“Perdão Alcântara”: marco histórico necessário, mas insuficiente

Contido por décadas e em todas as instâncias no Brasil, o pedido de desculpas do Governo brasileiro às comunidades remanescentes de quilombos de Alcântara no processo impetrado junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos, realizada entre 26 e 27 de abril, entrou para a história da resistência negra e dos quilombolas do Brasil.

Após 20 anos de espera, no julgamento realizado entre 26 e 27 de abril, os representantes das vítimas do projeto governamental da Base de Lançamento de Alcântara finalmente foram ouvidos e expuseram no Tribunal Internacional as violações que sofreram em mais de 40 anos, conforme amplamente documentado por pesquisas e inúmeras e sucessivas denúncias feitas pela própria comunidade e por diferentes movimentos sociais e ONGs.

Durante este período, os quilombolas foram deslocados, humilhados, enganados, cerceados em seus direitos, constrangidos e ameaçados, tendo sido impedidos de acessar o mar, a água, de realizar suas atividades extrativistas, de plantar suas roças, perdendo até mesmo o direito de acessar o cemitério. “Fomos tratados como porcos”, disse emocionada dona Maria Luzia ao testemunhar na Corte as atrocidades vivenciadas.

Diante da histórica omissão e abandono do Estado brasileiro, agora reconhecido por seus representantes, os depoimentos dos quilombolas à Corte demonstraram a resistência coletiva, a luta pela vida, pelas terras e pelo território coletivo e ancestral. “Não somos caranguejo para andar para trás, algo tem que acontecer”, expressou com determinação na sessão o senhor Inaldo Fautino Diniz.

O pedido de desculpas emitido pelo representante do Estado brasileiro durante a sessão da Corte é algo importante, mas precisa ser compreendido em duas dimensões. Primeiro, as desculpas em si implicam no reconhecimento de que o Estado errou no passado e, portanto, deve responder com ações concretas e imediatas de reparação. Segundo, tal fato diz respeito ao presente e ao futuro. O pedido de desculpas será vazio e irrisório se a situação continuar se repetindo, se o Estado brasileiro não ouvir e considerar, de fato, o principal pedido da comunidade neste momento, que é o de não expandir a Base de Lançamento de Alciantara (CLA).  Em termos claros, o pedido não terá valor algum se o plano de expansão do CLA, que atualmente oprime e violenta a comunidade da mesma forma que no passado, permanecer inalterado.

“O atual projeto de expansão do CLA é uma tragédia anunciada. A reedição deste modelo impactará novamente o território ancestral e coletivo”, apontou enfaticamente a perícia do antropólogo Dr. Davi Pereira Junior.  Na audiência da Corte, o antropólogo foi categórico sobre a possibilidade de coexistência entre a CLA e a comunidade de Alcântara: “É possível, desde que se reconheça que o racismo mediou historicamente a relação do Estado com a comunidade.  Trata-se agora de reconhecer que o racismo exige ações concretas de reparação, entre elas a mais importante, a titulação imediata do território de Alcântara em sua totalidade. Somente a titulação poderá reparar a autonomia necessária para construir o projeto de autonomia e de liberdade do quilombo de Alcântara”, defende Davi.

Importante observar que a demanda por titulação é compartilhada por muitas outras comunidades quilombolas do Brasil. Assim como Alcântara, elas enfrentam diariamente o desrespeito e o abandono por parte do Estado brasileiro, muitas vezes sem qualquer acesso a políticas públicas básicas como saúde e educação e sem qualquer previsão para a regularização e titulação de seus territórios. Este quadro tem se agravado diante do avanço de um modelo de desenvolvimento que sistematicamente se mostra incompatível com a defesa e a promoção dos direitos humanos e desconsidera os direitos territoriais resguardados na Constituição Federal de 1988. 

No caso de Alcântara, uma questão decisiva sobre o significado do pedido de desculpas é a subordinação de todas as instâncias e organizações do Estado brasileiro ao entendimento e ao compromisso que dele emana. Não basta apenas que algumas esferas ligadas aos direitos humanos respeitem e atuem para garantir essa nova condição, sendo fundamentais como agentes particularmente os planificadores políticos e os gestores da implantação e expansão do Centro de Alcântara.

Brasília, 17 de maio de 2023.

Associação Brasileira de Antropologia – ABA e seu Comitê Quilombos

Leia aqui a nota em PDF.

Skip to content