modernidade e a nacionalidade”, valorizando o “orgulho de ser brasileiro” e a “harmonia entre o preto, o branco, o miscigenado”, “sem distinção de classe, credo ou cor”.
Em 22 de dezembro, a Justiça de São Paulo determinou que o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, apresentasse documentos e informações que justificassem a mudança de logo, mas ainda não se tem notícias dos desdobramentos dessa decisão. Em outra lide envolvendo Camargo, uma sentença proferida pela Justiça Federal nos primeiros dias de 2022 proibiu o descarte de centenas de livros do patrimônio da FCP, que havia sido alardeado por ele. Diante da sentença, no dia 7 de janeiro Camargo publicou em suas redes sociais que os livros ficariam guardados em um “cercadinho identificado com a placa Acervo da Vergonha”.
Sob sua presidência, a FCP tem sido assunto constante nos noticiários e nas redes sociais. O presidente, afastado em outubro de 2021 da gestão de pessoas da entidade sob a acusação de promover assédio moral, perseguição ideológica e discriminação, conforme decisão da Justiça do Trabalho, vem propondo também a mudança do nome da Fundação Palmares. Desde novembro, vem defendendo nas próprias redes sociais a proposta de renomeá-la como Fundação Princesa Isabel. A proposta, que, segundo ele, foi apresentada à Secretaria Especial de Cultura em outubro de 2019, voltou a ser publicamente defendida por Camargo em 9 de janeiro de 2022.
A flagrante negação do racismo na sociedade brasileira, que orienta a nova política da FCP para a cultura afro-brasileira, contrariando séculos de experiência social e estudos especializados, é o combustível para os atos de intolerância religiosa, cada vez mais frequentes em todo o país. São exemplos disso o ataque à Casa do Caboclo Zé Pelintra das Almas, ocorrido nos dias 19 e 20 de dezembro, em Itapipoca (CE), e o incêndio provocado no Terreiro das Salinas, em São José da Coroa Grande (PE), no dia 1º de janeiro, logo após os rituais de passagem de ano nos quais muitos brasileiros jogavam ao mar flores para Iemanjá.
Cabe enfatizar que, seguindo o mandamento expresso na Constituição, as políticas de patrimônio cultural têm buscado proteger manifestações culturais afro-brasileiras, reconhecendo sua profunda ligação com a religiosidade de matriz africana. Entre os bens registrados como patrimônio cultural do Brasil, por exemplo, o Complexo Cultural do Bumba Meu Boi do Maranhão, o Tambor de Crioula do Maranhão, o Jongo do Sudeste, o Samba de Roda do Recôncavo Baiano, o Ofício das Baianas de Acarajé, a Roda de Capoeira e as Matrizes do Samba no Rio de Janeiro têm, invariavelmente, ligação com a fé e a religiosidade de matriz africana. Três deles estão na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade no Brasil: o Samba de Roda do Recôncavo Baiano, a Roda de Capoeira e o Complexo Cultural do Bumba Meu Boi do Maranhão.
A despeito do reconhecimento da contribuição das populações afro-brasileiras para a formação da sociedade brasileira, o desrespeito à sua cultura e ao seu patrimônio não vem só da FCP. No contexto das mais recentes violações de direitos dessas populações, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) emitiu, em 23 de dezembro, a Instrução Normativa nº 111/2021, que dispõe sobre os procedimentos administrativos a serem observados pelo instituto nos processos de licenciamento ambiental de obras, atividades ou empreendimentos que impactem territórios quilombolas. Além de não ter subsídios em consulta livre, prévia e informada às comunidades quilombolas, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a normativa apresenta várias impropriedades. Uma delas é considerar apenas as comunidades quilombolas que tenham Relatório Técnico de Identificação e Delimitação finalizados, o que exclui dos procedimentos a absoluta maioria das comunidades quilombolas e contraria a noção jurídica de quilombo presente na Constituição Federal e no Decreto nº 4.887/2003.
Considerando que território, liberdade religiosa e livre acesso às diversas fontes da cultura nacional são dimensões fundamentais e indissociáveis do patrimônio cultural brasileiro, em cuja definição constitucional se incluem os “modos de fazer, criar e viver”, a ABA repudia as políticas em curso que desrespeitam os direitos culturais das populações afro-brasileiras. Outrossim, alia-se a entidades dos movimentos sociais negro e quilombola para demandar o cumprimento dos mandamentos constitucionais em respeito às manifestações culturais afro-brasileiras e à garantia do pleno exercício dos direitos fundamentais das comunidades quilombolas e dos povos de terreiro.
Brasília, 10 de janeiro de 2022.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e seu Comitê Patrimônio e Museus
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